Acervo, Rio de Janeiro, v. 35, n. 1, jan./abr. 2022

Perspectivas em humanidades digitais | Dossiê temático

Ciências da informação e humanidades digitais

Produção, consumo e materialidade da informação em plataformas digitais

Information sciences and digital humanities: production, consumption and materiality of information in digital platforms / Ciencias de la información y humanidades digitales: producción, consumo y materialidad de la información en las plataformas digitales

Kadidja Valéria Reginaldo de Oliveira

Doutoranda em Ciência da Informação pela Universidade de Brasília (UnB), Brasil.

kadidja.oliveira@gmail.com

Gabriela Tyemi Kaya

Mestranda em Ciência da Informação pela UnB, Brasil.

tyemikaya@gmail.com

Cynthia Roncaglio

Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com pós-doutorado na Facultad de Ciencias de la Documentación da Universidad Complutense de Madrid, Espanha. Professora do curso de graduação em Arquivologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UnB, Brasil.

roncaglio@unb.br

Resumo

O desenvolvimento da web proporciona novas ambiências à sociedade em rede e às práticas informacionais no contexto das humanidades digitais. Neste artigo, analisam-se as relações entre ciências da informação, humanidades digitais e produção e consumo da informação, tendo em conta a materialidade e institucionalidade das práticas informacionais. Conclui-se que a materialidade da informação, intrínseca aos documentos digitais, conclama estudos inter-relacionados com os contextos de uso e produção da informação.

Palavras-chave: ciências da informação; humanidades digitais; materialidade da informação; documentos digitais; práticas informacionais.

Abstract

The development of the web provides new ambiences to the network society and to informational and social practices in the context of digital humanities. In this paper, analyze the relations between information sciences, digital humanities and the production and consumption of information, taking into account the materiality and institutionality of information practices. It is concluded that the materiality of information, intrinsic in digital records, evokes studies interrelated to the contexts of use and production of information.

Keywords: information sciences; digital humanities; materiality of the information; digital records; information practices.

Resumen

El desarollo de la web proporciona nuevas ambivalencias a la sociedad en red y a las prácticas informativas y sociales en el contexto de las humanidades digitales. Este artículo es un análisis de las relaciones entre las ciencias de la información, las humanidades digitales y la producción y consumo de información, teniendo en cuenta la materialidad e institucionalidad de las prácticas de información. Se concluye que la materialidad de la información, intrínseca a los registros digitales, evoca estudios interrelacionados con los contextos de uso y producción de la información.

Palabras clave: ciencias de la información; humanidades digitales; materialidad de la información; documentos digitales; prácticas de información.

Introdução1

Com a aceleração das transformações digitais, ocasionadas pelos impactos da digitalização de serviços na web, percebe-se, em eventos profissionais e acadêmicos de diversas áreas do conhecimento, que os debates em torno das relações socioculturais e dos novos processos de registros de informação na web – nos espaços de comunicação digital – têm suscitado relações com as humanidades digitais (HD). Inserida no que se convencionou definir como a Quarta Revolução Industrial, a digitalização transformou os processos de produção, com impactos nos três setores básicos da economia: agricultura, indústria e serviços. A conexão entre sistemas de tecnologia da informação e comunicação (TIC), subsistemas, processos, objetos e aplicativos, que se comunicam entre si e com humanos, é o vetor chave dessa transformação (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, 2018).

Nesse cenário, os discursos nas redes digitais e nos múltiplos dispositivos conectados envolvem questões relacionadas ao campo em formação das HD, numa perspectiva da migração das atividades e serviços institucionais para o ambiente digital. Um dos estudos sobre esse tema, no contexto da pandemia, identifica a falta de preparo de instituições do setor para fazer essa migração. A disponibilização de computadores e internet para uso do público se destaca entre arquivos, bibliotecas e os denominados pontos de cultura: cerca de metade dessas instituições possui infraestrutura que possibilita o acesso às tecnologias digitais por parte da população. Embora a presença do público tenha ficado comprometida, diante do fechamento das instituições, essa é uma dimensão reveladora do papel dos equipamentos culturais na inclusão digital de parcela da população, que se torna ainda mais relevante com a intensificação do uso das TIC em diferentes dimensões da vida – não apenas cultural, mas educacional e profissional, de acesso à informação e a serviços públicos (TIC Cultura 2020, 2020).

Este artigo aborda aspectos teóricos relacionados às práticas informacionais contemporâneas que fecundam o campo das ciências da informação, incluindo-se as disciplinas científicas que têm como objeto de estudo a informação (ciência da informação, arquivologia, biblioteconomia, entre outras), em uma abordagem transversal trazida pelas discussões do campo das humanidades digitais. Consideram-se, nesse contexto, as ações de informação, o uso das plataformas digitais e a produção de documentos digitais na conformação de um novo contexto paradigmático que emerge com a sociedade em rede. Para isso, são exploradas as inter-relações conceituais com Castells (1999), Harari (2016) e Toffler (1980), e discutidos os aspectos de informação, tecnologia digital e documentos na sociedade contemporânea: a noção de tempo e espaço, o lugar da tecnologia e da informação e as novas configurações dos documentos nas plataformas digitais. Examinam-se as diferentes perspectivas trazidas pelos estudos das ciências da informação, dos profissionais da informação e da cognição social no ambiente digital, conforme Castro e Pimenta (2018) e Santos (2019).2

Sobretudo, este trabalho tem como objetivo refletir sobre as relações entre humanidades digitais e a produção e o consumo da informação, tendo em conta a materialidade e institucionalidade das práticas informacionais, e motivado por alguns dos seguintes questionamentos, apontados por Rabello (2019):

considerando os regimes emergentes de materialidade digital e em rede, como estão sendo operacionalizadas novas documentalidades? Como as novas assimetrias entre produção e consumo de informação condicionam ou são condicionadas pelas novas docu-mentalidades, tocantes, p. ex., ao processo de datificação, que transforma as interações sociais na web em dados sistematicamente coletados e analisados por plataformas em setores públicos e privados? (Rabello, 2019, p. 20)

Como já apontado nos estudos do futuro por Alvin Toffler (1980), a Terceira Onda3 repercutiria na chamada Era da Informação, amparada pela evolução das tecnologias da informação e comunicação, em uma crescente produção de informação em meios digitais, à luz da transformação digital, momento em que a sociedade atual se encontra.

Assim, este trabalho apresenta um ensaio científico, com abordagem qualitativa, tendo como objetivo refletir sobre as relações entre as ciências da informação, humanidades digitais e a produção e o consumo da informação, tendo em conta a materialidade e institucionalidade das práticas informacionais.

Este artigo apresenta-se na seguinte estrutura: a primeira seção aborda alguns conceitos de humanidades digitais relacionados à ciência da informação; em seguida, o texto trata da produção e do consumo da informação em plataformas digitais, trazendo o caso dos prosumers; dando prosseguimento, aborda as práticas informacionais relacionadas à materialidade e institucionalidade da informação. Por fim, a título de conclusão, apontam-se os desafios tanto de uma sociedade contemporânea que desenvolve suas práticas informacionais e socioculturais nos novos regimes de informação digital e em rede, quanto no contexto das pesquisas e projetos que abordam essa temática.

Humanidades digitais e as ciências da informação

Nos estudos de Castro e Pimenta (2018) e Pimenta (2019, 2020), sobre as humanidades digitais (HD) nos contextos informacionais, a convergência com a ciência da informação (CI), enquanto disciplina científica, é destacada devido ao alinhamento dos estudos dos usos da informação na recente realidade tecnológica e digital.

Embora já presente no cenário acadêmico brasileiro desde o início dos anos 2000, as humanidades digitais – um campo de pesquisa transdisciplinar onde questões e objetos ligados às diversas disciplinas das ciências humanas, sociais e sociais aplicadas se encontram com recursos oriundos da computação, ocasionando a possibilidade de novos desdobramentos da produção do conhecimento nas humanidades no ambiente digital – têm chamado a atenção de um público crescente da ciência da informação nos últimos cinco anos. (Pimenta, 2020, p. 2)

Na perspectiva de Castro e Pimenta (2018), as HD emergem na contemporaneidade para desempenhar e resolver as demandas atuais das tecnologias no contexto das fontes tradicionais de informação outrora apenas disponíveis em formato físico e que atualmente surgem em formato digital.

Sob o ponto de vista de Pimenta (2019), humanidades digitais refletem sobre o lugar ou processo, ou ainda sobre o fluxo e a mediação da informação ensejados nas disputas de poder pela memória (lembranças e esquecimentos da informação) que têm consequências para a democratização da informação e para o direito de cidadania, espelhando as relações de desigualdade social e contribuindo, inclusive, para a desigualdade digital. Nos casos de práticas socioculturais, as humanidades digitais estão presentes na sociedade em rede e em seu processo de interação e usos de sistemas de informação e comunicação nos contextos institucionais que abordam, entre outras questões, aspectos éticos, sociais, políticos e culturais.

Ao investigar a conexão entre as CI e as HD, Moura (2019, p. 60) dispõe, como parâmetro, “a agenda de fenômenos infocomunicacionais dinamicamente enfrentados, as práticas de pesquisa e o tratamento das problemáticas éticas e socioculturais derivadas dos processos de intensificação da digitalização da informação na sociedade contemporânea”. Nesse enquadramento, para a autora, as HD são um método novo de abordagem das pesquisas em humanidades e ciências sociais submersas nas tecnologias digitais e que trazem a perspectiva desafiadora sobre a forma contemporânea de produção científica, uma vez que o ambiente digital é privilegiado na produção, armazenamento e circulação da informação.

Moura (2019) ressalta ainda a coesão de propósitos e do campo de atuação entre as ciências da informação e as HD, na esfera do campo científico, uma vez que ambas possuem uma característica transdisciplinar. Além disso, “as humanidades digitais também são percebidas como uma metadisciplina que atua em uma zona de convergência e trocas transdisciplinares com foco nos esforços metodológicos de renovação nas humanidades e ciências sociais” (Moura, 2019, p. 62).

A despeito da institucionalidade da informação, damos ênfase à vertente menos formal, como apresentado por Rabello (2019), a exemplo dos registros da informação nas plataformas digitais onde emergem as novas práticas socioculturais de produção e consumo de informação. Outrossim, os registros estão presentes em regimes subjetivos e particulares, alheios a uma legitimação legal, e sua materialidade singular é construída em uma base de intencionalidades distintas entre o objeto e o seu modo de representação.

Para Rabello (2019), a materialidade da informação se diferencia da fisicalidade do objeto, em que a fisicalidade está relacionada às propriedades do objeto-suporte da informação, sendo que a materialidade vai além dessas propriedades, considerando a procedência e o percurso da informação até o momento em que se insere nas práticas socioculturais e discursivas onde é valorada.

Dentre essas práticas socioculturais, vigoram fenômenos relacionados ao campo da informação, a exemplo da desinformação nos ambientes digitais, que demandam recursos tecnológicos cada vez mais aprimorados, envolvendo e transformando diversos campos do conhecimento, como se verá mais adiante neste texto.

Nos fluxos emanentes de informação, no aqui e agora, nas inter-relações nos usos da internet e, ante as debilidades produzidas pela própria tecnologia, rapidamente são desenvolvidas novas técnicas para operar as relações exponenciais de produção e consumo da informação que exigem infraestruturas de informação eficientes e a adaptação quase que imediata dos vários campos das ciências.

As infraestruturas de informação caracterizam-se por sistemas, serviços, ferramentas, processamento de informação ou redes interconectadas, centralizadas, descentralizadas ou distribuídas. Podem abranger plataformas e dispositivos tecnológicos, banco de dados, artefatos (objeto, documento) (Rabello, 2019, p. 24).

Nesse cenário, concernente às tecnologias digitais e aos regimes emergentes de materialidade da informação, as ciências da informação, em conexão com as práticas socioculturais das HD, constituem-se em importante campo de estudos que permite realizar uma análise conceitual acerca da institucionalidade, tendo como fio condutor as novas assimetrias entre produção e consumo de informação e sua relação condicional com as novas documentalidades.

Enfim, com essas novas demandas informacionais, as HD e as ciências da informação convergem na medida em que possuem, entre outros aspectos, o interesse comum de refletir e explorar as particularidades e consequências da organização, fluxos e usos da informação. E, como caracterizado por Damian, Almeida, Mello e Rodrigues (2015, p. 80), “o estudo exploratório das humanidades digitais torna-se pertinente e estimulante para a área da ciência da informação, uma vez que é do interesse de ambas as áreas a aplicação de tecnologias que permitam a mediação e maior acessibilidade da informação”.

Também, conforme Passarelli e Gomes (2020), as HD possuem o fator de cooperação intrínseco, requerendo uma variedade de habilidades e conteúdo, uma vez que abarcam diferentes compreensões sociais e culturais das artes e humanidades.

As humanidades digitais: a produção e o consumo da informação

Conforme exposto por Castro e Pimenta (2018), o advento das humanidades digitais insere-se no cenário contemporâneo em que há a necessidade de lidar com as fontes tradicionais de informação introduzidas na esfera tecnológica.

Nesse contexto, a temática das humanidades digitais vem sendo explorada por grupos de pesquisa em diversas áreas de conhecimento, como pode ser visto em laboratórios4 e eventos5 nas ciências da informação.

De acordo com Castells (1999), a partir do final do século XX, a sociedade vive um intervalo de transformação da “cultura material” por meio de um novo paradigma tecnológico referente à tecnologia da informação. Para o autor, o conceito de tecnologia é entendido como o uso de conhecimentos científicos para realizar coisas de forma reproduzível (Castells, 1999, p. 49).

Para Castells (1999, p. 51), “as novas tecnologias da informação não são simplesmente ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos. Usuários e criadores podem tornar-se a mesma coisa”. Pela primeira vez, a mente humana é força direta de produção e não apenas elemento do sistema produtivo. Nessa perspectiva, computadores, sistemas de comunicação, entre outros, são amplificadores e extensão da mente humana. É crescente a integração entre mente e máquina, de forma que o que pensamos é expresso em bens e serviços colocados à disposição no cotidiano. O novo sistema tecnológico muda os contextos e a interação, pois transforma as informações em um sistema comum de informação cada vez mais rápido e com custo cada vez menor (Castells, 1999, p. 51).

Essa mudança de contexto também é percebida com o advento das humanidades digitais, que, consoante Castro e Pimenta (2018), se inserem na sociedade da informação na conjuntura da chamada “explosão informacional”, que ocorreu nos últimos vinte anos, e que possui como cerne as fontes de informação digitais.

Mesmo caminhando largamente em termos de produção acadêmica, as humanidades digitais ainda concentram-se em práticas de implementação de projetos de disseminação de conteúdos digitais. Faz-se saber: de informação para a produção do conhecimento mediado pelas interfaces digitais. (Castro; Pimenta, 2018, p. 527)

A tecnologia digital reconfigura, em um processo contínuo, as formas e condições dos conhecimentos e ações humanas. Em decorrência das redes de comunicação e meios digitais, surgem os chamados “saberes híbridos”, os quais unem “a tecnologia digital, novos métodos, novas práticas, novas formas de produção e consumo do conhecimento, tanto no universo acadêmico como no mercado de trabalho, a exemplo das humanidades digitais” (Passarelli; Gomes, 2020, p. 255).

O redesenho dos processos humanos vividos na propalada Era da Informação molda o ciclo de consumo da informação. Quase duas décadas antes de Castells, Toffler (1980) já abordava o que chamava de “desmassificação dos meios de comunicação”. O autor apontava, então, que num futuro próximo, as antigas massas de receptores de informação seriam substituídas por pequenos grupos responsáveis por receber e enviar muitas imagens de próprio cunho a outras pessoas. Isso levaria à desmassificação e falta de consenso, o que indica ligeiramente a razão da variação de opiniões sobre os mais diversos assuntos, como, por exemplo, sobre música e política. Isso ocorre uma vez que todos são bombardeados por fragmentos de textos e imagens com os mais diferentes pontos de vista, o que põe em reflexão antigas concepções já cristalizadas. Tal perspectiva se insere na chamada cultura blip, em que informações são ofertadas em forma de blips fragmentados e em alta velocidade.

Toffler (1980) expõe os diferentes públicos dessa cultura, sendo os da Segunda Onda (pós-Segunda Guerra Mundial) passíveis de desconforto e desorientação, tanto pela natureza do conteúdo a que são expostos ao serem retirados de sua zona de conforto, quanto por desconhecerem os novos “pacotes” que entregam a informação. Já o público da Terceira Onda (Era da Informação) se sente mais confortável com a cultura blip e consome enormes quantidades de informação.

Em vez de recebermos longas e relacionadas “cadeias” de ideias, organizadas ou sintetizadas para nós, estamos cada vez mais expostos a pequenos e modulares blips de informação – anúncios, comandos, teorias, pedaços de notícias, fragmentos truncados e blobs que se recusam a encaixar perfeitamente em arquivos mentais pré-existentes. O novo imaginário resiste à classificação, em parte porque muitas vezes está fora das nossas antigas categorias conceituais, mas também porque vem em pacotes demasiado estranhos, transitórios, e desconectados. (Toffler, 1980, p. 182, tradução nossa)

Os meios de comunicação, que intensificam a “desmassificação da civilização”, acarretam uma mudança colossal na quantidade de informações trocadas entre as pessoas, e isso explicita o motivo da convergência em torno de uma “sociedade da informação”, pois em uma sociedade cada vez mais diversificada, é necessário maior fluxo de informação para mantê-la unida. Toffler (1980) considera que, quanto mais uniformes são os comportamentos dos indivíduos, menos informação é necessária para prever esses comportamentos. No movimento inverso, quanto mais particular o indivíduo se torna, mais informação é necessária para lidar com o seu comportamento. Isso, para o autor, é indispensável para a convivência em sociedade, caso contrário é inviável trabalhar ou viver no mesmo ambiente. Como consequência, tanto as organizações quanto as pessoas buscam ininterruptamente por informação, e assim o fluxo de dados torna-se cada vez maior.

Dessa forma, em uma sociedade cada vez mais digital, em que o tráfego de informações é cada vez maior, a forma de consumo da informação e a velocidade com que isso acontece desencadeiam fenômenos socioculturais, dentre os quais pode-se citar o caso dos prosumers. Utilizado por Alvin Toffler (1980), o termo prosumer é a junção dos termos em inglês producer e consumer, que significa um novo modelo de consumidor, o qual simultaneamente produz e consome informação. O autor vislumbra a tendência de um envolvimento muito mais estreito do consumidor na produção e, nesse processo, as distinções convencionais entre produtor e consumidor desaparecem (Toffler, 1980, p. 290).

Já no contexto da produção de informação em plataformas digitais, uma das práticas informacionais é a disseminação de notícias falsas, que desencadeia a desinformação, gerando uma série de transtornos para as humanidades digitais. Fallis (2015) argumenta que a desinformação é uma informação propositalmente enganosa, com objetivo de enganar, o que pode causar danos significativos ao ludibriado. Nessa conjuntura, novas tecnologias digitais vêm sendo criadas e abrem a possibilidade de uma chave para vencer o fenômeno da desinformação. Pode-se citar o plugin PACWeb (Prova de Autenticidade de Conteúdo Web), desenvolvido pela empresa OriginalMy, que gera a validação de documentos digitais dentro da tecnologia blockchain. Esse plugin autentica conteúdos de sites, blogs ou redes sociais, o que confirma sua autenticidade, inibe a alteração do conteúdo e impede que possa ser usado para disseminação de notícias falsas (OriginalMy, 2021).

Nas palavras de Harari (2016), o conhecimento está sendo valorizado por meio de algoritmos e processamento de dados que excedem a capacidade humana de absorção do volume de informações. Nesse ínterim, o saber humano tende a valorar os algoritmos computacionais. No entanto, alerta que cada um de nós “deveria se conscientizar de que este é o atual dogma científico e de que isso está mudando nosso mundo para além do reconhecível’’ (Harari, 2016, p. 371).

Práticas informacionais relacionadas à materialidade e institucionalidade da informação

Harari (2016) entende o dataísmo como uma teoria única e abrangente capaz de unificar todas as disciplinas científicas pela representação do universo como um fluxo de dados numa linguagem comum que seria capaz de construir pontes sobre brechas acadêmicas e exportar facilmente insights através de fronteiras disciplinares. Para o dataísmo, a sociedade de hoje caminha para o livre fluxo da informação, o qual deve conectar-se a tudo e a todos, como vemos nas tecnologias que extraem dados da natureza, do ser humano e das coisas. O processo de transformação dos fenômenos em dados transige com a experiência humana e em uma linguagem matemática computacional que decompõe essas experiências em uma entropia que pode ser mensurada em lógicas algorítmicas.

No entanto, ao passo que a datificação apresenta uma linguagem representativa das atividades humanas, a operacionalização desses fluxos necessita passar por diversas camadas sociais e técnicas de registro de informação. Assim, as práticas informacionais estabelecem a integração de agentes sociais a esses sistemas de informação por meio de interfaces e plataformas como a estrutura web, que inclui a informação como a construção de uma linguagem matemática a ser registrada, i.e. produzida, armazenada e recuperada, por qualquer ator social que a “detenha”. É imperioso considerar que, para a produção da informação nas linguagens digitais dos usuários dos sistemas, sempre haverá a mediação da tecnologia da qual pelo menos uma organização ou instituição pública ou privada seja a detentora, o que evoca o contexto da institucionalidade.

Como atribuído por Rabello (2019),

a materialidade, ainda que considere tais propriedades, compreende aspectos que estão para além delas, tais como a procedência e o percurso da informação até o momento da inscrição do signo, ou seja, os aspectos valorativos provenientes de práticas sociais e discursivas, sejam elas pragmáticas, simbólicas, políticas, mercadológicas, validadas em institucionalidades diversas, ou, ainda, intencionalidades atribuídas ao objeto antes mesmo de ele ser valorado institucionalmente como documento, tais como memória, afetividade, identidade, instrumentalidade, biografia do objeto, dentre outros. (Rabello, 2019, p. 6-7)

Nessa perspectiva da institucionalidade, os documentos são aqueles cuja função é diminuir a dispersão da informação.

Consequentemente, documentos produzidos em processos de documentação podem ser vistos como um registro de fenômenos culturais e sociais, no que tange ao registro da expressão dos fenômenos sociais, que, associados à sua materialidade, podem representar uma integração das experiências humanas na representação simbólica que compõe o documento digital. Dessa forma, não seria apenas “informação como prova”,6 mas como semióforo associado à materialidade de uma representação cultural intercambiável de experiências com que Rabello (2019) considera as práticas sociais e discursivas. Por fim, “a expansão da noção de documento é uma forma de ampliar o escopo de atuação da ciência da informação” (Gomes; Lara, 2017, p. 3).

Já no contexto da arquivologia, por exemplo, enquanto área de conhecimento afim que possui autonomia e objeto próprio de estudo – o documento de arquivo –, as práticas informacionais voltam-se para a organização e gestão dos documentos, bem como para o acesso a eles, e, enfim, atuam nos contextos de uso da sociedade, inclusive, na atribuição de valores dos documentos. Nesse ínterim, os documentos podem ser considerados um patrimônio e tratados como objeto de estudo na e para a preservação digital. A exemplo disso, o Nuaweb7 (Núcleo de Pesquisa em Arquivamento da Web e Preservação Digital) opera em linhas de pesquisa cujos resultados tendem a alimentar investigações para várias áreas de conhecimento, dentre essas, as ciências da informação e a sua relação com as humanidades digitais.

Considerações finais

Os documentos digitais podem ser e constituem um objeto de análise crítica para as ciências da informação e humanidades digitais como expressão de fenômenos socioculturais em uma sociedade mediada por tecnologias digitais.

O cenário disruptivo ocasionado pela pandemia da covid-19,8 no transcurso do século XXI, acelerou a transformação digital e escancarou o uso, o consumo e a produção de informações e documentos digitais pela sociedade em rede.9 Sob outro prisma, ao observar a produção científica nas ciências da informação, em especial na arquivologia, a despeito das especificidades e atributos dos documentos de arquivo digitais, distintos dos documentos convencionais, muito se questiona sobre os aspectos da proveniência, autenticidade, confidencialidade e integridade dos documentos para a recuperação, uso e preservação no presente e no futuro.

As humanidades digitais, além de tornarem-se uma disciplina transversal em diversas áreas de conhecimento, e presentes em linhas de pesquisa e projetos em laboratórios das ciências da informação, incidem sobre e se relacionam com uma sociedade hiperconectada que cria um novo tecido social com desafios à construção de novos conhecimentos, marcados pela evolução das tecnologias e plataformas digitais. A sociedade, cada vez mais polarizada, estimula debates para discussões e comportamentos que confrontam questões relacionadas às práticas informacionais, como nas relações de trabalho, em processos advindos da transformação digital, como a digitalização de serviços, e as necessidades de preservação de arquivos na web.

Como tratado no Manifesto das Humanidades Digitais, as HD também são entendidas como um termo polissêmico e presente em diversas áreas do conhecimento humano. No campo das ciências da informação, essas comunidades são representadas por profissionais da informação que operam num contexto de desafios impulsionados pela produção, seleção, organização, consumo e necessidades de registro de informação e preservação de uma cultura digital.

Conclui-se que a materialidade da informação, intrínseca aos documentos digitais, evoca o conceito de documento apresentado por Rabello (2019) e conclama interfaces entre os conhecimentos das humanidades digitais e a grande área das ciências da informação, a fim de promover uma sociedade mais justa, inclusiva e consciente dos seus direitos e deveres diante dos avanços tecnológicos

Referências

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Recebido em 30/7/2021

Aprovado em 20/12/2021


Notas

1     Este artigo é resultado do trabalho final da disciplina Informação, Tecnologia e Documentos Digitais, do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCINF) da Universidade de Brasília (UnB), do segundo semestre de 2020, ministrada pela professora Cynthia Roncaglio no período de fevereiro a junho de 2021.

2     A partir da perspectiva dos estudos das humanidades digitais, um dos principais objetivos do trabalho foi sistematizar questões debatidas no campo da digitalização de acervos permanentes e colaborar com novas reflexões para as áreas de arquivologia e documentação.

3     Em sua obra denominada A Terceira Onda, Toffler (1980) divide a civilização em três partes: a Primeira Onda, a revolução agrícola; a Segunda Onda, a Revolução Industrial; e a Terceira Onda, a qual vivenciamos atualmente, conhecida como sociedade pós-industrial ou sociedade pós-moderna.

4     LarHuD (Ibict): http://www.larhud.ibict.br/; Laboratório de Humanidades Digitais (LHuD) no Cpdoc da FGV: https://cpdoc.fgv.br/laboratorios/lhud; LABHD/UFBA (Laboratório de Humanidades Digitais da UFBA): https://icti.ufba.br/laboratorio-de-humanidades-digitais-da-ufba; Laboratório de Culturas e Humanidades Digitais (LabCult) da Escola de Ciência da Informação da UFMG: https://labcult.eci.ufmg.br/; Labogad (Unirio); Nuaweb (UFRGS); entre outros que estão trabalhando com projetos em humanidades digitais e aderiram ao Manifesto das Humanidades Digitais.

5     Mapeamento dos eventos sobre humanidades digitais, em que profissionais das ciências da informação possuem linhas de pesquisa no tema: 2013 – I Seminário Internacional em Humanidades Digitais no Brasil. Disponível em: https://seminariohumanidadesdigitais.wordpress.com/convidados-biografias/. Organização do Grupo de Pesquisas Humanidades Digitais | HD.br; 2018 – I Congresso Internacional em Humanidades Digitais no Rio de Janeiro. Fonte: https://portal.fgv.br/eventos/i-congresso-internacional-humanidades-digitais-rio-janeiro; 2020 – I Jornada Nacional de Humanidades Digitais (UFRJ). Fonte: https://eventos.ufrj.br/evento/i-jornada-nacional-de-humanidades-digitais/; 2021 – II Congresso Internacional em Humanidades Digitais (HDRio2021) (Unirio). Fonte: http://www.unirio.br/news/ii-congresso-internacional-em-humanidades-digitais-acontece-no-mes-de-abril.

6     Os modos de representação da “informação como prova” encontram fundamento na premissa “o documento, quando autêntico, leva à verdade” para a representação fidedigna da realidade (Rabello, 2019, p. 25).

7     O Nuaweb (Núcleo de Pesquisa em Arquivamento da Web e Preservação Digital) foi criado em 2017 com o objetivo de investigar características do arquivamento da web por meio de iniciativas nacionais e internacionais, lidando tanto com as políticas, quanto com as tecnologias envolvidas no processo. Estuda aspectos referentes à preservação, uso e acesso, ao longo do tempo, de objetos digitais disponibilizados na web de forma retrospectiva e como memória digital (website, som, imagem, vídeo, banco de dados, dados de redes sociais, entre outros), com contribuições da arquivologia, biblioteconomia, ciência da informação, comunicação e ciência da computação. Disponível em: https://www.ufrgs.br/nuaweb/2019/12/31/uma-breve-história-do-arquivamento-da-web/. Acesso em: 13 jul. 2021.

8     Em 12 de março de 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a covid-19, doença infecciosa causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), uma pandemia. Como medidas de contenção do vírus, recomendou-se fortemente o isolamento social para evitar transmissões comunitárias (World Health Organization, 2021).

9     Em contextos informacionais nas plataformas digitais, e para a própria internet e redes sociais, como o Facebook, LinkedIn, Twitter, Instagram, entre outras.



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