Acervo, Rio de Janeiro, v. 35, n. 3, set./dez. 2022

Independências: 200 anos de história e historiografia | Dossiê temático

As críticas à Assembleia brasileira e o enfraquecimento do papel de Silva Lisboa como liderança intelectual na Independência

The criticism against the Brazilian Assembly and the weakening of Silva Lisboa’s role as an intellectual leader of the Independence / Las críticas contra la Asamblea Brasileña y el debilitamiento de la posición de Silva Lisboa como un liderazgo intelectual en la Independencia

Guilherme Celestino

Doutor em Portuguese and Brazilian studies no King’s College London, Inglaterra.

guicelest@gmail.com

Resumo

Neste artigo analiso os últimos números do periódico Reclamação do Brasil, de José da Silva Lisboa, quando ele muda seu alvo de questionamento das cortes de Lisboa para os liberais brasileiros que pedem a convocação de uma Assembleia separada da de Portugal. Silva Lisboa passa a ser atacado por aqueles que o admiravam pelo seu papel combativo durante as crises militares do início de 1821. O futuro Cairu passa a ser visto como um apóstata da Constituição, pelos seus pares e por parte da historiografia.

Palavras-chave: Independência; constitucionalismo; liberalismo; jornalismo.

Abstract

In this article I analyze the latest issues of the newspaper Reclamação do Brasil, by José da Silva Lisboa, when he changed his target from the Lisbon Courts to the Brazilian liberals who were asking for the convening of an Assembly separate from that of Portugal. Silva Lisboa started to be attacked by those who had admired him for his combative role during the military crises of the beginning of 1821. The future Cairu began to be seen as an apostate of the Constitution, by his peers and by part of the historiography.

Keywords: Independence; constitutionalism; liberalism; journalism.

Resumen

En este artículo analizo los últimos números del periódico Reclamação do Brasil, de José da Silva Lisboa, cuando él cambió su blanco de cuestionamiento de las Cortes de Lisboa a los liberales brasileños que pedían la convocatoria de una Asamblea separada de la de Portugal. Silva Lisboa pasó a ser atacado por quienes lo admiraban por su papel combativo durante las crisis militares de principios de 1821. El futuro Cairu empezó a ser visto como un apóstata de la Constitución, por sus pares y por parte de la historiografía.

Palabras claves: Independencia; constitucionalismo; liberalismo; periodismo.

As vésperas da Independência do Brasil foram marcadas por grandes debates na recém-surgida imprensa livre. Durante todo o ano de 1821, havia certo consenso de que as cortes de Lisboa, reunidas após a Revolução do Porto, eram um bem-vindo progresso ao mundo luso-brasileiro que iria tirar as duas cabeças do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves do jugo absolutista, em um movimento que se inicia nas províncias do Norte e Nordeste do Brasil que concordam “prontamente com o sistema constitucional” (Meirelles, 2015, p. 61) e no Rio de Janeiro se estabelecem ao redor de Joaquim Gonçalves Ledo, Januário da Cunha Barbosa e José Clemente Pereira, os quais viriam posteriormente a ser conhecidos por liberais e a exigir “o juramento do rei à Constituição de Lisboa e a substituição dos ministros do Estado”, além do retorno de dom João VI a Portugal (p. 62).

Após o retorno do rei em abril de 1821 e os decretos das cortes que retiravam a autonomia política e administrativa da ex-colônia, cria-se um ambiente de animosidade entre portugueses e brasileiros, decorrente da necessidade por parte do Congresso Vintista de retomar o monopólio do comércio brasileiro para proceder com a regeneração econômica do reino europeu, sendo o Brasil obrigado a renunciar à liberdade comercial adquirida (Proença, 1999, p. 30-31). Essa posição foi adotada por deputados portugueses pretensamente liberais, como Manuel Borges Carneiro, que defendiam as restrições protecionistas do período pombalino como exemplo de política econômica (p. 31).

Em Portugal, persistiam ainda o ressentimento em relação ao tratado de 1810 e a dependência a Londres para socorro financeiro e militar que escancaravam a dependência portuguesa (Adelman, 2006, p. 311-312). Esse tratado que suplantava o da Abertura dos Portos de 1808 foi negociado com Londres através do visconde Strangford e transferiu ao Brasil o comércio exclusivo que existia entre Portugal e a Grã-Bretanha desde o século XVI. Isso tornou mais barato para o Brasil importar da Grã-Bretanha (15% de impostos) do que de Portugal (16%) ou de outras nações amigas (24%), sendo o tratado mais prejudicial e desigual entre dois países soberanos (Santos, 1994b). É o caso dos escritos do deputado Manuel Fernandes Tomás que, além de ser um dos responsáveis pelos decretos que retiravam a autonomia do Brasil (Carvalho, 2003, p. 107-109), considerava, no panfleto Carta do compadre de Lisboa em resposta a outra do compadre de Belém, o reino americano uma região inculta e incivilizada (Silva, 1999, p. 238):

Concluía interrogando-se sobre qual devia ser a sede da monarquia, “a terra dos macacos, dos pretos e das serpentes, ou o país de gente branca, de povos civilizados e amantes do seu soberano?”. Perante uma linguagem tão ofensiva, não causa surpresa que no Brasil, em 1821, várias obras tenham reagido às palavras do compadre de Lisboa. (Silva, 1999, p. 239)

Como jornalista e polemista, José da Silva Lisboa (1756-1835), professor, economista e administrador, futuro barão e depois visconde de Cairu, participa ativamente dessa série de debates que acontece entre o retorno do rei e a Independência, em panfletos como Despertador Brasiliense; Heroicidade Brasileira; Glosa a ordem do dia e manifesto de 1o de janeiro de 1822 do ex-general das Armas Jorge de Avillez; e Agradecimento do povo ao salvador da pátria o senhor príncipe regente do Brasil. No periódico Reclamação do Brasil, publicado entre janeiro e maio de 1822 e que compreende uma série de 15 números, o foco está inicialmente nos assuntos relacionados à deterioração das relações entre Portugal e Brasil durante o período que antecedeu a Independência e de cuja série ainda fazem parte os panfletos Defesa da Reclamação do Brasil, os quatro números do Memorial apologético das Reclamações do Brasil e Falsidade do Correio e do Revérbero contra o escritor das Reclamações do Brasil, publicados entre fevereiro e julho. No total, Silva Lisboa publicou mais de quarenta obras de 1821 até o início da Regência (1831-1840), das quais vale ainda mencionar o periódico Conciliador do Reino Unido, primeiro jornal de um brasileiro escrevendo a partir do Brasil em março de 1821 e seus panfletos virulentos contra a Confederação do Equador (1824), como Apelo à honra brasileira contra a facção dos federalistas de Pernambuco e memória pública da lealdade da província do Rio de Janeiro (1824).

Letrado, um dos nomes mais importantes do iluminismo luso-brasileiro, responsável pela tradução de Adam Smith e Edmund Burke ao português, Silva Lisboa foi uma das mentes por trás da carta de 28 de janeiro de 1808, quando da chegada do rei dom João VI à Bahia, que acabou com o sistema colonial na América portuguesa (Santos, 1994a) e foi próximo de dom Rodrigo de Sousa Coutinho, o conde de Linhares, então poderoso ministro da Guerra e dos Negócios Estrangeiros, a quem chama de seu “ benfeitor” em carta endereçada a Strangford (Carta de José da Silva Lisboa ao Visconde de Strangford sobre a publicação da tradução de alguns extratos do Mr. Burke). As ideias reformistas iluministas de Silva Lisboa supunham que o Brasil não seria totalmente independente sem educar seus cidadãos e extirpar a “barbárie” (Paquette, 2009) e, por isso, é possível inseri-lo no que ficou conhecido como “iluminismo católico”, um “conceito heurístico que descreve o fenômeno diverso que se apoderou principalmente dos intelectuais católicos no século XVIII e início do século XIX” (Lehner, 2010).

O foco deste artigo é o seu embate contra os liberais nos três últimos números da sua mais militante publicação, Reclamação do Brasil, incluindo a inédita edição número 15. Até então, os pesquisadores da imprensa brasileira no período, como Carlos Rizzini, Hélio Vianna, Nelson Werneck Sodré e Isabel Lustosa, só mencionam os primeiros quatorze desses números da série Reclamação do Brasil, presentes no arquivo da Biblioteca Nacional.

O décimo quinto número, datado de 31 de maio, bem como uma carta endereçada ao príncipe regente d. Pedro, ambos ainda não analisados, ajudam a explicar a animosidade que se criou entre o conservador Silva Lisboa e os liberais às vésperas da Independência, a qual se inicia após a defesa por parte destes da convocação de uma Assembleia brasileira. No Brasil, a simpatia pela ideia de uma Constituição se inspirava em conceitos com significados diferentes, segundo Lucia Neves, para quem houve quatro vertentes, a do constitucionalismo histórico que retoma um conjunto de instituições do passado corrompidas pelo tempo; a de Montesquieu, pautada na separação dos poderes; a de Benjamin Constant, que defendia as garantias individuais; e a democrática, para a qual a carta “significava sobretudo um pacto político, ultrapassando seu sentido original de definir uma forma de governo e a organização da sociedade” (Neves, 2009).

Silva Lisboa vai representar a segunda vertente e, em Reclamação do Brasil, sob o pseudônimo “Fiel à Nação”, sintetiza uma visão conservadora que apoia ao mesmo tempo a autodeterminação do povo brasileiro em seu desejo de exercer o direito à sua própria estrutura administrativa, enquanto prevê que este se mantenha como parte de um grande império luso-brasileiro. Esse debate só é interrompido por sua necessidade de responder às críticas que passa a sofrer dos liberais (Lustosa, 2000, p. 79).

Essa publicação foi seguida por panfletos que respondiam exclusivamente a esses ataques que sofreu na imprensa. Em Defesa da Reclamação do Brasil, publicado em 23 de fevereiro de 1822, responde ao Compilador Constitucional, Político e Literário Brasiliense, que criticava o segundo número da Reclamação do Brasil e seu apoio a dom Pedro. Jornal de curta duração e crítico ao príncipe regente dom Pedro, é impresso pelo português José Joaquim Gaspar do Nascimento e pelo paulista João Batista de Queiroz de janeiro a maio de 1822; foi criticado por liberais e conservadores (Rizzini, 1946, p. 367). Já Memorial apologético das Reclamações do Brasil é uma resposta à campanha de difamação que o visava desde a publicação do número 14 da Reclamação e uma justificativa da sua posição contra a Assembleia brasileira já convocada por dom Pedro em 3 de junho de 1822. O último da série, Falsidades do Correio e do Revérbero contra o escritor das Reclamações do Brasil, é uma tentativa de justificar suas razões para defender a honra de alguém que “há mais de quarenta anos, se tem desvelado em bem servir ao Estado, com desempenho de seu caráter firme, não menos de patriota do Brasil, que de fiel à nação” (Falsidades..., 1822, p. 1).

Contexto e mudança de paradigma

Para entender os debates inseridos nas publicações a seguir, é importante contextualizar as disputas políticas internas do Brasil. Em decorrência da desordem causada pelos militares portugueses em 1821 e 1822, primeiro no Rio de Janeiro e Bahia, e depois no Pará, Maranhão e Ceará, e as constantes ameaças das cortes em relação à autonomia brasileira a partir de 1821, dom Pedro começou a reunir apoio de outras províncias ao seu governo contra Lisboa. Após sua bem-sucedida visita a Minas Gerais, onde conteve uma revolta e conseguiu apoio das elites, esse suporte adicional veio tanto na forma de força militar, tendo o governo do Rio enviado tropas lideradas por mercenários estrangeiros, como John Pascoe Grenfell e Thomas Cochrane, ambos britânicos, e Pierre Labatut, francês, às províncias rebeldes; como político, pelo convencimento das elites locais e câmaras municipais de que um governo encabeçado pelo príncipe regente também manteria as conquistas constitucionais (Villalta, 2016, p. 229-230).

Nessas circunstâncias, influenciado pela opinião pública expressa em panfletos e jornais liberais, e pela Representação que a Sua Alteza Real o príncipe regente constitucional, e defensor perpétuo do reino do Brasil: dirige o povo do Rio de Janeiro, pelo Senado da Câmara desta corte, à qual Silva Lisboa se opôs ferozmente, dom Pedro concordou, em 3 de junho de 1822, em convocar uma Assembleia Constituinte brasileira, tomando partido dos liberais e indo contra a opinião do seu principal ministro, José Bonifácio de Andrada e Silva, que desconfiava de “uma convenção democraticamente constituída” (Costa, 2000, p. 35).

A convocação dessa Assembleia é considerada por alguns autores como o verdadeiro momento da Independência do Brasil, embora dom Pedro tenha o cuidado de dizer em sua declaração que não se tratava de uma separação entre os dois hemisférios. No entanto, foi assertivo ao dizer que o Brasil não voltaria a ser colônia como desejavam os déspotas constitucionais de Portugal (Silva, 2003, p. 393). A imprensa, principalmente após o Fico e a expulsão da Divisão Auxiliadora do Rio de Janeiro, passou a fazer uso de jornais e folhetos para desabonar o “pacto entre Brasil e Portugal, retratando o período colonial sob a roupagem do despotismo, com maus governantes, numa relação abusada” (Souza, 1998, p. 127-128). Segundo Lustosa, aqueles “mesmos jornalistas que antes de dezembro de 1821 celebravam a nação lusitana pregando a conciliação, pouco depois se esmeravam na defesa da separação dos interesses brasileiros dos portugueses” e passaram a adquirir um tom mais agressivo com o intuito de influenciar “a opinião do príncipe, do ministério, da elite e do povo” (Lustosa, 2000, p. 25-26). A prevalência dos defensores da Independência transformou Silva Lisboa, que criticava uma assembleia só brasileira, no alvo preferencial dos ataques em uma “campanha de difamação” que o levou a temer por sua vida e “em carta dirigida a d. Pedro, solicitou que o príncipe o liberasse do comparecimento à sessão eleitoral da sua paróquia, onde se realizariam as eleições de procuradores gerais do Rio” (Kirschner, 2009, p. 220).

Essa disputa começa a partir do décimo terceiro número de Reclamação do Brasil. Até então Silva Lisboa era visto como um grande intelectual, o sábio ilustrado que usava todo seu conhecimento catedrático para rechaçar com seus escritos os ataques dos militares portugueses que, na base da força, tentavam fazer valer as ordens das cortes de Lisboa que pediam a volta do príncipe regente e o fim da administração do reino do Brasil, delegando o poder administrativo das províncias aos generais das Armas portugueses. Essas medidas eram vistas pelos brasileiros como um processo de “recolonização” que visava desestabilizar o frágil arranjo encontrado por dom João VI com a criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, já que as cortes não viam a relação entre Brasil e Portugal em pé de igualdade (Rocha, 2008, p. 10-11).

As facções liberais, principalmente o grupo de Gonçalves Ledo, influenciadas por uma leitura do teórico francês abade Dominique de Pradt (1759-1837), desde o início de 1822 consideravam a Independência um processo irreversível (Morel, 2016). Embora crítico das cortes e de sua política, Silva Lisboa ainda era um ferrenho defensor da união contra o que ele chama de “cabala antibrasílica”, o que posteriormente passa a ser visto pelos liberais como uma traição à “causa brasileira” por alguém que ficou conhecido por fazer críticas duras e fundamentadas às cortes e pelas quais o “Revérbero Constitucional Fluminense lançou um alerta aos brasileiros quanto à sinceridade ‘deste aúlico’ que, por fim, se declarava por um partido: declarava-se ‘anticonstitucional’” (Neves, 2003, p. 346).

No número 13, Silva Lisboa ainda pede aos compatriotas que mantenham a calma e aguardem as respostas de Lisboa às demandas brasileiras contra as leis votadas em 1821, apesar de críticas às cortes, pois “dividir irmãos só pode ser o fito dos deputados redatores da proposta que o príncipe real abandone o Rio de Janeiro” (Reclamação do Brasil, 1822, n. 13, p. 2). Ele suplica que se evite o surgimento de ressentimentos e extremismos que poderiam levar à ruptura e critica diretamente aqueles que buscam a Independência:

A essa classe pertencem os que ora estão mudando de farsa, e já as escancaras estão desorientando o espírito público, por cego entusiasmo ou sinistros desígnios […] sugerindo projetos inconstitucionais com vil lisonja proclamando soberano ao povo do Rio de Janeiro; não se podendo considerar soberania sendo em toda nação, que é a união de portugueses em ambos os hemisférios, como está definido nas bases da Constituição. (Reclamação do Brasil, 1822, n. 13, p. 4)

Ao concluir a edição com uma citação do seu filósofo predileto, Burke – “Néscios se precipitam a correr, onde anjos receiam passar” –,1 Silva Lisboa exorta os brasileiros a serem cautelosos para evitar qualquer desordem que possa resultar da inexperiência política, como a tragédia que seria uma “revolução” que separasse o Brasil de Portugal:

Devendo todos os bons cidadãos, que só querem justa reforma, e não revolução, esperar pela decisão das cortes de Lisboa sobre a nossa reclamação, e provisórias determinações do senhor príncipe regente, defensor do Brasil; não sendo de razão presumir, que aquele supremo Congresso, que deve ser iluminado e iluminante, não nos faça inteira justiça [...]. (Reclamação do Brasil, 1822, n. 13, p. 4)

Início dos entreveros

O número 14, que Vianna acreditava ser o último, traz como epígrafe o famoso discurso do coeditor do jornal Revérbero Constitucional Fluminense, Gonçalves Ledo.2 O extrato citado na epígrafe – “Tu já conheces os bens e os males que te esperam e à tua posteridade... Queres? Ou não queres? Resolve, senhor!” – faz parte da mesma Representação que à Sua Alteza Real […] dirige o povo do Rio de Janeiro3 e é um pedido para que dom Pedro se posicione sobre seu suporte ou não à causa brasileira e que o príncipe regente convoque uma Assembleia Constituinte no Rio com deputados das províncias brasileiras, separadas da de Lisboa. É publicado quando as relações entre os reinos de Portugal e Brasil estão em seu ponto mais baixo, após meses de instabilidade política em razão dos resultados dos decretos de setembro e outubro de 1821 e da violência no Rio e na Bahia.

Silva Lisboa é contra a criação de um Congresso brasileiro separado do português, e critica tanto a tentativa de pressionar as cortes de Lisboa por meio de d. Pedro quanto de usar a inflexibilidade daquelas para forçar ameaçar o príncipe a apoiar a causa da Independência. Por essa razão, ele analisa nessa edição as implicações da Representação, que vê como o início de uma corrida perigosa e desorganizada em direção à Independência. Essa situação põe um fim à aliança não oficial de conveniência feita com os liberais que, previamente, em nome do “objetivo comum de combater os decretos para a defesa incisiva da prioridade de negociação, principalmente das cortes”, teriam acenado com uma conciliação ao se referirem à “política egipcíaca da cortes”, para utilizar o termo cunhado pelo “patriarca da nossa literatura no seu n. 5 da Reclamação do Brasil”, mas que após as críticas de Silva Lisboa à Representação voltaram a se desentender, levando o autor de Reclamação a “exercitar sua criatividade para criar epítetos contra os homens que [...] postulavam pela implantação de uma assembleia na cena pública do Rio de Janeiro” (Silva, 2010, p. 176).

O futuro Cairu começa então essa edição de número 14 com uma crítica àquilo que ele chama de “cabala antibrasílica”, termo usado pejorativamente primeiro para se referir aos inimigos externos das cortes e aos militares que tentaram conquistar o Rio de Janeiro e Salvador, mas no qual ele inclui o grupo de Gonçalves Ledo, por tentar impor uma ditadura no Brasil, após pressionarem o príncipe regente a apoiar a Independência na famosa frase da Representação que à Sua Alteza Real […] dirige o povo do Rio de Janeiro: “Isto é visão ou lição? Assim a cabala antibrasílica (mutatis mutandis) [...] exerce ditadura” (Reclamação do Brasil, 1822, n. 14, p. 1).

O termo cabala antibrasílica, também usado por outros jornalistas conservadores como Francisco Vieira Goulart, último editor da Gazeta do Rio de Janeiro (Gazeta do Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1822, p. 4), representa parte da tradição poética do discurso conservador que “se vale de metáforas orgânicas e médicas para reafirmar a inteireza do corpo – político – contra a ameaça da desintegração, que é um fantasma necessário a espreitar toda a construção de um discurso civilizado” (Monteiro, 2003).

Dessa forma, dirigindo-se aos “fluminenses atilados, que tendes bom olho, e melhor entendimento”, Silva Lisboa confronta esse espectro, representado por aqueles que acredita que, inadvertidamente ou maliciosamente, quiseram indignar a união nacional: “Para que se antecipam as épocas, contra a razão e ordem natural das coisas?”. O que pode ser considerado um recuo na narrativa de Silva Lisboa, antes tão crítica ao governo lisboeta, representa também suas preocupações com o possível direcionamento da autonomia brasileira caso a Independência seja liderada pela facção liberal de Gonçalves Ledo. Ele acredita que a justiça está do lado dos brasileiros e que pressionar pela ruptura total foi um erro, especialmente no momento em que as cortes sinalizavam algum interesse em negociar: “Não se declara no parecer da Comissão das cortes, que, salvo o princípio da união, – tudo se há de conceder ao Brasil na sua administração interna?” (Reclamação do Brasil, 1822, n. 14, p. 1).

Para justificar seu ponto de vista, Silva Lisboa argumenta que, ao mesmo tempo em que protesta a favor dos direitos do Brasil contra os decretos das cortes e os documentos da Comissão brasileira, espera que seja julgado de acordo com os fundamentos da Constituição. Por essa razão, ele é contra o que chama de “projeto anticonstitucional e incendiário e de sedução popular, e de tremenda responsabilidade”, cujo objetivo final seria a “absurda e monstruosa Independência” e esse plano “anômalo, cerebrino, e extravagante” devendo ser abortado para evitar que a soberania brasileira seja proclamada em desacordo com a soberania nacional, ou seja, a soberania do Reino Unido (Reclamação do Brasil, 1822, n. 14, p. 1).

Por mais que os brasileiros estivessem ressentidos com a legislação votada nas cortes, Silva Lisboa vê o documento como uma medida precipitada e acredita que qualquer atitude só deveria ser tomada após a petição de 16 de fevereiro de 1822, feita por dom Pedro requisitando a eleição do Conselho de Procuradores Gerais que iriam representar as províncias e servir de conselheiros ao príncipe, provendo a necessária autonomia ao reino americano (Reclamação do Brasil, 1822, n. 14, p. 2).

Além disso, Silva Lisboa sugere que os brasileiros deveriam ter procurado negociar um acordo para se reconciliar com os portugueses, a quem chama de “pais, irmãos e parentes”: “Aceitemos as luzes de Portugal, só repelamos as suas cruzes. As difíceis matérias de governo se estão lá discutindo; sejamos dóceis, sem ser servis” (Reclamação do Brasil, 1822, n. 14, p. 2). Para o futuro Cairu a ideia de uma Assembleia Constituinte é uma farsa, paródia da Revolução Francesa, que começou com uma reunião de notáveis e resultou no império napoleônico depois de ter passado pelo terror. Silva Lisboa compara o Senado da Câmara do Rio de Janeiro à municipalidade de Paris, o que poderia levar às províncias do norte “tão esquivas, cismáticas, apóstatas, desagregadas” a enxergar a mesma supremacia arrogante de Lisboa no Rio de Janeiro e assim causar a ruptura territorial do reino brasileiro (p. 2). Silva Lisboa acredita que há esperança pois, apesar de tudo, as cortes de Lisboa não revogaram o Tratado de Navegação e Comércio com a Inglaterra.

Silva Lisboa termina a edição citando novamente Reflections on the Revolution in France, de Burke, no qual o conservador britânico descreve a liberdade como um poder que afeta seus possuidores e que, embora houvesse muitos homens brilhantes e talentosos na Assembleia Nacional da França, nenhum tinha experiência prática na administração do Estado, pois eram meros teóricos que adaptavam suas ideias ao gosto daqueles que governaram. Silva Lisboa acredita que a arquitetura orgânica e a estrutura burocrática do Estado devem ser preservadas e encontra o mesmo problema entre aqueles que lideram o processo de Independência, por isso declara que irá lutar pela “união e tranquilidade” (Reclamação do Brasil, 1822, n. 14, p. 3). De acordo com Teresa Kirschner, o futuro Cairu era crítico à ideia de uma Assembleia brasileira e reafirmou, depois de um longo período, seu apoio ao “Reino Unido” por causa de suas preocupações com a falta de um “espírito cívico” entre grande parte da elite política brasileira, particularmente no grupo de Gonçalves Ledo que, segundo Silva Lisboa, carecia da virtude pública que “implicava ‘uma renúncia dos cidadãos a si próprios’ em benefício do bem público” (Kirschner, 2009, p. 216). Como resultado, os jornais liberais (Revérbero Constitucional Fluminense, Compilador Constitucional, Político e Literário Brasiliense e Correio do Rio de Janeiro), que anteriormente o chamavam de “patriarca da nossa literatura”, passam a tratá-lo por antiliberal e “corcunda”,4 acusando-o de ter agido contra a vontade do povo em convocar uma Assembleia e destacando-o como alvo de reclamações expressas em cartas de leitores, reais ou forjadas por seus editores (Kirschner, 2009, p. 217-219).

Número perdido e capitulação

Silva Lisboa reforça seu ponto de vista e responde a essas críticas não apenas nos panfletos seguintes, mas também em um décimo quinto número, desconhecido até 1993 (Camargo; Moraes, 1993, p. 405) e ainda não devidamente analisado. Nele, Silva Lisboa continua a criticar a Representação escrita pelos liberais, argumentando que, apesar da “cabala antibrasílica”, a intervenção divina teria salvo o Brasil, pois, ao aceitar a denúncia feita pelos deputados de São Paulo, as cortes adiaram qualquer decisão da Comissão Especial de Assuntos Brasileiros a ocorrer em relação ao Brasil, “até que chegue notícias do que tenha ocorrido no Brasil” (Diário..., 1822, p. 575). Silva Lisboa acredita que essa decisão poderia salvar a “união nacional”, o que seria benéfico para todos os “amigos da ordem do Reino Unido”, e faria Brasil e Portugal escaparem do abismo para o qual “corriam temerários”. Por isso, continua dizendo que a tentativa da Representação de transmitir que os políticos cariocas eram iguais em força ao príncipe regente, “que nos tem regido com tanta circunspecção”, foi infeliz:

Respeitei o Tribunal da Consciência, e da opinião pública nacional: não quis ter comigo as domésticas assíduas fúrias dos remorsos, que me atormentassem dia e noite. Não comprei por tal preço o arrependimento. Por isso me opus. Eis a apologia que devo, e posso dar, aos compatriotas. (Reclamação do Brasil, 1822, n. 15, p. 1)

Ou seja, apesar de fingir oferecer um mea culpa, Silva Lisboa reforça sua crítica à Representação do número anterior. Agora, parece acreditar na possibilidade da “perfeita reconciliação do Estado Pai com o Estado Filho”, apesar das críticas vindas de alguns panfletos de Lisboa (“incendiárias papeladas”) que também passam a apoiar a separação do Brasil (Reclamação do Brasil, 1822, n. 15, p. 1-2).

O futuro Visconde de Cairu defende que a sociedade civil deveria na verdade regozijar-se com o fato de o Brasil, embora “ameaçado do contágio dos Congressos tumultuários dos circunvizinhos Estados democráticos”, ter decidido firmemente manter dom Pedro “para o bem comum do Reino Unido, e dar confiança a todas as nações em seu sistema liberal de comércio franco” (Reclamação do Brasil, 1822, n. 15, p. 2). Em sinal de esperança de que haveria um acordo, elogia ambos os reinos por manterem “uma união nacional conforme o espírito do século” através do sistema liberal, expandindo, ao invés de reduzir, as instituições e estabelecimentos trazidos para o Rio por dom João VI e aceitando a regência de dom Pedro (p. 2).

Em seu apoio ao príncipe regente, defende que, depois do Fico, dom Pedro deve ser considerado o farol para o qual todos os bons cidadãos devem se voltar, o centro da “união luso-brasílica” e um garantidor da paz do Brasil e prosperidade, enquanto aqueles que acreditavam que poderia haver alguma estabilidade sob novos governos com pessoas não treinadas estavam errados. A resistência da monarquia, continua Silva Lisboa, residia na sua autoridade legítima por causas naturais, como demonstram as ciências políticas. A história está repleta de exemplos desastrosos de governos de usurpadores e eleitos que não gozam do respeito de seu povo, enquanto a monarquia, argumenta ele, tem uma legitimidade atemporal:

Ao contrário, os príncipes de talentos, e bem quistos, concluem grandes feitos, e alcançam espontânea obediência, só, por assim dizer, com a vanguarda do seu nome, e a memória dos progenitores [...]. As quimeras do século não podem tirar estes sentimentos arraigados do coração humano, e o seu irresistível influxo na supremacia, e obediência. (Reclamação do Brasil, 1822, n. 15, p. 3)

Esse comentário é seguido por críticas aos “ditadores do Congresso” que querem substituir o poder local por juntas militares (Reclamação do Brasil, 1822, n. 15, p. 3); críticas aos enciclopedistas, “que sabem-tudo, ou aspirantes à ciência infusa, sendo aliás de diversas e difíceis profissões, e modos de vida, ainda que por flor retórica se lhes dê o adulatório título de flor da nação”; e ao Comitê para o Brasil das cortes cujos deputados ele chama de “diretores do drama” e “aspirantes ao otimismo regenerador” (p. 4). Ele termina sugerindo que o jornal teria uma continuação – “Continuar-se-á” –, o que não acontece (p. 4).

O décimo quinto e último número é datado de 31 de maio de 1822. Não há referência a este número em nenhum jornal da época. A razão pode ser porque provavelmente nunca tenha sido publicado, como é possível inferir de uma carta de Silva Lisboa endereçada a dom Pedro, de 29 de maio de 1822. Nela, Silva Lisboa critica o risco apresentado pela petição fomentada pela “cabala” formada pelos editores do Revérbero, A Malagueta e Correio, e afirma que corre risco de vida. Em prol da harmonia pública, pede a anuência de dom Pedro para suspender a impressão de uma publicação sem nome detalhando sua crítica à Representação, o que as evidências levam a crer que seja a edição que faltava:

Por sacrifício ao sossego público não imprima a refutação circunstanciada da Representação que impugnei na Reclamação XIV e só tenho [ilegível] ao prelo a continuação da prometida análise do vosso parecer da “Comissão do Congresso” a qual só vá à luz com positiva licença de S.A.R. apresentando primeiro um exemplar. (Carta..., 1822)

A razão pela qual acredito que esta publicação descontinuada seja o número 15 da Reclamação, é o fato da carta ser datada de 29 de maio e a edição, de 31 de maio de 1822. Além de não ter sido registrada antes nem por Rizzini ou Vianna, ela também não aparece na compilação das obras de Silva Lisboa feita por seu filho Bento da Silva Lisboa. A carta ao príncipe regente também mostra a mudança de posição ofensiva para defensiva após a publicação do número 14 e dos ataques que recebeu de Revérbero, Correio e A Malagueta. Preocupado tanto com sua vida quanto com sua imagem, pede que dom Pedro leia as críticas a ele:

Confio na bondade de V. Excelência que me perdoe o ir por esta pedir-lhe o favor de na augusta presença de V. Alteza Real [apresentar por meio desta carta] a justa petição [devido ao] risco em que está a vida de um miserável [ilegível] em real serviço por quarenta e quatro anos [sem nenhum descrédito].

Digne-se V. Excelência de ler as passagens que vão sublinhadas do incluído Revérbero e verá a extensão da cabala. Não verá A Malagueta e o Correio porque são mais violentos comparativamente ainda que igualmente falsearam e desfiguraram. (Carta..., 1822)

Segundo Lustosa, ele rapidamente percebeu que a guerra de insultos que se deflagra nos apêndices de Reclamação do Brasil, como consequência do número 14, contribuiria “para fixar alguns tipos perante seus contemporâneos e perante a história”, sendo sua imagem negativa associada a “adjetivos que os seus adversários lançaram contra ele: ‘servil’, ‘teimoso’, ‘adulador’, ‘cheio de vaidade de velhice’” (Lustosa, 2000, p. 425). Os rivais de Silva Lisboa chegaram a incluir no debate seus atributos físicos e inclinações morais, como a idade, que às vezes era usada como ferramenta para “reconhecer os aspectos positivos do personagem-alvo para dar maior realce às atitudes negativas que quer combater” (p. 425).

A incompreensão que se cria entre os dois grupos passa também por questões como a visão do processo constitucional por Silva Lisboa e pelos liberais. Enquanto o primeiro via esse processo a partir da separação de poder de Montesquieu, “mas também influenciada pela perspectiva de um constitucionalismo histórico nos moldes de Edmund Burke” na qual a Constituição arbitraria os três poderes e definiria os direitos cívicos e a formação dos parlamentos (Neves, 2009, p. 187); para os liberais essa Constituição deveria ser concebida pelo próprio povo e “garantir uma lei justa, porém flexível, capaz de impedir a supremacia do poder do monarca sobre os demais” (p. 190).

Essa visão acaba se cristalizando na maior parte dos estudos historiográficos apenas no século XX, contrastando com a percepção que se tinha de Cairu desde finais do século XIX. Até então, a partir da obra de Alfredo do Valle Cabral, Vida e escritos de José da Silva Lisboa (1881), privilegiou-se sua interpretação dentro da história econômica como se este fosse um seguidor brasileiro de Adam Smith (Rocha, 1996, p. 16). Essa historiografia expande sua interpretação de Silva Lisboa no século XX em um nicho que pode ser descrito como liberal-conservador e parte do pressuposto de que Cairu seria um “discípulo de Edmund Burke” (Belchior, 2000, p. 111) e um dos líderes da Independência, como faz parecer Wanderley Pinho, para quem “ninguém foi como ele audaz e eficaz denodado e decidido” (Pinho, 1961, p. 45), ainda que poucos tenham chegado aos arroubos retóricos de José Soares Dutra para quem é “injusto desmerecer seu papel de um dos patriarcas da Independência” (Dutra, 1964, p. 49). Em contraposição a estes se dá o “rigor da análise das fontes e posição sine ira et studio” do historiador Vianna, que prefere focar “nas relações de Cairu com a imprensa” (Rocha, 1996, p. 21).

Nos estudos modernos da historiografia brasileira prevalece a imagem consolidada pelos liberais da Independência de um Cairu em “genuflexões constantes diante do poder” (Holanda, 2016, p. 100), como faz crer Sérgio Buarque de Holanda em sua análise “marcada pelo historicismo alemão e pela sociologia weberiana” e crítica à história das elites (Arruda; Tengarrinha, 1999, p. 46-48). Para Holanda, Silva Lisboa advogaria uma “noção bem característica da sociedade civil e política, considerada uma espécie de prolongamento ou ampliação da comunidade doméstica” (Holanda, 2016, p. 100). Já Antonio Candido, fortemente marcado pela história social da missão francesa da Universidade de São Paulo (Arruda; Tengarrinha, 1999, p. 48-53), o considera uma figura menor “quanto ao pensamento social e sua expressão” (Candido, 1975, p. 245).

Mais radical, Sodré acredita que a direita personificada no “infalível” Silva Lisboa “temia a Independência, como tantos pretensos revolucionários que, no fundo, temem a revolução”, pois negava “permitir a existência de poder de origem popular, como a Constituinte” (Sodré, 1999, p. 55), o que dialoga com as já mencionadas visões divergentes da Constituição abordada por Lucia Neves, mas peca ao não enxergar aspectos positivos na obra de Silva Lisboa, pois, dentro da tradição marxista, tenta enquadrar a Independência do Brasil na “unicidade e linearidade da lei do desenvolvimento” e na “irreversibilidade absoluta da história” com “seu progresso incessante e ‘aos saltos’” (Carbonell, 1987, p. 146). É por isso que em alguns trabalhos posteriores como o de Lustosa, Silva Lisboa ainda é apresentado como o “cínico” líder da facção “carcundática” e “fiel vassalo” da coroa contra a “radicalização” (Lustosa, 1999, p. 31-32).

Conclusão

A historiografia do século XX acabou por simplificar o papel de Silva Lisboa em um processo complexo que apresentava uma linha tênue entre aqueles que eram pró ou contra a separação. Para Sodré, por exemplo, o apelo dos editores liberais por uma Constituição brasileira foi central para o avanço da causa da Independência e o “sentido democrático da decisão não podia escapar ao senso dos mais sagazes” (Sodré, 1999, p. 55). O autor considera que esse é o momento de ruptura entre “esquerda”, os liberais, e “direita”, simbolizada por Silva Lisboa, que até então estavam unidas em suas críticas às decisões das cortes sobre o Brasil, com a última fazendo “coro com o inimigo, o dominador português” (p. 55).

Trata-se de uma meia verdade, pois Silva Lisboa, além de pioneiro na crítica às cortes de Lisboa em publicações como Despertador Brasilense e Heroicidade Brasileira, em nenhum momento se coloca contra a autonomia do reino do Brasil ou apoia as decisões vindas de Lisboa, pelo contrário, como mostra o número 15 de Reclamação do Brasil, é possível concluir que Silva Lisboa voltaria a atacar as decisões das cortes e se mostra disposto a continuar nesse caminho crítico a Lisboa, mas acaba tomado pelos debates contra os liberais, o que o leva inclusive a ser expulso do colégio eleitoral que vai escolher os representantes para a Assembleia brasileira, conforme relatado no panfleto Protesto do diretor dos estudos contra o acordo da Junta Eleitoral da Paróquia de S. José, o primeiro que ele assina com o próprio nome criticando tal decisão.

Todavia, é interessante notar como esses embates ao redor da convocação ou não de uma Assembleia brasileira independente ajudaram a reforçar os traços pitorescos de Silva Lisboa como o velho diletante com tendência a se curvar ao poder, que se gabava de sua proeza intelectual, e como isso ofuscou suas contribuições ao surgimento da imprensa livre no Brasil, e à própria causa da Independência, passando a ser visto como um apóstata que renunciou à causa do constitucionalismo.

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Recebido em 28/2/2022

Aprovado em 27/4/2022


Notas

1    ‘‘Fools rush in where angels fear to tread”, citado por Burke de Alexander Pope (Burke, 2003, p. 39).

2    ‘‘A XIV e última parte da Reclamação do Brasil, apesar de erroneamente datada de 23 de março de 1822, é de 23 de maio, pois na epígrafe e no texto comenta o célebre discurso de Joaquim Gonçalves Ledo de 20 deste mês” (Vianna, 1945, p. 383).

3    Em carta ao pai, dom Pedro pede sua compreensão sobre seu apoio à Independência do Brasil, que considera ser um ‘‘Estado de primeira” enquanto Portugal se via reduzido a um ‘‘Estado de quarta ordem e necessitado, por consequência dependente”. Ele transcreve todo o documento defendendo uma Assembleia brasileira e finaliza com o discurso de Gonçalves Ledo. Ver: Cartas e mais documentos dirigidos a sua Majestade o senhor d. João VI pelo príncipe real o senhor d. Pedro de Alcântara com as datas de 19 e 22 de junho deste ano: e que foram presentes às cortes... da nação portuguesa em a sessão de 26 de agosto (1822, p. 4-17).

4    Segundo Lúcia Neves, a palavra “corcunda” ou “carcunda” foi usada como modo de criticar as “antigas formas de governo despótico que sugeriram atitudes de reivindicação a favor da liberdade [...] tornando-se, algumas vezes, um vocabulário maldito ou mots exécrés” (Neves, 2003, p. 121, grifo do original).



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