Acervo, Rio de Janeiro, v. 35, n. 3, set./dez. 2022

Independências: 200 anos de história e historiografia | Dossiê temático

O Centenário da Independência do Brasil nas páginas do Almanaque de Pelotas (1922-1923)

The Centenary of Brazil’s Independence in the pages of the Almanaque de Pelotas (1922-1923) / El Centenario de la Independencia de Brasil en las páginas del Almanaque de Pelotas (1922-1923)

Aristeu Elisandro Machado Lopes

Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor associado do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Brasil.

aristeuufpel@yahoo.com.br

Resumo

O artigo analisa como o Almanaque de Pelotas abordou o Centenário da Independência política do Brasil nas edições de 1922 e 1923. Atenta para as escolhas dos redatores quanto aos destaques dados tanto à cidade de Pelotas (RS), numa perspectiva de sua inserção na modernidade urbana nacional, quanto às comemorações da efeméride a partir de diferentes construções da figura de d. Pedro I.

Palavras-chave: Almanaque de Pelotas; centenário; Independência do Brasil; comemorações.

Abstract

The article analyzes how the Almanaque de Pelotas addressed the Centenary of Brazil’s political Independence in the 1922 and 1923 editions. It focuses on the writers’ choices regarding the highlights given both to the city of Pelotas (RS), in a perspective of its insertion in the national urban modernity, and to the celebrations of the event from different image constructions of d. Pedro I.

Keywords: Almanaque de Pelotas; centenary; Brazil’s Independence; celebrations.

Resumen

El artículo analiza cómo el Almanaque de Pelotas ha abordado el Centenario de la Independencia política de Brasil en las ediciones de 1922 y 1923. Examina las elecciones de los redactores en lo que se refiere al destaque que se ha dado tanto a la ciudad de Pelotas (RS), desde una perspectiva de su inserción en la modernidad urbana nacional, cuanto a las conmemoraciones de la efeméride a partir de distintas construcciones de la imagen de D. Pedro I.

Palabras clave: Almanaque de Pelotas; centenario; Independencia de Brasil; conmemoraciones.

Considerações iniciais

À grande alma da pátria, Pelotas, como parte da comunhão brasileira, – numa expressão de vitalidade e em resultado do seu civismo – prepara-se, com ufania, para unir todos os seus júbilos e bênçãos, afagando o intuito, nesse traço de amor ao Brasil, de celebrar condignamente o Centenário Nacional.

Osório Filho (1922, p. 63)

A epígrafe acima foi extraída do texto “Pelotas, a próspera cidade no Centenário da Pátria Livre”, de Fernando Luís Osório Filho,1 publicado no Almanaque de Pelotas do ano de 1922. O autor apresenta o projeto para as festividades do Centenário da Independência do Brasil que seriam realizadas na cidade ao longo dos últimos meses de 1922 e nos primeiros de 1923. O teor da narrativa explicitava o quanto Pelotas estava inserida no contexto brasileiro celebrativo da efeméride do Centenário, da mesma forma que outras cidades do país,2 e aproveitaria o momento para demonstrar um suposto patriotismo pelotense e, também, se apresentar como uma cidade moderna. Este artigo analisa dois volumes do Almanaque de Pelotas, referentes aos anos de 1922 e 1923, que trataram das celebrações dos cem anos da Independência brasileira. Em um primeiro momento, serão abordados os aspectos referentes à modernidade da cidade no âmbito da efeméride e, em seguida, será identificado e analisado como a publicação constrói uma narrativa sobre o evento político, destacando a atuação de d. Pedro I.

Os textos que trataram da história da Independência nas páginas do Almanaque podem ser considerados próximos ao estilo de uma prática historiográfica baseada nos feitos políticos de homens encarados como heróis. Como afirma Maria Lígia Prado, “A Independência – considerada o momento de fundação da pátria – e seus heróis, pensados como artífices dessa hercúlea tarefa, constituíam-se como objeto privilegiado da incipiente historiografia nacional” (Prado, 1999, p. 29). Da mesma forma, no ano do Centenário, em 1922, tal perspectiva pouco foi alterada: “Ao completar 100 anos de existência em 7 de setembro de 1922, a história da construção do Império Brasílico ainda se voltava essencialmente para o estudo dos fatos e das grandes personagens que haviam realizado a Independência” (Neves, 2020, p. 4). A produção veiculada nos exemplares do Almanaque é considerada importante para o entendimento de como o Centenário foi celebrado, considerando que se trata, evidentemente, de uma produção datada e coerente com o momento de sua redação.

Pelotas, fundada em 1812, como freguesia de São Francisco de Paula, tinha seus motivos para não deixar a data passar sem comemorações. Ao longo do século XIX, suas elites mantiveram relações com a corte do império do Brasil. Vários pelotenses ocuparam cargos importantes na corte, como exemplificam as trajetórias de Francisco Antunes Maciel, o conselheiro Maciel, que integrou o Gabinete de 24 de maio de 1883 (Paula, 2019, p. 142) e Antônio Ferreira Viana, ministro da Justiça no último gabinete do Império (Vargas, 2007, p. 62). Pelotas também teve importante desempenho na economia nacional, destacando-se na produção do charque – produto comercializado para várias regiões do Brasil e de intensa exploração de trabalhadores escravizados.

No ano do Centenário da Independência, determinados grupos sociais e lideranças políticas da cidade ainda vangloriavam esse passado e celebravam as benesses de uma cidade moderna. A partir dos anos 1910 “foram instalados e/ou consolidados os principais ‘confortos’ urbanos para a população” (Gonçalves, 2017, p. 48). Entre outros, energia elétrica, ajardinamento de ruas, praças e parques, higiene dos espaços públicos, calçamento para deslocamento de pedestres e dos automóveis nas principais ruas do centro da cidade, água encanada na área central, rede de esgotos em partes das vias, rede de telefone, transporte público. O Almanaque de Pelotas, portanto, manifesta a cidade idealizada que vivia com intensidade seus tempos de modernidade3 e as comemorações do Centenário vão ao encontro dessa perspectiva, inserindo Pelotas no roteiro dos festejos nacionais.

O Almanaque de Pelotas

O primeiro volume do Almanaque de Pelotas – na grafia da época, Almanach – surgiu em 1913 e sua última publicação foi dedicada ao ano de 1935. Seus fundadores foram Antônio Gomes da Silva, Inácio Alves Ferreira e Florentino Paradeda, que constituíam a firma Ferreira & Cia., sendo que a partir de 1919 Paradeda assumiu exclusivamente a direção da publicação (Lima, 2015, p. 66). Na capa dos volumes constava as palavras “variedades, informações, propagandas”, informando o leitor sobre os principais temas que seriam abordados nas variadas seções que formavam o Almanaque. Sobre as propagandas, Paula Lima aponta que não se tratava apenas dos anúncios publicitários, mas também “propaganda da cidade e de seus sujeitos que empreendiam grandes benesses para a mesma” (p. 78).4

Ao longo dos anos de circulação do Almanaque, a urbanidade da cidade de Pelotas recebeu grande visibilidade nos volumes, sobretudo a partir das fotografias que destacavam as paisagens urbanas, com ruas projetadas, praças, intenso trânsito de transeuntes, automóveis, registros da vida cotidiana e urbana, entre outros elementos que compunham o entendimento do que seria a modernidade da cidade. Os almanaques

pertencem a um momento da vida cultural do ocidente, ligado ao projeto maior da ideia de civilização e progresso. Dessa forma são também, a um só tempo, grandes divulgadores culturais e sociais nos termos de um projeto civilizatório, tal como analisado por Elias (1990; 1993), relacionado a um processo de construção e validação de todo um código de condutas e valores que foram historicamente enraizados nas sociedades ocidentais. (Dutra, 2005, p. 18)

A publicação pelotense vai ao encontro da constatação da autora, uma vez que enfatiza, em suas páginas, o progresso e a civilização gozada pelos citadinos, homens e mulheres detentores e apreciadores das benesses dos elementos constituidores da noção de modernidade daquela época.5 Um exemplo é verificado no anúncio do Hotel Aliança, no volume de 1922, que destacava: “todo o conforto moderno”; “iluminação à luz elétrica”; “com aparelhos telefônicos em todos os quartos e água encanada nos mesmos”, ou seja, o estabelecimento disponibilizava aos seus hóspedes todos os benefícios e recursos originados do progresso urbano, igualmente visto na cidade (Almanaque de Pelotas, 1922, p. 14).

Apesar do tom propagandístico referente à modernidade da cidade, o Almanaque não deixou de lado uma das principais características desse tipo de publicação, ou seja, a veiculação de peças publicitárias que anunciavam os estabelecimentos comerciais, industriais e de serviços localizados em Pelotas. Conforme levantamento realizado por Paula Lima, no conjunto de volumes foram publicados 4.107 anúncios publicitários (Lima, 2015, p. 48). Parte considerável das páginas era preenchida com veiculações de propagandas, o que certamente financiava a publicação, além do valor cobrado pelo exemplar. Ainda conforme a autora, “foi um produto criado para ser companheiro dos leitores, uma espécie de calendário-agenda, sendo que esta intenção aparece claramente no prefácio da primeira edição” (p. 69). Os almanaques, dessa forma, eram publicações com objetivos diversificados que permitiam aos seus possuidores o uso prático de suas páginas, especialmente naquelas dedicadas ao registro das tarefas cotidianas, para anotar datas importantes, conferir os dias e os meses do ano, identificar qual o santo do dia, os feriados previstos, as fases da lua, entre outros recursos (Meyer, 2001).

Os almanaques, com o calendário, serviam para guiar e agendar a vida do seu usuário, ou, conforme a interpretação de Jacques Le Goff, as divisões do calendário possibilitavam controlar “as relações entre este e os ritmos do trabalho, do tempo livre e das festividades. Os que controlam o calendário controlam indiretamente o trabalho, o tempo livre e as festas” (Le Goff, 2003, p. 486). O almanaque, portanto, era uma “publicação impressa que estabelecia marcos temporais e ditava ritmos da vida cotidiana, em uma mescla de referências naturais, religiosas e laicas” (Pimenta; Costa, 2021, p. 58, grifo dos autores), servindo como um parâmetro para a escrita de um tempo ordenado (Park, 1999, p. 44). Dessa forma, os almanaques de programação anual precisavam ser disponibilizados para o público sempre no final do ano, permitindo o gerenciamento do tempo e o controle do calendário a partir de janeiro. O Almanaque de Pelotas foi uma publicação desse tipo, com espaços para anotações referentes ao ano todo.

E é a partir dessa constatação que é possível compreender como os assuntos referentes ao Centenário da Independência do Brasil foram distribuídos. O volume referente ao ano de 1922 – provavelmente disponibilizado no final de 1921 – trazia o texto de Fernando Osório Filho que explicava o seu projeto para as comemorações. Enquanto aquele confeccionado para 1923 – apresentado em fins de 1922 – apresentava textos e imagens sobre a data comemorativa, com grande destaque à atuação de d. Pedro I.

O projeto para as comemorações do Centenário

Retornando ao texto de Osório Filho, é possível notar que o Centenário foi lembrado por ele – e pela redação do Almanaque – mais de um ano antes da sua realização. Conforme explicava o autor, à Biblioteca Pública Pelotense “oportuna e vigilante, coube a iniciativa da comemoração” enquanto ele foi incumbido de preparar um projeto. Sua proposta previa, entre outras realizações, uma

singular exposição, na nossa Biblioteca, industrial, histórica, manufatureira, retrospectiva e artística, em que, por entre festas, se patenteasse o progresso das várias pequenas indústrias, interessantes, que medram em Pelotas, mesmo os trabalhos manuais dos colégios, a par de uma seleção dos muitos objetos históricos e artísticos em poder de famílias pelotenses. (Osório Filho, 1922, p. 69)

O projeto não apresenta algo novo, já que a ideia de exposições como celebração de datas comemorativas e exaltação econômica não era uma novidade. Um exemplo é a Exposição Universal de Paris, de 1889, realizada no ano do centenário da Revolução Francesa. As exposições universais, consideradas como “fenômenos típicos do século XIX”, tinham, também, uma “dimensão propriamente econômica, de feira de mercadorias, mostruário de novos produtos [...] lucrativos negócios” (Pesavento, 1997, p. 43). Já no Rio de Janeiro, no ano do Centenário da Independência, foi realizada uma grandiosa exposição, sendo a “primeira vez que se realizava uma exposição internacional no Brasil” (Junqueira, 2011, p. 161).

A exposição de Osório Filho segue o mesmo roteiro, ou seja, além de ser um evento para marcar a efeméride do Centenário, também seria um momento para destacar a economia, festejar a cultura e valorizar o ensino e suas instituições. No que se refere às atividades industriais e comerciais, Pelotas possuía, nos anos 1920, uma rede diversificada. Além de uma variada praça comercial, contava com fábricas de vários segmentos, como, entre outras, de balas e caramelos, biscoitos, calçados, conservas, carroças, chapéus, cervejas, elixires, escovas e vassouras, fumos, louças, malas e baús, móveis, roupas, sabão e velas, vidros, massas, tijolos e ladrilhos e curtumes (Loner, 2016, p. 335-337). Muitos desses estabelecimentos anunciavam seus produtos nos volumes do Almanaque e, certamente, era confiando no patrocínio dos seus proprietários que Osório Filho apresentava a proposta da exposição.

A exposição, portanto, era uma comemoração ao Centenário da Independência, alicerçada na construção de uma história nacional, mas, também, uma celebração da modernidade pelotense e dos seus avanços sociais, culturais e econômicos. Nesse sentido, a comemoração pode ser entendida a partir da explicação de Fernando Catroga:

Enquanto celebrações consensualizadoras, as comemorações são ritualizações da história. E, como em todo rito, movimentam oficiantes e participantes, pondo em cena, num tempo e num espaço revestidos de alguma sacralidade cívica, um espetáculo que, como alternativa ao caos, simboliza a ordem ideal e o sentido da história que nele se procura legitimar. Logo, elas também integram os participantes e os espectadores através de desfiles e de efeitos visuais, em ordem a captarem uma maior adesão popular possível. (Catroga, 2000)

O autor argumenta que as comemorações centenárias celebradas em Portugal, como, entre outras, aquela da Independência do Brasil, foram aproveitadas para valorizar a história nacional, relembrando a chegada dos portugueses no Brasil: “A gesta dos Descobrimentos, exploração historicista que visava desencadear efeitos de autoestima e de revivescência nacional, de modo a caldear-se, como nas comemorações anteriores, o fomento do patriotismo como sonho imperial” (Catroga, 2005, p. 136).

Dessa forma, as comemorações estão diretamente associadas a um projeto de uma história nacional – tanto no Brasil como em Portugal – para a qual a celebração do Centenário da Independência foi aproveitada para reforçar a sua construção. Nesse sentido, é possível entender que a discussão sobre as comemorações do Centenário presente nos dois volumes do Almanaque de Pelotas e, sobretudo, a proposta da exposição, constitui parte da construção dessa história nacional, que celebrava o passado, mas estava em consonância com o presente de seus idealizadores: “Es el presente el que crea sus instrumentos de conmemoración, el que corre tras las fechas y las figuras a conmemorar, el que las ignora o las multiplica, el que las coloca arbitrariamente dentro del programa impuesto [...]. La historia propone, pero el presente dispone” (Nora, 2008, p. 176).

O texto de Osório Filho encerra, justamente, apontando considerações sobre o presente que festeja o seu passado independente. Ele explicita a participação de Pelotas nos festejos: “O município é a célula primária do organismo da nação [...] ama-se o todo, porque se ama cada uma de suas partes”, ou seja, “dessa árvore majestosa que se chama nação não há quem não sinta que a raiz é o torrão natal” (Osório Filho, 1922, p. 78). O longo artigo termina deixando claro que Pelotas, no presente, possui um papel importante nas comemorações do Centenário da Independência, apesar da sua localização geográfica distante da capital federal.

Entre as páginas do texto, o Almanaque apresentava aos leitores uma ilustração sobre a Independência (Figura 1). Trata-se de uma reprodução da tela A fundação da pátria brasileira, do pintor Eduardo de Sá, “entregue ao Conselho Municipal do Distrito Federal, em 1902” (Leal, 2006, p. 113).6 A litografia, impressa em papel branco,7 não indicava o nome do pintor ou a origem da reprodução, apenas informava o responsável pela sua confecção. Seu autor se identificava como Brisol, o qual, provavelmente, era o fotógrafo Brisolara, que atuou na cidade na primeira metade do século XX.8 A mesma assinatura é vista em outras ilustrações do Almanaque, o que remete à possibilidade do fotógrafo também se dedicar à litografia.


Figura 1 – A fundação da pátria brasileira. Almanaque de Pelotas, 1922, s.p. Acervo do autor


A falta de indicação da origem da imagem não permite verificar qual o modelo utilizado pelo artista à confecção da sua ilustração. No entanto, é possível considerar a hipótese de que ele não produziu a sua réplica a partir da pintura original, que estava no Rio de Janeiro e, sim, que a sua cópia foi realizada tendo por base outras que foram veiculadas em outros suportes. Uma ilustração da tela foi publicada na Século XX – Revista de Letras, Artes e Sciencias, do Rio de Janeiro, em 1906, e também veiculada como cartão-postal.9 Esses são dois exemplos de reprodução da pintura e, certamente, outras cópias em outros formatos também foram produzidas. Se não é possível indicar a origem, é viável considerar que tais reproduções chegaram a Pelotas possibilitando que Brisol realizasse sua transposição para as páginas do Almanaque.

A tela de Eduardo de Sá apresenta, em primeiro plano, José Bonifácio de Andrada e Silva com a bandeira do Império do Brasil em seu colo sendo observado por d. Pedro I e outras três figuras, que representam os brancos, os indígenas e os negros. D. Pedro I aponta seu braço direito em direção a José Bonifácio em um movimento que indica consonância com seu ato de forjar a bandeira, ou seja, construir o império independente. Conforme Ana Rosa da Silva: “No percurso de sua formação intelectual, José Bonifácio engatilhou um conjunto de reformas para o Brasil, as quais, embora inseridas na continuidade do projeto do império luso-brasileiro, acabaram legando as próprias bases para sua concepção como corpo político independente” (Silva, 2006, p. 360). Ele se tornou importante conselheiro e principal ministro de d. Pedro I, colaborando com os encaminhamentos e a consolidação do processo de rompimento com Portugal (Lustosa, 2006; Dolhnikoff, 2012).

Essas questões foram consideradas por Eduardo de Sá ao desenvolver a pintura, colocando-o como figura preponderante na tela, embora d. Pedro I esteja situado ao centro da pintura. Nota-se que a outra mão do futuro imperador do Brasil está no cabo da sua espada, uma possível referência ao ato do príncipe regente no Sete de Setembro.

O homem branco está em consonância com d. Pedro I, seu braço erguido sinaliza a comemoração pelo fim da condição colonial. Já o indígena, que também observa José Bonifácio, está com a mão no queixo, um gesto que indica desconfiança em relação à construção do império. A mulher negra igualmente observa o ato. Entretanto, ao contrário do branco que celebra e do indígena desconfiado, seus braços estão amarrados a um tronco, uma clara alusão à condição de cativa, uma vez que a Independência não contemplou a liberdade para a população escravizada.

Eduardo de Sá, entusiasta do ideário republicano e artista positivista, embora tenha concebido uma tela em exaltação à Independência, tece uma crítica ao Brasil Império, uma vez que o país que surgiu a partir de 1822 não considerou de forma igualitária as “três raças” que construíram o Brasil. Cecília de Salles Oliveira, ao analisar a obra do negociante inglês John Armitage, radicado no Rio de Janeiro nos anos 1820, explica a participação dos grupos políticos envolvidos no processo de Independência e o papel atribuído ao povo. Segundo a autora, no período entre 1821 e 1823 houve “o envolvimento dos ‘brasileiros’ com a política, com as reivindicações relacionadas ao alargamento do espaço de participação e de influência no governo”. Esses “brasileiros” foram os “que optaram por se aliar em torno de d. Pedro e do rompimento político com Portugal para fazer frente à ingerência das cortes de Lisboa” (Oliveira, 2009, p. 34-35) e eles foram imputados a,

na condição de cidadãos, transformar a conduta do “povo”, preparando-o para o novo governo constitucional que se organizava, de tal sorte que a “inércia e indolência da gente dessa terra”10 fossem gradualmente substituídas pela educação, moralizadora dos costumes, e pelo trabalho livre metódico e disciplinado. (Oliveira, 2009, p. 36)

O branco deveria ser o agente responsável por moralizar, disciplinar e instituir o trabalho livre, transformando a desconfiança (do indígena) e a escravidão (da negra) em um sentimento nacional, de “povo” brasileiro. Essa ideia persistiu nas décadas posteriores à Independência, exemplificada na tela produzida no começo do século XX e, também, na sua reprodução na página do almanaque no ano do Centenário.

A reprodução da tela, no entanto, não possui nenhuma relação com o texto de Fernando Osório Filho, nem mesmo em outras páginas. Embora ele afirme em uma única frase que a Independência foi uma “obra popular”, uma vez que “o povo afinal é quem faz a história” (Osório Filho, 1922, p. 73, grifo do autor), não é feita nenhuma alusão à reprodução da tela. O recurso visual atende à demanda desse tipo de publicação, seu emprego é muito mais no sentido simples de servir de ilustração e, nesse caso, também como celebração e antecipação às comemorações em Pelotas. No entanto, as imagens não são meras ilustrações, elas “constituem-se numa forma importante de evidência histórica” (Burke, 2004, p. 17). No caso da pintura concebida por Eduardo de Sá, é possível considerar que, ao mesmo tempo que há uma exaltação ao patriarca da Independência e uma referência em segundo plano a d. Pedro I, ele também concebeu uma crítica ao processo que não concedeu os mesmos direitos às populações indígenas originárias, aos africanos escravizados e seus descendentes. Alheio a essa possível leitura da tela, exceto para os leitores mais críticos e atentos, o Almanaque publicou sua reprodução com o objetivo único de comemorar o Centenário.

D. Pedro I e as comemorações do Centenário

No volume referente ao ano de 1923, o Almanaque de Pelotas dava grande destaque à atuação do príncipe regente d. Pedro no processo independentista. Novamente a autoria do primeiro texto, intitulado “Pedro I”, foi de Fernando Osório Filho. Sua narrativa analisa a atuação do príncipe e o apontava como um “herói popular” que se colocou “à frente do movimento” (Osório Filho, 1923, p. I). O autor faz uma explicação sobre os supostos motivos pela opção da via monárquica e não da republicana, conforme o modelo dos demais estados independentes latino-americanos. Segundo ele, o motivo estaria na figura de d. Pedro I que “agiu prudentemente, sob inspiração da plena integridade do território e da unidade nacional” (p. I). Contudo, naquele momento, tanto em Pelotas como no Rio Grande do Sul, o Partido Republicano Riograndense era a agremiação preponderante, sendo necessário deixar explícito no texto que elogiava a ação do príncipe, palavras que deveriam ser lidas com simpatia pelos correligionários republicanos. O autor explica que a monarquia foi, tão somente, o resultado do “momento histórico decisivo”, embora fosse uma solução sem “tradição”:

Os republicanos devem amor à verdade e à justiça. E a severidade da história manda destacar o conjunto de circunstâncias que produziu o adiamento da lógica solução republicana. Com efeito, no Brasil não havia tradição monárquica e as tentativas de separação da metrópole anteriores a 1822, em vários pontos do Brasil, haviam sido para a fundação da República. (Osório Filho, 1923, p. I-II)

A passagem torna evidente que, apesar da importância da comemoração do Centenário da Independência – realizada por um monarquista que, em seguida, tornar-se-ia o imperador d. Pedro I – o regime republicano era a “lógica solução” adiada até 1889. Osório Filho, dessa forma, explana aos leitores que a efeméride não deve ser rememorada com um saudosismo monarquista, mas que a escolha, em 1822, deve ser vista a partir das circunstâncias daquele momento.11

Em contrapartida, o regime republicano, ainda nas palavras do autor, era a melhor forma de governo; e se não foi uma opção para o Brasil independente, não havia dúvidas a seu respeito após 1889. Importante destacar que a família Osório possuía intensas relações com a República. O pai de Fernando Osório, que tem o mesmo nome e foi um dos entusiastas republicanos no estado, presidiu o clube União Republicana de Pelotas e fez carreira política nos primeiros anos republicanos ocupando, inclusive, uma das cadeiras do Senado da República em 1894 (Osório, 2011, p. 47). Dessa forma, ainda que o texto aborde elogiosamente a atuação de d. Pedro I, torna explícita que ela é datada e, ao fazer uma referência ao ideário republicano, evita qualquer possível atrito sobre a intenção do teor das suas palavras para com os seus pares republicanos.

Em uma página que antecede o texto, o Almanaque apresentava a primeira imagem sobre a Independência. D. Pedro I aparece de perfil, em litografia que não apresentava a sua origem, apenas o artista responsável pela sua reprodução, novamente Brisol (Figura 2).


Figura 2 – D. Pedro I, proclamador da Independência do Brasil. Almanaque de Pelotas, 1923, s.p. Acervo do autor


Na ilustração, o primeiro imperador do Brasil é retratado com uma farda de gola alta, com detalhes bordados e com dragonas, além de ostentar diversas insígnias. O número considerável de emblemas não era exagerado quando comparado com todas as condecorações representadas que ele possuía, entre as quais aquelas instituídas por ele mesmo:

Com relação às condecorações, d. Pedro I usava o fitão largo nas cores das principais ordens; a placa com as três ordens portuguesas reunidas: Cristo, Aviz e São Tiago de Espada, e a insígnia do Tosão de Ouro. Possuía as grã-cruzes das seguintes ordens: Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa; a de Carlos III e de Isabel a Católica; de São Luís de França; Santo Estêvão da Hungria; antiga Ordem da Torre e Espada do Valer, Lealdade e Mérito; do Espírito Santo e de São Miguel, da França. Era grão-mestre da Imperial Ordem do Cruzeiro, e depois, da de Pedro I e da Rosa, todas três por ele instituídas. (Rodrigues, 1953, p. 30)

O retrato de d. Pedro I publicado no Almanaque está de acordo com a descrição do autor, embora não seja possível distinguir, na ilustração, qual emblema corresponde ao título outorgado. Entretanto, é provável que aquela ao centro da farda seja a Tosão de Ouro, uma vez “pendente do pescoço em fita vermelha, que só era outorgada a monarcas e príncipes de casas reinantes” (Rodrigues, 1953, p. 11).

A ilustração também se assemelha com outras produções visuais do imperador, quase sempre fardado e com várias insígnias. Dois exemplos são a gravura produzida por Charles Simon Pradier, provavelmente em 1822,12 e o Retrato de dom Pedro I, de Simplício de Sá, de 1826.13 No entanto, no pós-Independência, variadas imagens do imperador foram produzidas e circularam, entre os anos de 1826 e 1828, “pelas províncias do Brasil e pela Europa, principalmente Portugal” (Murano, 2013, p. 33):

Há diversas gravuras, óleos, retratos equestres, bustos, estátuas, louças e objetos de uso pessoal. A iconografia, no geral, apresenta o imperador em sua farda militar, com todas as suas insígnias e, muitas vezes, defronte a uma paisagem brasileira mostrando a sua soberania frente ao vasto território. Nesta época foram publicadas diversas charges. (Murano, 2013, p. 33)

É provável que muitas dessas imagens, assim como novas reproduções, continuaram circulando nas décadas posteriores aos anos 1820. Essa constatação permite considerar – da mesma forma que foi apontado para o caso da reprodução da tela de Eduardo de Sá, no volume correspondente ao ano de 1922 – que o gravador Brisol tivesse acesso a algumas cópias dos desenhos de retratos e ilustrações de d. Pedro I, o que facilitou a sua confecção para a publicação no Almanaque.

Se a primeira imagem apresentava d. Pedro I em farda oficial e com suas insígnias, o texto seguinte, intitulado “O grito do Ypiranga”, de Francisco Assis Cintra,14 apresentava uma descrição do que teria ocorrido com o então príncipe regente nas margens do riacho do Ipiranga.

O começo do texto apresenta críticas à tela de Pedro Américo, Independência ou morte, e ao alto relevo do escultor Ettore Ximenes. Apesar de chamar a obra do primeiro de “belíssima tela histórica” e a do segundo de “impressionante”, afirma que ambas “perpetuam uma inverdade histórica”:

Esses dois artistas representam Pedro I de espada desembainhada, vestindo brilhante farda de festa, cavalgando fogoso corcel, bradando entusiasticamente – Independência ou Morte! – em meio dos dragões de sua guarda, na colina do Ypiranga. Entretanto, não se faz assim a cena histórica de nossa emancipação política. (Cintra, 1923b, p. 103)

Passa, então, a descrever, com minudência, o que seria a “verdade” sobre o que se passou. Em uma das partes do texto relata que “d. Pedro não cavalgava um fogoso corcel e sim uma besta gateada” (Cintra, 1923b, p. 104). De acordo com a análise de Felipe Machado: “Para Cintra seria mister alertar para as mentiras da tela de Pedro Américo e esclarecer os verdadeiros fatos do evento. Denunciando que o imperador teria sido vitimado por uma diarreia, ele valia-se do ridículo para o desmonte que pretendia” (Machado, 2004, p. 75). Ainda conforme o autor, Cintra tornou-se adepto do realismo e defendia que “a arte deveria exprimir a verdade e se deveria negar as representações imperfeitas” (p. 75).15

A comparação do texto de Francisco Cintra com o anterior, de Fernando Osório Filho, permite algumas observações pertinentes. O primeiro era um pesquisador do tema da Independência e sua produção resultava de pesquisa documental,16 enquanto o segundo não era um especialista no assunto e escrevia a partir de consultas a outras obras. Dessa forma, enquanto Cintra apontava em seu texto divergências em relação à concepção de Pedro Américo, escrevendo uma versão menos pomposa do ato do príncipe em São Paulo, Osório Filho o considerava um herói popular.

O Almanaque apresenta aos seus leitores essas duas possibilidades de interpretação sobre a atuação de d. Pedro I, ou seja, a heroica, apontada por Osório, e a “verdadeira”, defendida por Cintra. Entretanto, como o objetivo principal do volume era a celebração do Centenário, os pontos de vista apontados no texto de Cintra não foram, provavelmente, considerados uma mácula à efeméride, mas, ao contrário, serviram para demonstrar a “verdade”.

Dessa forma, as duas versões estavam publicadas e suas interpretações ficariam para o público leitor. Independentemente dessas posições, a historiografia atual atribui uma relevância menor ao que aconteceu na região do Ipiranga, em São Paulo, em 1822. Lúcia Maria das Neves aponta que o grito “Independência ou morte” é, na atualidade, celebrado como a declaração de Independência, “entretanto, para os contemporâneos do Sete de Setembro, este não teve significado especial, não sendo sequer noticiado pela imprensa da época” (Neves, 2003, p. 369-370). O ato faz parte da construção de uma narrativa oficial, criada após a Independência e importante para reforçar a construção do novo país e, para tal história, a tela de Pedro Américo contribuiu. Cintra, em suas publicações nas primeiras décadas do século XX, procurava desmitificar essa versão, mas apresentava outra que, embora baseada em documentos, era defendida como única e verdadeira. Dessa forma, sua produção vai de encontro a uma proposta atual que defende o estudo da Independência a partir de “múltiplos aspectos, complexidades e circunstâncias históricas específicas, sem reduzir a uma única causa ou data” (Neves, 2009, p. 97).17

Não apenas os textos publicados no Almanaque apresentavam versões diferentes de d. Pedro I, mas as ilustrações também. Apesar da crítica de Cintra, o quadro Independência ou morte figurou reproduzido em uma página, mas, em outra, o Almanaque apresentava uma ilustração polêmica, sobre a qual se especulou, na época de sua divulgação, que Domitila de Castro do Canto e Melo, a marquesa de Santos, teria sido a inspiração na sua confecção. Trata-se da reprodução de Salve! Querido brasileiro dia! 24 de março de 1824, uma litogravura de Charles Philibert Lasteyrie Du Saillant a partir de desenho de Gianni, possivelmente de 182418 (Figura 3).

Conforme a legenda do Almanaque, d. Pedro I quebrava “os grilhões que prendiam o Brasil à metrópole”, ou seja, a interpretação está direcionada para a parte inferior da imagem, na qual uma figura masculina com os braços envolvidos por cobras segurava uma das pernas da indígena, salva por d. Pedro I, que pisa com um pé no ombro e com o outro no braço do “monstro, representando o despotismo” (Chillón, 2017, p. 206). A ilustração, dessa forma, apresentava a “ideia de proteção e liberação que se está utilizando na retórica republicana das nações sul-americanas nas imagens dos generais, como Bolívar” (p. 206). A descrição indica o artista (erroneamente nomeado Granni) e o local de produção, Paris. Apesar de não constar na reprodução, era informado que ela possuía uma legenda: “Salve glorioso dia”, o que consta na versão original, pertencente ao acervo da Biblioteca Nacional.


Figura 3 – D. Pedro I quebrando os grilhões. Almanaque de Pelotas, 1923, s.p. Acervo do autor


Essa frase, associada ao começo da legenda, que colocava d. Pedro I rompendo os grilhões, permitiu uma interpretação equivocada no Almanaque, já que ela não se refere ao rompimento entre Brasil e Portugal e, sim, à promulgação da Constituição do Império de 1824. Conforme Iara Lis Souza, a gravura também foi identificada como Pedro I e a América. Segundo a autora, a indígena é resgatada por d. Pedro I, reforçando o vínculo da “América com a terra brasílica”:

Em trajes militares, ele a eleva, retirando-a de uma condição mais baixa, para nível melhor e mais alto. Esta obra comemorava o 25 de março, data da Constituição. D. Pedro dotava o Brasil de leis, retirando-o de seu estado anterior e doando-lhe um conjunto de regras que o regulassem. Nisto consistia a elevação desta terra pelas mãos do imperador constitucional. O cúmplice olhar entre eles, o cavalheirismo e a firmeza com que d. Pedro a toca, o sorriso reconhecido da moça, seu corpo projetado, que se move com esforço e leveza, demonstravam as boas e carinhosas relações entre um e outro, uma amorosidade sincera e contida, quase romântica. (Souza, 1999, p. 296)

A última frase da autora aponta, implicitamente, para a polêmica causada logo após a divulgação da gravura, a qual é explicada por Souza na legenda da imagem: “Reza a tradição que Gianni teria tido por modelo a marquesa de Santos para fazer tal América, reforçando o tom enamorado das personagens” (Souza, 1999, p. 321). Os responsáveis pela produção do Almanaque de Pelotas tinham conhecimento sobre a possível relação entre a indígena e a marquesa de Santos, informação que consta na legenda: “Esta preciosa obra de arte causou na época profunda sensação, e mesmo escândalo, porque o rosto da figura do Brasil, inesperadamente feminino, reproduzia, com perfeita fidelidade, as feições da marquesa de Santos, amante de Pedro I”.

O Almanaque não se referiu a ela apenas na imagem, mas também em um dos textos veiculados, intitulado “Não tens culpa”. No começo do texto consta a informação de que se trata de “curiosas reminiscências sobre d. Pedro I” publicadas em O Jornal, diário do Rio de Janeiro e de autoria, novamente, de Francisco Cintra.19 D. Pedro I é adjetivado como um homem com “defeitos e vícios: o maior de todos era o ‘rabo de saia’” e que, quando diante de uma mulher, “perdia a compostura e o juízo”, não importando se era “uma simples marafona ou a consorte de um de seus ministros” (Cintra, 1923a, p. 121). Já a marquesa de Santos é descrita como possuindo uma “carinha de anjo”, “quase imperatriz”, “feliz amante” e concubina que infringiu “as maiores humilhações” à imperatriz Maria Leopoldina (p. 122). O título é uma referência a uma das supostas respostas da imperatriz quando foi apresentada a uma das “filhas da amante”.

Os redatores do Almanaque de Pelotas, ao reproduzir a ilustração que causou sensação quando de sua divulgação e o texto veiculado no jornal do Rio de Janeiro em fevereiro de 1922, demonstravam ter conhecimento sobre a história do imperador do Brasil, sobretudo no que se refere aos detalhes da sua vida íntima. A relação extraconjugal de d. Pedro I com a marquesa de Santos, no entanto, não era secreta. Conforme Isabel Lustosa, “durante sete anos a paixão não teve limites; as cartas de d. Pedro para a marquesa dão testemunho da intensidade erótica e também do profundo sentimento que uniu d. Pedro a Domitila” (Lustosa, 2006, p. 187). O Almanaque de Pelotas, ao publicar o texto de Cintra e a ilustração da gravura, possivelmente não tinha como proposta rememorar a relação infiel do primeiro imperador do Brasil, mas apresentar aos seus leitores curiosidades sobre sua vida pessoal, transformando o caso entre os dois em entretenimento aos seus leitores. Por outro lado, isso não significou relembrar a data e a biografia de d. Pedro I somente a partir de sua intimidade, como atestam os textos de Fernando Osório Filho e outros, além das demais ilustrações.20 Dessa forma, a publicação apresentava interpretações sobre a história do processo que levou o Brasil a se tornar independente, a partir do protagonismo do príncipe e, concomitantemente, marcava a sua participação nos festejos do Centenário.

Considerações finais

A análise dos dois volumes do Almanaque de Pelotas, de 1922 e de 1923, possibilitou averiguar como a cidade estava inserida no contexto nacional das festividades do Centenário da Independência do Brasil. Primeiro, a efeméride foi aproveitada para destacar os avanços da cidade e sua modernidade urbana. O texto de Fernando Osório Filho, de 1922, exemplifica essa relação. Para o autor, esse seria o momento para Pelotas mostrar o que ela possuía de melhor nas esferas social, econômica e cultural, apresentando todos os elementos que a caracterizariam como uma cidade moderna. Posição retomada no volume de 1923, no texto “Como Pelotas comemorará o Centenário”, no qual a data era aproveitada como um momento para reforçar o progresso da cidade, ampliando as melhorias urbanas e apresentando a cidade como moderna: “Logo, impondo-se ao forasteiro, na vida nova que lhes dão a sentir, na cidade, os elétricos e automóveis, que atestam a ideia da pressa e da energia, – os melhoramentos públicos evidenciados na excelência do calçamento, da arborização e iluminação, que se generalizam” (Almanaque de Pelotas, 1923, p. 340). Dessa forma, a comemoração estava inserida no roteiro nacional das festividades, mas o grande destaque não seria o Sete de Setembro e, sim, a cidade de Pelotas.

O Almanaque também festejou o Centenário a partir da veiculação de textos e reproduções de imagens sobre a Independência. O destaque foi para d. Pedro I, apresentado a partir de dois vieses de sua biografia, aquele que o colocava como um herói popular e, o outro, mostrando sua relação com a marquesa de Santos. O Almanaque publicava duas versões para os seus leitores, as quais, para além de serem conflitantes, eram complementares. Na primeira, era destacada a atuação do príncipe regente em prol da separação do Brasil de Portugal até a concretização da Independência, enquanto a segunda abordava a sua vida privada.

Analisar parte da produção do Almanaque sobre os cem anos da Independência, no ano do seu bicentenário, permite perceber o quanto uma publicação do sul do Brasil estava atualizada com o contexto comemorativo do Centenário. Em outras palavras, o afastamento geográfico não foi um empecilho para que as comemorações fossem projetadas e desenvolvidas exaltando não somente a efeméride, mas celebrando o progresso de Pelotas.

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Recebido em 16/2/2022

Aprovado em 26/5/2022


Notas

1    Fernando Osório Filho (1886-1939) foi advogado e escritor, e entre suas obras consta: A cidade de Pelotas, publicada em 1922 como parte das comemorações do Centenário da Independência. O Almanaque, no volume de 1923, destaca a “edição do livro histórico-literário, com múltiplas gravuras, sobre a vida de Pelotas, (corpo, coração e razão) a cargo do dr. Fernando Osório” (Almanaque de Pelotas, 1923, p. 340).

2    No Rio de Janeiro era preparada uma exposição internacional e, em São Paulo, estava em construção o Monumento da Independência.

3    No primeiro ano do Almanaque, em 1913, os editores apresentaram o propósito de realizar a “propaganda de sua querida terra, do seu progresso e a exaltação de suas virtudes, dos atributos e dos alevantados atos dos conterrâneos que tal preito tivessem feito e hajam de fazer jus” (Gonçalves, 2017, p. 22).

4    Informações sobre os colaboradores, formato, número de páginas por volume, conteúdos, tiragens, valores, circulação, ver: Lima (2015, p. 66-100).

5    Além do Almanaque de Pelotas, a revista Ilustração Pelotense (1919-1926) e o Álbum de Pelotas, de 1922, publicado em razão do Centenário da Independência, apresentam fotografias que destacam a modernidade, ver: Michelon (2001); Lima (2015); Gonçalves (2017). Essas publicações se somam aos jornais diários Diário Popular (1890-presente), Opinião Pública (1896-1962), A Alvorada (1907-1965) e O Rebate (1914-1923), constituindo a imprensa pelotense contemporânea aos anos de circulação do Almanaque.

6    Atualmente, a tela está exposta no Palácio Pedro Ernesto, sede da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro.

7    “As páginas internas dos Almanaques de Pelotas eram confeccionadas em papel jornal, de baixa gramatura e poroso, exceto pela inserção de algumas páginas de outras cores (rosa, verde ou azul), em papel mais liso e encerado, e de folhas mais espessas brancas, também mais lisas, para reprodução de fotografias e de algumas ilustrações” (Lima, 2015, p. 124).

8    Conforme a pesquisa realizada por Mariana Gonçalves, é provável que a assinatura Brisol se referia ao estúdio Brisolara, “mas não foi possível comprovar a relação entre ambos devido à ausência de fontes” (Gonçalves, 2017, p. 23).

9    A reprodução da tela em cartão-postal pode ser visualizada na página de uma empresa de leilões, disponível em: https://www.harpyaleiloes.com.br/peca.asp?ID=1021332. Acesso em: 18 jan. 2022.

10    Citação de John Armitage.

11    José Murilo de Carvalho apresenta a explicação para a escolha monárquica em 1822: “a separação foi feita mantendo-se a monarquia e a casa de Bragança. [...] A escolha de uma solução monárquica em vez de republicana deveu-se à convicção da elite de que só a figura de um rei poderia manter a ordem social e a união das províncias que formavam a antiga colônia. O exemplo do que acontecera e ainda acontecia na ex-colônia espanhola assustava a elite” (Carvalho, 2008, p. 27).

12    A gravura pertence ao acervo da Biblioteca Nacional. Conforme: Pradier, Charles Simon. S. A. R. o sereníssimo príncipe d. Pedro príncipe real do Reino Unido de Portugal e do Brasil e Algarves. [s.l., s.n.], [1822?]. 1 grav, água-forte e buril, pb, 33,2 x 21 cm e 37 x 27,5 cm. Disponível em: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=8329. Acesso em: 28 jan. 2022.

13    A tela pertence ao acervo do Museu Imperial/Iphan/MinC (Petrópolis, RJ). Sua reprodução pode ser conferida em verbete da Enciclopédia Itaú Cultural. Conforme: Retrato de D. Pedro I. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra3005/retrato-de-d-pedro-i. Acesso em: 28 jan. 2022.

14    Sobre a atuação de Francisco de Assis Cintra (1897-1953), que escreveu várias obras sobre a história do Brasil, ver: Machado (2004). O Almanaque de Pelotas apresenta apenas o nome do autor, não indica se o texto é parte de uma das obras publicadas por ele ou se é um resumo de uma delas.

15    Felipe Machado analisa em sua dissertação os pontos de vista defendidos por Cintra em relação à tela de Pedro Américo, inclusive abordando as explicações do pintor e as réplicas do historiador. O autor deixa claro, contudo, que a discussão proposta por Cintra “valia-se de questões próprias do século XIX – e já esquecidas – para construir a história que desejava. Um realismo exagerado desmistificaria o momento fundador que se desejava perenizado como mágico na obra de arte. Cintra busca desmontar o momento chave da ‘emancipação política’” (Machado, 2004, p. 77).

16    Conforme Felipe Machado, Cintra, na obra Dom Pedro I e a Independência, informa que “não poderia publicar em um só livro todos os documentos em seu poder” (Machado, 2004, p. 19).

17    A autora apresenta, nesse capítulo, uma revisão bibliográfica sobre o processo de emancipação política, abordando suas respectivas interpretações, elaborando comentários e desenvolvendo críticas pertinentes (Neves, 2009).

18    Lasteyrie du Saillant, Charles Philibert, comte de, 1759-1849. Salve! Querido brasileiro dia: 25 de março de 1824. Paris [França]: Lith. de Sennefelder, [1824?]. 1 grav, litograv., pb, 50 x 36,2 cm a 50,3 cm em papel 63,5 x 83,7 cm a 51 x 58 cm (4 cópias). Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon408454/icon408454.jpg. Acesso em: 29 jan. 2022.

19    O artigo de Cintra foi publicado originalmente em O Jornal, 3/2/1922, n. 933, p. 1. O Almanaque de Pelotas republicou o texto integralmente no volume de 1923.

20    Os seguintes textos também foram publicados: “Ou ficar a pátria livre...”, de Theodoro Magalhães; “O Fico”, de Amilcar Salgado dos Santos, e “Pedro I – jornalista”, sem autor. No artigo, foram selecionados somente os textos de Fernando Osório Filho e Francisco Assis Cintra porque eles permitiram comparar a narrativa sobre d. Pedro I. Já as demais reproduções foram: a da tela Aclamação de Sua Majestade d. Pedro I imperador do Brasil, do pintor Felix Emile Taunay, fotografia do Monumento da Independência com a informação que ele ainda seria inaugurado em São Paulo, fotografia da fachada do Museu do Ipiranga, uma gravura do povo ovacionando dom Pedro I no campo de Santana, após o “Fico”, e uma fotografia da estátua equestre de dom Pedro I localizada na praça Tiradentes, no Rio de Janeiro. Essas reproduções não entraram no artigo, uma vez que são imagens mais conhecidas.



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