Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 1, jan/abr. 2023

Espaços urbanos e metropolização no Brasil (1940-1970) | Dossiê temático

Uma cidade em transição

A construção dos problemas urbanos de Natal à luz dos estudos Serete (anos 1960 e 1970)

A city in transition: the construction of Natal’s urban problems in view of the Serete studies (1960s and 1970s) / Una ciudad en transición: la construcción de los problemas urbanos de Natal a la luz de los estudios del Serete (décadas de 1960 y 1970)

Stephanie Macedo Collares Moreira

Mestranda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Brasil.

stephaniemacedo.moreira@gmail.com

George Alexandre Ferreira Dantas

Doutor em História da Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Departamento de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFRN, Brasil.

george.dantas.af@ufrn.br

Alexsandro Ferreira Cardoso da Silva

Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela UFRN. Professor do Departamento de Políticas Públicas e dos programas de pós-graduação em Estudos Urbanos e Regionais e Arquitetura e Urbanismo da UFRN, Brasil.

alexsandro.silva@ufrn.br

Resumo

Este artigo discute as mudanças no padrão de urbanização de Natal no contexto de reestruturação dos marcos do planejamento urbano da cidade. Para tanto, analisa os estudos que embasaram a elaboração do Plano Urbanístico e de Desenvolvimento de Natal, de 1968, de responsabilidade do Escritório Serete S/A e, na parte urbanística (de leitura da forma e da paisagem urbanas, de análises e projetos), pelo escritório Jorge Wilheim Arquitetos Associados.

Palavras-chave: Jorge Wilheim; planos urbanísticos; história urbana; favela.

Abstract

This paper aims to discuss the changes in Natal’s urbanization standard in the context of the restructuring of the citiy’s urban planning instruments. To this end, it analyzes the studies used as base for the elaboration of the Urban and Development Plan of Natal, of 1968, by Escritório Serete S/A and, in the urbanistic part (i.e. reading urban structure and landscape, analysis and projects), by Jorge Wilheim Associated Architects.

Keywords: Jorge Wilheim; urban planning; urban history; shantytown.

Resumen

Este artículo discute los cambios en el estándar de urbanización de Natal en el contexto de la reestructuración de los instrumentos urbanísticos de la ciudad. Para eso, analiza los estudios que apoyaron la elaboración del Plan Urbanístico y de Desarrollo de Natal, de 1968, a cargo de la Empresa Serete y, en la parte urbanística (de lectura de la forma urbana y del paisaje, análisis y proyectos), por la oficina de Jorge Wilheim Arquitectos Asociados.

Palabras clave: Jorge Wilheim; plan urbanístico; historia urbana; villa miseria.

Introdução

Os anos 1960 são marcados pela alteração na distribuição populacional, de rural para urbana, nos municípios brasileiros, consolidando a transição campo-cidade iniciada nos anos 1940. De fato, entre os censos demográficos de 1950 e 1960 a taxa geométrica de crescimento da população urbana alcançou 5,47% ao ano (superando os 3% ao ano da população total), passando de 36,2% para 45,1% e alcançando 56% em 1970 (IBGE/Sidra, censos demográficos 1950, 1960 e 1970; Bremaeker, 1986).

O Brasil passou, desse modo, de 52 milhões de habitantes em 1950 (quando 63,9% dessa população vivia no campo) para mais 93 milhões em 1970 (dessa vez, 56% dessa população era considerada urbana). Esse quadro tornou cada vez mais dramáticas as condições de vida nas cidades brasileiras, pressionadas pela pobreza, favelização, ausência de empregos adequados, pressão do mercado imobiliário em busca das melhores áreas de expansão, falta de moradia e expansão residencial em áreas periféricas (Maricato, 1982).

Esse quadro, juntamente com a mudança política trazida pelo golpe militar em 1964, nos auxilia a entender as novas ideias, as condições sociais e materiais da organização física das cidades e de sua estrutura de planejamento. Mais especificamente, as rearticulações de demanda por um planejamento urbano que se instrumentalizou para desenvolver novas abordagens teóricas, normativas e técnicas na tentativa de organizar o intenso processo de urbanização, cuja pressão migratória e rápido crescimento dos assentamentos informais, mesmo em cidades menores como Natal (RN), colocaria uma série de dilemas para gestores, técnicos, políticos, movimentos sociais e para a dinâmica da vida urbana da população como um todo.

É em meio à ascensão de um governo autoritário, no bojo de uma crise política e econômica, seguida do que seria chamado, a partir de 1970, de “milagre econômico” e que terminaria na desaceleração da economia brasileira, perfazendo em linhas gerais o período entre 1962 e 1980 (Clementino, 1990), que localizamos a transição para um novo ciclo ou padrão de urbanização, na qual se desenvolvem as transformações de que trataremos aqui. É nesse contexto que se estabelece a demanda pelos chamados planos integrados que, depois, iriam convergir para os planos diretores. Junto à consolidação do governo militar surgem o que parte da historiografia chamaria de “superplanos”, que buscavam unir as ideias de globalidade, marcados por extensos diagnósticos sociais e econômicos, sofisticação técnica e interdisciplinaridade. Esses planos eram chamados de Planos Diretores de Desenvolvimento Integrado (PDDI) ou Planos de Desenvolvimento Local e Integrado (PDLI) e visavam “ao desenvolvimento social e econômico do município bem como a sua adequada organização territorial” (Villaça, 1999).1

Juntamente às medidas de cunho econômico tomadas na época do “milagre econômico”, desenvolve-se uma espécie de pressão corporativa pelas políticas de planejamento ou mesmo uma “indústria” dos planos diretores (Villaça, 1999; Lima, 2001; Feldman, 2019; Faria, 2019), no sentido de que a elaboração de PDDI era colocada como uma das condições para que os municípios se candidatassem a receber financiamentos. Durante o “milagre”, havia uma clara ênfase e um estímulo financeiro à elaboração de planos urbanos por meio do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (Serfhau). Esse momento conturbado e de crescente centralismo e autoritarismo levaria, por um lado, à desmobilização das demandas sociais por reforma urbana e agrária e, por outro, a certa continuidade dos debates sobre o campo do planejamento, que desembocaram na sua institucionalização, em âmbito federal sobremodo (Faria, 2019).

Durante esse período, a prefeitura de Natal também buscou angariar recursos para atualizar os marcos urbanísticos e elaborar um novo plano de desenvolvimento da cidade. Para tanto, contratou o escritório Serete em 1967, com a consultoria do escritório Jorge Wilheim Arquitetos Associados, para tratar das questões urbanísticas.2 A princípio, não se diferenciando de outros do mesmo período, o escritório Serete acabaria por fazer um estudo aprofundado da realidade da cidade que, ao cabo, não seria executado. Mas essa afirmação é apenas um ponto de partida: os estudos conduzidos pelo escritório e, em especial, a leitura urbanística realizada pela equipe de Wilheim (que contava, entre vários, com a arquiteta Rosa Kliass a cargo do paisagismo e o arquiteto Abrahão Sanovicz, responsável pela comunicação visual) apontam tanto para um modelo que tenta evitar a lógica dos superplanos, como discutiremos adiante, quanto serviriam depois, por meio da atuação de arquitetos de Natal que compunham o chamado “grupo local de acompanhamento”, como base para a elaboração dos planos diretores oficiais subsequentes, em especial o de 1974. Apesar de uma série de simplificações e mediações, ainda assim esses esforços ajudariam a adensar o debate sobre novos problemas urbanos e auxiliariam a constituir uma esfera técnica de discussão (com a criação do Conselho Municipal de Planejamento) que teria desdobramentos no plano diretor de 1984.

É considerando todo esse contexto em que está inserida a escolha e contratação do escritório Serete, bem como sua identificação com os planos integrados nacionais, que optamos por utilizar os originais dos estudos para o Plano Urbanístico e de Desenvolvimento de Natal (neste artigo usaremos a denominação plano Serete), de 1968. Podemos analisar assim os planos diretores também como uma saída síntese de debates mais amplos. Mas que debates eram esses? Que leituras de cidade se expressam por meio dos estudos e dos documentos legais? O plano Serete é tomado então como porta de entrada para discutir como seriam formulados e debatidos os problemas urbanos de Natal nos anos 1960 e 1970.3

Esses questionamentos são alguns de uma série de outros, norteadores de uma pesquisa mais ampla que busca reconstruir e organizar, à luz das perspectivas da história cultural urbana e de uma história intelectual do planejamento da cidade do Natal, os debates, formulações, tradições e filiações teóricas e de prática urbanística que secundam a elaboração desses instrumentos e marcos legais.4

Nesse contexto, alguns temas e questões urbanas seriam iluminados e problematizados por esses estudos e, em consequência, passariam a fazer parte da agenda da administração pública. Considerando a análise do plano Serete (1968), tentaremos responder algumas dessas questões. Para isso, cruzamos também o texto do plano com a historiografia urbana sobre Natal e com a pesquisa realizada nas coleções do Diário de Natal e de O Poti, disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.5

O artigo se estrutura então em quatro seções: a primeira insere o plano Serete numa rede mais ampla de tradições e escolas de pensamento sociológico, assim como a visão de cidade que é incorporada pelo escritório de Wilheim, dando ênfase ao que o plano entenderá como “problema urbano” e a quais serão destacados em termos de explicação e soluções; a segunda seção discute o contexto de urbanização e de reconstrução dos marcos de planejamento de Natal no período. Os dois subtítulos seguintes analisam mais detidamente dois desses problemas: a configuração urbana da cidade e a questão das favelas e da população marginalizada da vida urbana. Ao final, retomamos a leitura urbanística síntese, construída pelo plano Serete para estruturar o que consideravam como os grandes problemas urbanos a serem enfrentados e resolvidos.

Os novos ideários do planejamento e o plano Serete

Período de transformações cruciais, como é consabido, os anos 1960 entraram na história como uma era de contestações sociais, reações conservadoras e luta política. O urbanismo, como campo disciplinar e profissional, assim como o planejamento urbano e regional, seguiu a tendência de reflexão crítica presente nas ciências sociais e, ao seu modo, iniciou uma revisão dos modelos consolidados, sejam eles na sua versão “modernista” ou “weberiana”. Distintas abordagens, contudo, “disputavam” a primazia da explicação sociológica ou econômica prevalente; os neomarxistas iniciam uma virtuosa frente na sociologia urbana francesa, recuperando aqui e ali os textos de Karl Marx, uns voltados à orientação partidária, outros – como Henri Lefebvre (2001) – ampliando o pensamento crítico marxista para além do economicismo vulgar das décadas anteriores. Na escola estadunidense, por outro lado, a sociologia urbana e a geografia urbana “atualizavam-se” depois de quase trinta anos de dominância da Escola Ecológica de Chicago – agora vista como desatualizada frente às modernas técnicas de pesquisa quantitativa.

Em linhas gerais, seja nas abordagens compreensivas e conservadoras, seja na visão crítica e contestadora, a visão de dualidade nos modelos teóricos era prevalente: atrasado versus moderno, urbano versus rural, marginal versus integrado, entre outras, eram explicações gerais baseadas em pesquisas sobre a atividade econômica, a organização comunitária, o papel da família ou do mercado de trabalho. É possível apontar que, na aplicação da ciência social (sociologia, ciência política e economia) no urbanismo, os técnicos reproduzissem tais dicotomias sem, contudo, compreender de modo adequado as razões práticas e seus impactos na efetiva dinâmica urbana (Rattner, 1974).

Nesse debate, as cidades assumiram uma posição importante, seja na linha “reformista” ou revolucionária. No campo das reformas urbanas (não críticas), os estudos urbanos, regionais e a sociologia urbana intensificaram as explicações sobre o impacto da reestruturação industrial capitalista (que começava a dar sinais de fragilidade), discutindo o efeito das novas tecnologias no ambiente de trabalho fabril (com a introdução da microeletrônica e uso intensivo de novos métodos de administração) e o aumento consequente de novas estruturas físicas na cidade – meios de transporte, comunicações de massa, técnicas construtivas, entre outros. Nas pesquisas críticas sobre as cidades, destacavam-se os estudos sobre o impacto da indústria na urbanização pelo crescimento das áreas habitacionais (“inchaço” urbano), migração campo-cidade, formação do “exército industrial de reserva”, pobreza e caos sistêmico na mobilidade urbana (Pereira, 1976).

De certo modo relegada dos ensaios críticos até os anos 1950, a cidade e o urbano tornam-se temas presentes no estudo sobre o desenvolvimento econômico dos países e regiões. Na América Latina, a influência da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) foi decisiva para a manutenção das teses do subdesenvolvimento regional como fator explicativo da precariedade de vida nas cidades e do atraso tecnológico em relação aos países centrais. Autores como o argentino Raúl Prebisch (2011) e o brasileiro Celso Furtado (1966) foram fundamentais na formulação de teorias explicadoras da dependência latino-americana, dos arranjos de classes, do funcionamento do Estado sob capitalismo avançado, da contradição aparente entre “moderno” e “atrasado”, da subindustrialização, entre outros (Oliveira, 2003; Wasserman, 2017).

Em relação às influências teóricas estadunidenses, as décadas de 1920 a 1950 foram de domínio da sociologia urbana da Escola Ecológica de Chicago – liderada por Robert Park, mas superada e criticada em diversas frentes, dentro e fora dos Estados Unidos (Eufrasio, 2013). Os escritos críticos do francês Henri Lefebvre já despertavam, na Europa, a releitura dos textos de Karl Marx, sem a obrigação do dogmatismo partidário soviético, atraindo assim jovens sociólogos, geógrafos e arquitetos na leitura cruzada entre capitalismo e urbanização (Gottdiener, 1997).

A investigação sobre a produção do espaço nos países pobres (ou subdesenvolvidos), associada ao ritmo acelerado de industrialização na periferia, produziu estudos com ênfase na “negatividade” de todo esse processo. Seus efeitos se revelavam na marginalização, periferização, pobreza e insegurança, atraso sistêmico, moradia subnormal, migração campo-cidade “fora de controle”, entre tantos subtemas do problema central da indústria e seu impacto na cidade (Rattner, 1974). No Brasil, essa vertente foi desenvolvida por autores importantes como Luiz Pereira (Urbanização e subdesenvolvimento, 1969), Paul Singer (“A cidade e o campo no contexto histórico latino-americano”, 1972) e Milton Santos (O espaço dividido, [1978], 2008).

As análises sociológicas precedentes da Escola Ecológica “falharam” em não entender que o arcaico e o moderno podem conviver (de modo contraditório) sem que levem, necessariamente, à superação das condições do atraso. As cidades latino-americanas eram provas de que os setores mais avançados da economia não apenas conviviam, mas dependiam dos setores urbanos mais pobres. A tese da causação circular da pobreza, inspirado na reflexão de Gunnar Myrdal (1968), servia a uma base interpretativa de que apenas com um forte empuxo de fora do ambiente endógeno desses espaços era possível “escapar” da circularidade entre causa-efeito-causa. O planejamento urbano, se corretamente entendesse o funcionamento das cidades de um modo qualitativo (e não apenas quantitativo), poderia ser essa alavanca.

É nesse sentido que Jorge Wilheim propõe um “urbanismo brasileiro” como uma estratégia desenvolvimentista (Wilheim, 1969, p. 89) e por desenvolvimento entende transformações qualitativas; assim, não atribui ao técnico ou artista a capacidade de realizar diretamente a transformação da realidade urbana. Wilheim recusa os modelos vigentes nos anos 1960 de grandes e complexos planos, sendo crítico do planejamento tradicional, o qual ele refuta como preocupado em maximizar resultados e otimizar recursos. Dessa forma, haveria mais planos “nas gavetas” do que implantados, devido a uma “idealização presunçosa de um urbanismo otimizador; a incompreensão da natureza do fenômeno urbano; e o caráter exclusivista da classe paternalista que deseja substituir uma lenta práxis social por planos impostos” (p. 90).

Ermínia Maricato também lembra, a esse respeito, que os “superplanos” elaborados nos anos 1960 mantinham certa distância da realidade concreta, embora fossem extremamente detalhados. Por exemplo, o chamado “plano Doxiadis” para o Rio de Janeiro (entre 1963 e 1965), encomendado pelo governo de Carlos Lacerda ao urbanista grego Constantino Doxiadis, tendo “sido redigido e impresso em Atenas e entregue ao governador em inglês” (Maricato, 2009, p. 138).

No Brasil, a questão da moradia já estava posta na agenda pública desde os anos 1930 e 1940, em especial pela ênfase dos governos de Getúlio Vargas ao tema – como estratégia política, e pelo acumulado de propostas técnicas vindas do campo profissional da arquitetura e engenharia (Leme, 1999). No início do governo João Goulart, as reformas de base debatiam a necessidade de uma reforma urbana como uma das diretrizes estratégicas, com argumentações dentro e fora do governo. Jorge Wilheim participou e atuou no sentido de fortalecer esse tema entre os arquitetos, urbanistas e engenheiros, inclusive sendo coordenador de grupo de trabalho para construção de anteprojeto de lei da reforma urbana, em 1963 (Koury, 2013).

No plano Serete aparece, desde o início, a defesa de uma análise que considere duas estruturas urbanas, a física e a social. A ideia que subjaz é apresentar uma relação (não de equilíbrio pleno) entre as duas, abordando a funcionalidade da cidade e os modos de vida – ou “sentidos da vida” urbana de Natal. O plano pressupõe uma sociedade sendo composta por subsistemas funcionais e interdependentes, cada um respondendo às provações físicas ou sociais do meio.

“Cada subsistema de vida é utilizado pela população residente que convive e executa alguma função urbana, na qual os interesses convergentes assumem papéis sociais complementares, através dos quais interagem” (Serete, 1968, p. 2). As pessoas na cidade exercem múltiplos papéis e participam de diferentes subsistemas, ora se aproximando, ora se afastando, gerando a diferenciação e a organização social pela aglomeração.

A migração campo-cidade é uma das razões explicadoras dos problemas entre a estrutura física e os sistemas de vida, pois esses migrantes dispunham de valores e hábitos rurais com forte “dependência de contatos e relações sociais primários, observa-se, na cidade, a inexistência de instituições e serviços que facilitem o seu ajustamento às condições específicas de um meio urbano em constante expansão” (Serete, 1968, p. 4). Nessa passagem, ainda percebemos a influência no plano Serete da sociologia urbana ecológica, especialmente da leitura de Louis Wirth (1973), sem, contudo, cair em determinismos fáceis ou psicologismos apressados. Não advém, na leitura do plano, uma escolha sociológica a priori (embora esteja presente), mas é da condição relacional entre estrutura e sentidos de vida que a argumentação define um quadro comprometido com o desenvolvimento, com a transformação da realidade.

O intuito desse desenvolvimento social, contudo, não parece ter sido a provocação original do prefeito Agnelo Alves ao encomendar o plano a Jorge Wilheim, se tomarmos como testemunho o próprio Agnelo que, em 1999, escreveu sobre suas motivações:

Desobstruir para crescer. Alargar para trafegar. Conversei com os arquitetos João Maurício e Daniel Holanda. Como fazer? Lancei o desafio. Sem a contrapartida de nenhum pagamento, os dois me apresentaram o esboço da solução, surgindo daí o primeiro plano viário de Natal com a primeira estação metropolitana da cidade. (Agnelo Alves apud Miranda, 2010, p. 104)

João Maurício Miranda foi um dos arquitetos locais (junto com Daniel Hollanda e Moacyr Gomes) que auxiliou a equipe técnica do escritório Serete na visita a Natal e que continuou a acompanhar os seus desdobramentos até 1974, quando da elaboração do plano diretor. O sentido de projetos de intervenção viária, abertura de ruas, criação de novos espaços públicos era a tônica do prefeito Agnelo Alves ao solicitar – à luz do plano diretor de Curitiba – novos rumos urbanísticos para Natal. O plano Serete esperava mais, pois “o objetivo do plano [é], a saber: a transformação da realidade física de Natal, com fito de torná-la cada vez mais adequada a uma rica, intensa e criativa vida urbana” (Serete, 1968, p. 5).

Seu diagnóstico é pouco convencional, à época, pois está baseado em cinco sistemas de vida urbana, isto é, a) subsistir – grande preocupação social aos mais pobres e ao seu trabalho precário; b) mercadejar – estruturas voltadas ao comércio e aos serviços; c) estudar – itinerários dos alunos e professoras às escolas e como a cidade poderia facilitar esse deslocamento; d) abastecer – feiras, mercados e distribuição de insumos e alimentos; e) recrear – modos de diversão, entretenimento (cinema, teatros), praia, clubes. Podemos notar que o esquema da Carta de Atenas (circular, morar, trabalhar, recrear) aqui foi repensado, tornando-se mais um quadro social vivo e ativo que uma base para zoneamento; o interesse do plano Serete estava em entender a dinâmica dos espaços físicos, associados ao fluxo dos grupos sociais urbanos.

Sua pesquisa (aplicou 908 entrevistas em Natal) revela preocupações como “com qual frequência o sr. vai ao cinema” ou “à praia”, como se diverte, ou chega à escola. Mas, ao fim, expressa que “o desejo e a aptidão à mudança ou progresso social pela população parecem ser bem limitados, talvez explicável, em parte, pelas atitudes de resignação, passividade, fatalismo, misticismo que facilmente se manifestam através de ideias e comportamentos individuais e coletivos” (Serete, 1968, p. 95).

Jorge Wilheim, ao escrever sobre seu método de trabalho, explica que a compreensão adequada ao urbanismo se dá em associar “vida urbana” com “consciência social” (Wilheim, 1969, p. 13). Marcado pela leitura de O direito à cidade, de Henri Lefebvre ([1968] 2001), Wilheim acredita que a função de um plano é transformar a cidade em “um lugar de consumo e de consumo do lugar, um espaço a ser realmente usufruído” (Wilheim, 1969, p. 13). Seguindo, também, a orientação do planejador regional John Friedmann (1966), o plano para Natal busca reconhecer os potenciais do lugar, concentrar as ações em núcleos mais propícios a mudanças (inclusive com novos valores e instituições). Ainda assim, Wilheim não deixaria de criticar Friedmann: diz que esse autor possui um “forte empirismo” que pode levar a um “oportunismo político”, pois Friedmann admitiria que seria difícil transformar o “planejamento inovador” em um plano, código ou documento institucional (ou seja, uma lei municipal), no que Wilheim discorda.

O caráter do plano traduz-se por um roteiro em que se distingue o que é substantivo do que é adjetivo para a estratégia desenvolvimentista da cidade em pauta. [...] o plano de que nossas cidades necessitam deve ser o primeiro passo de uma forma planejada de conduzir o futuro da cidade; ele deve ser capaz de germinar um processo irreversível na administração local: sua elaboração já deve ser início de implantação. (Wilheim, 1969, p. 99-102)

A atuação de Jorge Wilheim, seja à frente de equipes técnicas e coordenando pesquisas e estudos para planos diretores, seja na defesa escrita de nova metodologia, revela um arquiteto e urbanista preocupado não apenas com a técnica, mas sobretudo com o papel do planejamento como ferramenta fundamental ao desenvolvimento social. Os anos 1960 trouxeram, ao Brasil, enormes desafios ao confrontar sua industrialização forçada com os estruturais problemas sociais encravados nas cidades. O debate pela reforma urbana trouxe ao primeiro plano a incapacidade do Estado em promover as superações de dependência, estando os municípios ainda afeitos aos modelos convencionais (quando muito) do urbanismo de melhoramentos urbanos ou de modernização de áreas centrais. Nesse sentido, a “Era Goulart” buscou articular o planejamento como peça central da transformação social, pois “não obstante ser ele instrumental”, se constituía em uma das reformas de base (Goulart apud Fernandes, 2019, p. 79).

Uma das formas de mudar o sentido do planejamento urbano brasileiro dava-se pela introdução dessa literatura crítica, atualizada com os estudos europeus e estadunidenses, mas que buscava uma explicação social e econômica própria, com especial atenção ao pensamento latino-americano. Jorge Wilheim é um desses importantes difusores de um novo olhar ao plano e é importante pesquisarmos ainda mais as diferenças e semelhanças entre seu pensamento e suas realizações. O “Plano Urbanístico e de Desenvolvimento de Natal”, como o próprio Wilheim asseverou, é o primeiro “exemplo de uma estratégia global com suas operações de implantação” (Wilheim, 1969, p. 15).6

Um contexto de novas questões e necessidade de planejamento

Em 1964 foram criados o Banco Nacional de Habitação (BNH) e o Serfhau, que gerenciava o Sistema Nacional de Planejamento para o Desenvolvimento e tinha por finalidade “induzir os municípios a elaborarem planos diretores”. A criação dessas duas instituições demonstrava o interesse em atuar diretamente sobre as cidades não apenas na oferta de habitação. No entanto, Lima (2001) afirma que em pouco tempo o BNH se transformou em um órgão setorial indutor da produção de habitações, consolidando-se enfim como um banco. Segundo Villaça (1999), havia um fenômeno característico em torno dos tais superplanos – o distanciamento entre as propostas contidas nos documentos e suas possibilidades sociais e institucionais de aplicação. Por que isso aconteceu? Bem, primeiramente, existia um conflito entre propostas que eram cada vez mais abrangentes e estruturas administrativas cada vez mais setorizadas e especializadas. Essa separação gerava dificuldades e indefinições quanto à aprovação dos planos, uma vez que até então esses eram da alçada do Executivo e, a partir da incorporação de leis e recomendações das mais diversas naturezas, passaram a ser também da alçada do Legislativo (Villaça, 1999).

Outra característica importante e que talvez ajude a explicar o que acontecia aos superplanos era o fato de ser uma prática dominada por especialistas de escritórios privados, contrapondo-se à dinâmica anterior. Havia um certo apelo em se contratar escritórios com profissionais multidisciplinares com o argumento de que trazia mais base científica para o planejamento e também o caráter integrado. O que se viu, via de regra, foi que muitos desses planos, com seus extensos diagnósticos e trabalhos de campo, foram relegados às prateleiras. O principal exemplo desse tipo de plano foi o Doxiadis para o Rio de Janeiro, de 1965, como dito na seção anterior. O volume, elaborado por um escritório grego e publicado em inglês, possuía quase quinhentas páginas de estudos técnicos, das quais nove eram de implementation e uma única de recommendations.

O possível “fracasso” dessas iniciativas, a nosso ver, está fundado no afastamento que tais diagnósticos mantinham dos conflitos concretos, reais, e não apenas de método ou modelo. Os problemas sociais (e urbanos) decorrentes da rápida urbanização ‒ pela qual passavam as cidades nos anos 1960-1970 ‒, exigia uma aproximação dos grupos sociais diretamente envolvidos, mas a “participação” não era a prática desse tipo de plano, ainda mais em um contexto político autoritário. Repunha-se, assim, a incapacidade do planejamento em ser um instrumento mediador do conflito de classes, restando a formulação de cenários que dependeriam fortemente de uma gestão profissional e de recursos para obras e projetos.

É justamente em cima da característica desses planos de serem elaborados a partir de equipes multidisciplinares, fazendo diagnósticos da realidade, com métodos de base e resultando em extensos relatórios que culminavam geralmente em diretrizes, que talvez possamos pensar no “fracasso” de suas possibilidades de aplicação. Considerando uma realidade em que o milagre econômico e as vias de desenvolvimentismo eram prioridade, uma variedade de problemas sociais passou a fazer parte dos resultados obtidos pelos estudos. Obviamente, essas questões já existiam, mas agora eram nomeadas e discutidas como problemas urbanos e que deveriam entrar na agenda da administração, o que levou a novas tensões com o interesse das classes dominantes, distanciando-se, portanto, das possibilidades de aplicação e institucionalização desses planos na rotina das gestões municipais. Repunha-se aí, em novas bases, a questão do planejamento como instrumento mediador de potenciais conflitos de classes. Como afirma Lima (2001), o padrão planejado não é senão uma maneira transformada do conflito social, no qual o Estado desempenha o seu papel de ordenar a sociedade em função das necessidades do mercado, da acumulação e da reprodução do capital.

Para compreender como seriam formulados e nomeados os problemas urbanos em Natal nas décadas de 1960 e 1970, é importante sintetizar inicialmente como as questões locais se relacionam com esse contexto nacional e como vai se construindo essa necessidade de instrumentalização do planejamento, que levará o poder público a solicitar a elaboração de um plano diretor.

Em termos de planejamento, a baliza de ordenamento urbano até o final dos anos 1950 ainda eram os planos urbanísticos elaborados nos anos 1920 e 1930 (Plano Geral das Obras de Saneamento, de Henrique de Novaes, de 1924, Plano Geral de Sistematização, de Giacomo Palumbo, de 1930, e Plano Geral de Obras, do escritório Saturnino de Brito, de 1935-1936, cuja inauguração das obras, em 1939, dotou a cidade de infraestrutura avançada e com capacidade de carga para atender toda a população e mais dez anos de crescimento demográfico com folga, não fossem as reviravoltas decorrentes do contexto da Segunda Guerra Mundial e os impactos em Natal, por conta da instalação das bases militares brasileiras e americanas). Todos esses planos incorporaram e expandiram a lógica da malha ortogonal da criação da chamada Cidade Nova pela intendência municipal nos primeiros anos do século XX (Ferreira et al., 2008).

Já Clementino (1990) destaca alguns elementos característicos da urbanização de Natal na época pré-Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste). O ritmo de concentração de população em relação ao período anterior diminuiu e voltou a aumentar nos anos 1960, chegando a dobrar a população nesses vinte anos, passando de 55 mil habitantes em 1940 para 103 mil em 1950 (aumento de 88,2%). Esse aumento relaciona-se com a fixação de contingentes militares brasileiros. Clementino aponta a falta de condições da capital potiguar para abrigar a atividade militar, principalmente em aspectos ligados ao abastecimento, disponibilidade de moradias, infraestrutura urbana (transportes, hotéis, pensões), custo de vida e defesa civil. Desencadeia-se também um processo rápido de especulação imobiliária por meio, principalmente, dos loteamentos (nas décadas de 1950 e 1960), assim como surgem os primeiros programas de grandes conjuntos habitacionais (principalmente a partir da década de 1970, como Ponta Negra, Alagamar, Candelária e os primeiros da Zona Norte). Além disso, novas conexões territoriais se estabelecem a partir de grandes obras federais, em especial das rodovias federais (no caso de Natal, a conexão da nova entrada da cidade pela BR-101).

Ferreira (1996) destaca alguns momentos importantes relativos ao processo de constituição do espaço urbano na segunda metade do século XX: houve a formação de um mercado de terras e uma intensa produção fundiária (basicamente, parcelamento do solo por meio de loteamentos privados, gerando também um significativo estoque de terras) entre 1946 e o início da década de 1970. A autora identifica também a produção em grande escala de moradias através de conjuntos habitacionais tanto sob encomenda do Estado e cooperativas como por meio do sistema de incorporação imobiliária (até a primeira metade da década de 1980). Além disso, acontece a intensificação do uso do solo urbano por meio da mudança no porte das construções, aumentando a densidade demográfica dos bairros consolidados e substituindo antigas construções (o processo de verticalização, iniciado ainda nos anos 1960, ganharia força a partir do final dos anos 1980). 

É preciso observar que, embora em pequeno número, porém significativo em termos de área, inicia-se no pós-Segunda Guerra a ocupação de locais distantes do centro da cidade. Para isso, muito contribuem terrenos cercados e ocupados pelas forças armadas brasileiras, que, dadas as suas dimensões, oneram a implantação da infraestrutura de serviços urbanos na cidade, criando enormes vazios urbanos, beneficiando glebas ou loteamentos antigos não totalmente utilizados e impondo a característica de cidade horizontal que Natal acentuaria a partir dos anos 1970. Essas características seriam lidas como um dos problemas urbanos principais de Natal no diagnóstico do plano Serete, como discutiremos adiante.

Clementino (1990) ainda conclui, o que pode ser corroborado pelos dados de Ferreira (1996) e mais recentemente Queiroz (2012), que o que orientou o crescimento físico-territorial da cidade do Natal entre os anos 1940 e 1970 foram, em grande parte, os procedimentos especulativos do capital imobiliário, ao aproveitar a infraestrutura trazida pela mobilização militar. Esse fato impulsiona a valorização da terra nas áreas beneficiadas ou influenciadas por esse embrião de sistema viário que, entre outros, diminui os custos de urbanização dos loteamentos.

Ataíde (1997) destaca ainda que na década de 1960 o município já contava com quase todo o seu território parcelado, fato que contribuiu para dificultar a locação dos terrenos para implantação dos conjuntos habitacionais. Pela lógica dominante do mercado de terras urbanas, as terras mais baratas e acessíveis (financeiramente) ao Estado para implantação de sua política habitacional estavam localizadas nas periferias. Segundo Ferreira (1996), do total dos loteamentos registrados até o final da década de 1980 (211 empreendimentos), mais da metade (121) data da década de 1950, e quase a totalidade (190) é do período que vai até o final da década de 1960, quando seria retomada a discussão sobre a necessidade de um novo plano urbanístico para o município. 

Essa retomada se dá num contexto nacional de redefinição do padrão de planejamento e de políticas urbanas a partir de 1964. A orientação para que se elaborassem, no âmbito dos municípios, os planos integrados funcionava como um dos instrumentos de controle dos repasses de verbas federais para os municípios nos primeiros anos dos governos militares, como dito anteriormente. Sob essa orientação, foi elaborado o plano Serete entre 1967 e 1968, reformulado e incorporado pelo plano diretor de 1974 que, por sua vez, teria desdobramentos no plano diretor de 1984. 

Em fevereiro de 1967, o Diário de Natal publica uma matéria informando que o prefeito Agnelo Alves convidara os técnicos do escritório paulista Serete, sob coordenação geral do economista Milton Bacha e, para os aspectos urbanísticos, do arquiteto Jorge Wilheim, a elaborar o primeiro plano diretor da cidade de Natal, no formato de minuta de lei, assim como o código de obras para controle e fiscalização das edificações urbanas. Nos anos 1950 e 1960, Jorge Wilheim se notabilizara por elaborar propostas de planejamento urbano para várias cidades brasileiras, inclusive Curitiba, em 1965. O então prefeito Agnelo Alves acompanhou essa repercussão e, pleiteando apoio financeiro junto à Sudene, decide contratar o escritório Serete, visando estruturar o Plano Trienal de Natal (1967-1970).

Agnelo Alves propôs à Sudene um amplo conjunto de obras modernizantes para Natal, na expectativa que o plano Serete fosse o elemento de articulação e direcionamento das ações. Segundo ele, “através [do plano] será definida a vocação de Natal, qual seu futuro econômico e as potencialidades industriais, portuárias e rodoviárias” (Diário de Natal, 17 fev. 1967). Percebe-se que politicamente existia a intenção de se utilizar do planejamento como uma maneira de potencializar e até de redefinir uma vocação para a cidade, inserindo-a num contexto mais amplo de industrialização regional.

Dentre as muitas leituras, análises e contribuições que o plano Serete trouxe para o debate local, destacamos na sequência duas das mais importantes organizadas no documento: sobre a estrutura urbana de Natal e sobre o território das populações marginalizadas.

Sobre a estrutura urbana: uma cidade em transição

A leitura e análise da forma urbana de Natal não escapa, por óbvio, do modelo sociológico e econômico que embasa o documento final, como discutido na primeira seção deste artigo. A estrutura é indissociável dos chamados sistemas da vida urbana – que não se sobrepõem, mas são “dois aspectos essenciais da mesma realidade” (Serete, 1968, p. 1). Como explicitariam na introdução, a estrutura se refere aos elementos físicos da realidade urbana (conjuntos estáticos e homogêneos). A palavra sistema expressa os sistemas ou subsistemas sociais (conjuntos heterogêneos e dinâmicos) (Serete, 1968, p. 4).

Assim, ao adentrar na descrição da chamada vida urbana, as questões territoriais, a organização espacial e a localização dos diversos setores sociais seriam fundamentais para compreender essa dinâmica. A atividade das lavadeiras, por exemplo, fonte importante de subsistência para as famílias de bairros mais pobres (como Quintas e Dix-Sept Rosado) ou mesmo das favelas (Padre João Maria e Brasília Teimosa), vai ser analisada pela chave tanto da falta de condições de infraestrutura urbana (longas distâncias, instalações sanitárias precárias ou inexistentes, falta de utensílios domésticos) quanto da permanência das relações rurais e paternalistas de trabalho (Serete, 1968, p. 9).

Do mesmo modo, o serviço doméstico, que poderia ser considerado até um serviço normal num mercado de trabalho menos empobrecido, era visto como um “favor outorgado”, uma relação mediada pelo desejo de status e “pretensões aristocráticas” de uma “nova classe média” que ocupava os bairros mais centrais ou mais novos (como Petrópolis e Tirol), cujo padrão morfológico do século XX permitiu inclusive experimentar as inovações espaciais e formais da arquitetura modernista. E ainda que muitas dessas residências unifamiliares tivessem incorporado ao seu programa as dependências de empregadas e muitas tivessem até seis “serviçais”, como documentou o escritório Serete, a relativa proximidade geográfica entre bairros pobres e “ricos” levava as domésticas a fazer o trajeto de volta e completar a dupla jornada nos serviços em suas próprias casas (Serete, 1968, p. 9).

Mas quais problemas são identificados e discutidos no longo diagnóstico do escritório Serete? Uma perspectiva funcionalista, buscando a compreensão dos grandes movimentos históricos de estruturação do território, leva a uma leitura e interpretação que não estava posta com tal clareza no debate urbano de então. Partindo de algumas breves considerações (no item 1.2, dedicado à “ocupação do sítio”) sobre a ocupação nos primeiros séculos, as barreiras geográficas históricas e o povoamento colonial, o relatório sintetizaria uma análise acurada sobre o que era essa cidade – que passava por um importante processo de transição no período do pós-Segunda Guerra.

Não é ocioso lembrar que as considerações que embasam esse esforço de síntese não deixariam inclusive de mobilizar alguns lugares-comuns das representações sobre as cidades coloniais brasileiras, como a noção de que a cidade, depois de estabelecido seu núcleo original, “espalhou-se pelo sítio, de forma frouxa e irregular” (Serete, 1968, p. 6).

Em síntese, decorreriam desses fatos:

Uma ocupação desigual do sítio e uma natural divisão de funções. Até 1960, as atividades comerciais alinhavam-se fundamentalmente ao longo do eixo Alecrim, Cidade Alta e Ribeira, adensando-se os domicílios em função desses três núcleos e o restante da plataforma central ainda apresentando baixa ocupação. (Serete, 1968, p. 7)

Ao mesmo tempo, o significativo crescimento demográfico que se daria desde 1940 e os impactos migratórios da seca de 1955 dramatizariam os problemas decorrentes desse modelo de ocupação e da falta de uma política de habitação mais abrangente (além da que faziam os IAP e a Fundação da Casa Popular, voltados quase que exclusivamente para os que tinham acesso ao mercado formal de trabalho).

Nos últimos anos, especialmente após a última grande seca, algumas alterações surgiram no que tange à ocupação do sítio, sem diminuir substancialmente a importância daquele eixo [Alecrim, Cidade Alta e Ribeira]. Densos núcleos habitacionais se formaram: a favela Padre João Maria, a invasão da Brasília Teimosa e da Nova Descoberta. Esses novos núcleos em que vivem populações de baixíssima renda, em boa parte marginalizadas por falta de emprego (e outros motivos), não chegaram a provocar novas estruturas viárias. Os seus sistemas de vida são totalmente carentes de apoio estrutural, evidenciando sua condição de marginalização urbana. (Serete, 1968, p. 7)

Isto é, consolidava-se um padrão formal de cidade de baixa densidade média e muito desigual do ponto de vista espacial, com áreas muito adensadas e, consequentemente, grandes porções do território parcamente ocupadas e com demandas funcionais por infraestrutura e conexões de transporte – que inexistiam e assim tornavam a vida dessa populações mais pobres e marginalizadas mais penosas.


Figura 1 ‒ Mapa da ocupação urbana de Natal, enfatizando a relação de cheios e vazios. Fonte: Serete, 1968, s.p.


Isso tudo já era lido então como graves problemas urbanos naquele contexto de final dos anos 1960. Brasília Teimosa ainda era contígua ao antigo bairro operário das Rocas e, logo, próximo do centro comercial da Ribeira. Mas Nova Descoberta, a sudeste e fora da malha ortogonal definida ainda no início do século XX, ficava muito distante até dos trechos menos densos do que o escritório chamava de plataforma central. Ficava distante até da conexão com a antiga Parnamirim Road (hoje a BR-101 e, em área urbana, avenida Salgado Filho e avenida Hermes da Fonseca), a via construída nos anos 1940 para conectar as bases fluviais e de hidroaviões com o aeroporto.


Figura 2 ‒ Mapa de Natal, enfatizando o sistema viário (entre o real e o ideal). Fonte: Serete, 1968, s.p.

A baixa densidade e a retenção de grandes vazios (que vinha se estruturando com grandes loteamentos privados como parte da dinâmica imobiliária desde a formação do mercado de terras formal em 1946) apontavam para um padrão de crescimento horizontal que precisava ser enfrentado. Afinal, esse padrão encarece “as redes de infraestrutura e de serviços urbanos”. Uma das propostas indicadas já na parte do diagnóstico seria estimular o adensamento dos bairros Petrópolis e Tirol por meio de estímulos da legislação tributária (Serete, 1968, legenda da figura 12, s.p.); esses bairros eram (e são até hoje) ocupados por uma população de maior renda.


Figura 3 ‒ Fotografia aérea do Tirol, com o que viria a ser o segundo eixo norte-sul de desenvolvimento da cidade (BR 101-avenida Salgado Filho-avenida Hermes da Fonseca), aqui enfatizando a ocupação dispersa e a consequente baixa densidade. Fonte: Serete, 1968, s.p.

A apresentação de dezenas de mapas temáticos (sobre a mesma base cartográfica apresentada na Figura 1) que pontuam o plano, enfatizando desde postos de gasolinas, estabelecimentos comerciais, hotéis e restaurantes, associações culturais e esportivas até dados administrativos, divisão dos bairros, uso do solo, assistência hospitalar, padrões de valorização imobiliária e redes de infraestrutura e serviços urbanos, leva a uma síntese desse quadro urbano sobre o qual os técnicos se debruçavam. A cidade de baixa densidade média geral era muito desigual também do ponto de vista geográfico e espacial, apresentando “algumas densidades altíssimas” e “pontos de estrangulamento ao lado de vazios na parte central da plataforma” (basicamente, os bairros de Petrópolis, Tirol e Lagoa Seca). Assim,

além de se encontrarem sistemas sem implementação estrutural, estruturas ociosas e estruturas sobrecarregadas, percebe-se não se estar utilizando plenamente as ricas potencialidades paisagísticas oferecidas pelo sítio, seja nas dunas, seja nas praias, seja no diálogo da parte alta com a parte baixa. (Serete, 1968, p. 7)

Essa concentração de população e atividades no eixo histórico Alecrim-Cidade Alta-Ribeira era também desigual em si. Enquanto os bairros populares e operários do Alecrim, Quintas e Rocas eram os mais populosos (54,8 mil, 20,5 mil e 17,9 mil habitantes respectivamente) e relativamente densos (160, 28 e 280 habitantes/ha respectivamente), os bairros modernos, situados na plataforma central e articulados ao segundo grande eixo viário de desenvolvimento urbano, apresentavam baixas densidades (principalmente o Tirol, com 10,4 mil habitantes e 24 habitantes/ha, e Lagoa Seca, com 8,4 mil habitantes e 57 habitantes/ha). Petrópolis, com território bem menor e próximo à Cidade Alta, tinha 8,4 mil habitantes e densidade de 110 habitantes/ha. Isso para uma população de 178 mil habitantes em 1964, de acordo com a normalização feita pelo IBGE (Serete, 1968, p. 68-69, 72).

Assim, as recomendações urbanísticas, ao final, que deveriam funcionar como diretrizes para a atuação da Assessoria Municipal de Planejamento (Ampla), apontariam para a necessidade de: consolidar a linearidade das estruturas urbanas, considerando a “formação alongada” do sítio, fortalecendo o segundo eixo Norte-Sul já existente, e organizando o paralelismo dos vetores viários, zoneando as áreas nessas faixas paralelas “e não em ilhas ou setores cercados” (diga-se, desde logo, que o crescimento fragmentado por loteamentos, conjuntos e enclaves urbanos, como a própria UFRN e o centro administrativo do governo do estado do Rio Grande do Norte, foi o que acabou acontecendo); fortalecer a então frouxa coesão urbana por meio do adensamento e da redistribuição de alguns bairros; integrar bairros (Alecrim, Cidade Alta e Mãe Luiza) que, por questões específicas, acabavam tendo certa vida própria sem maiores relações, entendiam, com outras partes da cidade ‒ o caso de Mãe Luiza era o mais grave, por conta da segregação social que enfatizava a segregação espacial (Serete, 1968, p. 185-186).

Por fim, apontavam para a necessidade de preservar a beleza do sítio, condição fundamental para a “criação de uma paisagem urbana tipicamente natalense”, e de reforçar a imagem de Natal como capital do estado e da região. Para tanto, remanejar o seu centro seria fundamental (Serete, 1968, p. 186-187).

A questão das favelas e a população marginalizada da vida urbana

Ao propor a urbanização da favela de Mãe Luiza, o plano Serete antecipa uma atitude ou ação governamental que veio a se difundir com mais firmeza somente a partir da segunda metade da década de 1970, visto que a orientação vigente até então era a de erradicação dessas comunidades. No entanto, através de uma análise mais aprofundada das minúcias do texto do plano, pretendemos entender alguns porquês dessa escolha, inclusive em detrimento de outras comunidades que, segundo o plano, não teriam o mesmo destino de urbanização, e sim, de remoção.

Embora com pouco destaque para a questão, no item 5 dos diagnósticos do plano Serete introduz-se o tema dos “problemas sociais”. Os pontos anteriores tratam de infraestrutura, recreação, turismo, transportes, aspectos demográficos e vida urbana para só então chegar nos aspectos sociocomunitários vistos como problema de fato. Talvez isso possa dizer respeito à ênfase necessária para esses planos, herança dos planos de conjunto, os quais tinham foco total em infraestrutura e transporte, como nos lembra Villaça (1999).

Segundo as pesquisas conduzidas pelo Serete (1968), a população de Natal considera como principais problemas tudo que decorre da falta de infraestrutura econômica, social e física: água, esgoto, iluminação, [...] transporte, habitação e reconhece como principal problema o desemprego. Enquanto o valor médio do salário era de NCr$ 63,75 (sessenta e três cruzeiros novos e setenta e cinco centavos), o aluguel de um cômodo custava em torno de NCr$ 30, praticamente metade. O tamanho médio das famílias era de oito a dez membros e o índice de mortalidade infantil era bastante elevado.

O termo “populações marginalizadas da vida urbana” aparece no plano Serete problematizando inicialmente a questão da migração do campo, inclusive vinda de outros estados, para a cidade. Essas populações acabam formando essa faixa marginalizada que não participa dos benefícios gerais da vida urbana e nem se torna força produtiva. Os bairros colocados como a periferia-alvo dessas populações são Bom Pastor, Carrasco e Dix-Sept Rosado, que têm, em sua maioria, casas de taipa com numerosos vazios entre pequenos aglomerados habitacionais. Caracteriza ainda esses povoados como desprovidos de serviços de utilidade pública e, pior, “refúgio” para criminosos. Apesar de não deixar claro qual seria a diferença, o plano faz uma distinção entre os “bairros periféricos”, que seriam esses citados acima, e as “favelas” propriamente ditas que, para eles, são Mãe Luiza, Padre João Maria, Aparecida e Brasília Teimosa. Uma pista para a diferenciação talvez esteja na tipologia construtiva das casas: enquanto naqueles primeiros seriam de taipa, nas favelas são “barracos de palha e caixote”.

Há uma certa imprecisão no esforço de caracterização das chamadas favelas. Ora o plano Serete aponta que as favelas teriam surgido há apenas cinco anos, ora que o aglomerado urbano de Aparecida já existiria há 16 anos. De toda maneira, a estimativa de que a população total das favelas fosse de 16 a 17 mil habitantes é factível.7

O escritório procurou dar voz aos moradores das favelas, entendendo que “deve ser tomado conhecimento pelo resto da população”. Como documentado na primeira parte do plano Serete, muitos moradores declaram se sentir “humilhados perante os que residem na cidade”, não se sentindo integrantes dela, quer pela distância, quer pela falta de acesso aos serviços. Essa distância sentida não era apenas física, mas também mental/intelectual, visto que os moradores apontaram “não saber as coisas que eles sabem” e ainda que o “pessoal da cidade quase não anda por aqui”. Essas são marcas claras de uma população que migrou nessa dinâmica de êxodo rural-urbano e que acabou sendo relegada às periferias, sem condições de se inserir na vida urbana através dos empregos.

Em relação às condições sociais de vida, o Serete apontaria que a maioria dos homens que tinham algum vínculo de emprego era servente de pedreiro ou “biscateiro” e fazia apenas pequenos serviços. A manutenção da casa ficava mesmo por conta das mulheres, que eram, em sua maioria, empregadas domésticas e tinham, assim, um salário fixo, embora fosse insuficiente, fato que as estava levando a “empurrar” os maridos a reclamar publicamente melhorias comunitárias. O desemprego teria então uma estreita relação com o problema das favelas e seria apontado como um dos principais causadores da marginalização dessas populações. Como relatado pelo escritório, “as favelas são o testemunho físico da fraca estrutura de emprego” (Serete, 1968, p. 89).


Figura 4 ‒ Favelas ao longo do rio Potengi apontam, para o Serete, uma difícil utilização urbana do terreno, a não ser para plantio ou recuperação mediante aterro. Fonte: Serete, 1968, s.p.

Um dos motivos pelos quais a população não teria conhecimento da existência das favelas é que elas não eram vistas facilmente, “não perturbando esteticamente a paisagem” de bairros como Tirol, Petrópolis e Cidade Alta, os mais abastados à época. Fazendo referência ao que seria o embrião de organizações comunitárias de movimentos sociais, o Serete aponta uma unidade por parte de líderes locais no que dizia respeito às demandas por urbanização e repúdio às propostas de remoção; cita, ainda, propostas de frentes de trabalho e de incentivo a mutirões para a consecução de medidas necessárias.

No entanto, isso não parece indicar um grau de consciência ou de movimentos sociais mais consolidados, como entendemos agora. A forma de reivindicações estava mais voltada a “pedidos” do que a uma agenda ou pauta coletiva; só nas décadas seguintes esses movimentos sociais conseguiriam se organizar (no entorno de fortes lideranças ou apoiados por iniciativas progressistas da Igreja Católica), como ativismos urbanos com impacto na elaboração dos planos diretores.

No plano também é dado destaque à “Cidade da Esperança”, um conjunto de casas populares e equipamentos construídos com recursos do governo do estado, BNH e Usaid, utilizando a força de trabalho dos moradores, em sistema de ajuda mútua. Nessa comunidade houve relativo sucesso na organização de líderes comunitários e na construção de um centro social destinado à manutenção das atividades e a uma formação mais sólida de consciência social e crítica, no sentido de analisar seus problemas e levantar soluções viáveis. O plano identificou, como uma tendência em todos os bairros da cidade, a formação de grupos ou órgãos comunitários visando a melhorias locais. A partir daí, recomendaria a criação de canais para estimular a relação entre essas lideranças e os técnicos administrativos municipais, a fim de viabilizar uma ação mais “racional e ordenada”, consoante o aproveitamento de recursos (Serete, 1968, p. 88).

A segunda parte do documento foi denominada de “diretrizes propostas”. Aqui nos interessa em especial o item 8.8, dedicado às “operações integradas de implantação”, que detalharia a intervenção proposta tanto para a favela de Mãe Luiza quanto para a de Brasília Teimosa. A operação trataria não apenas de uma intervenção física, buscando a integração do bairro de Mãe Luiza à malha viária da cidade, mas também de ações de cunho social-integrativo. Ao apontar a marginalidade do bairro como “físico-social-psicológica”, o plano Serete insere as diretrizes no sentido de criar uma “operação-modelo”, que ajudaria a incorporar o bairro na vida urbana de Natal, partindo fisicamente de um eixo viário central que serviria de acesso e também ponto de encontro, pois conteria diversos equipamentos urbanos. Todas as outras diretrizes tratam de eventos educativos ou até mesmo “solidários” que ajudariam não só a comunidade a entender seus problemas como também o resto da cidade a participar da construção e integração desse “novo” bairro (Serete, 1968, p. 219-221).

A favela de Mãe Luiza é considerada “próxima” da cidade e é vista como marginalizada fisicamente, pelo fato de estar mal integrada em termos viários. No entanto, está inserida numa região de dunas próxima a uma área de praia, a qual terá, a partir de então, vasto reconhecimento como potencial turístico. A orientação da integração parecia estar mais vinculada às possibilidades de adequação físico-espaciais da área onde estava assentada a favela de Mãe Luiza aos padrões ideais de ocupação do solo definidos pelo plano, do que às necessidades e às práticas concretas e cotidianas do lugar. Essa compreensão torna-se mais visível quando o autor do plano explicita as razões da remoção da comunidade de Brasília Teimosa (uma atitude contrária a que foi tomada em relação a Mãe Luiza) para os lados (os vazios) do recém-construído conjunto habitacional da Cidade da Esperança. As condições de ocupação de Brasília Teimosa, caracterizada pela alta densidade e pela inexistência dos recuos frontais nas residências, dificultavam a implantação de uma proposta de remodelação da área segundo os padrões definidos pelo plano, seja para o parcelamento, seja para a ocupação do solo (Serete, 1968, p. 221-223). 

Observamos no texto sobre Brasília Teimosa uma diferença de tom do que se usou na descrição da operação integrada de Mãe Luiza. Enquanto nesse último coloca-se ênfase em uma necessidade de acolher a marginalização social dos moradores, melhorando as condições físicas do bairro e integrando-o à cidade através de atividades diversas, no primeiro utiliza-se noções de “invasão”, “inconvenientes” e “precariedade” para justificar a dificuldade de se colocar em prática um remanejamento urbano. Nesse mesmo parágrafo, no entanto, o autor termina por dizer que não hesitaria em propor o remanejamento caso o conjunto permitisse uma melhor “adequação à beleza e importância do sítio”. Como não seria possível fazê-lo, iria apenas onerar os gastos da prefeitura.

Considerações finais

Por meio da contratação do escritório Serete, com a participação decisiva de Jorge Wilheim na coordenação das análises e diretrizes urbanísticas, para elaborar o primeiro plano diretor da cidade, o prefeito de Natal Agnelo Alves pretendia fechar o ciclo dos anos de 1960, década que consolida a mudança dos padrões rural-urbano, abraçando a ideia do planejamento e do urbanismo como uma resposta tanto aos apelos de crescimento e urbanização recentes quanto à pressão da Sudene para liberar recursos àquelas cidades que resolvessem investir em planos diretores. O plano Serete, como vimos, está em parte inserido ao seu contexto: o recente aparecimento dos superplanos ou planos integrados. Dispunha das mesmas características de serem extensos diagnósticos da realidade, com métodos de análise detalhados e colocados em prática por uma equipe multidisciplinar que tinha como ponto de partida as ideias de globalidade e desenvolvimento social e econômico.

No entanto, apesar de estar adequado à temporalidade político-técnica e sensível à demanda urbana, o próprio Jorge Wilheim nos aponta um discurso que pretende se afastar de uma suposta lógica que estavam seguindo os planos integrados, que fazia com que eles fossem “engavetados”. O coordenador urbanístico do escritório Serete parecia se incomodar com uma espécie de “urbanismo otimizador”, que pouco se preocupava com o tempo que levam os processos sociais, e criticava, voltava-se mais a economizar recursos e colocar planos em prática. Essa visão estava em consonância com as ideias do direito à cidade, pois Wilheim se propõe, em seu método de trabalho, a unir a vida urbana com a consciência social.

Sabendo hoje o rumo que tomou o pós-1968, podemos apontar uma certa contradição que recai sobre as estratégias empregadas por Wilheim, tendo em vista que, por fim, o plano Serete não seria implementado logo ou diretamente, como outros planos da mesma época. Apesar de todo o esforço, o projeto acabou encontrando dificuldades de continuidade, seja pelas questões políticas elencadas ao início do artigo, relacionadas à falta de interesse do poder público de investir em uma variedade de problemas sociais que acaba por aparecer nesses estudos, seja por falta de recursos.

Embora não tenham sido executados em sua totalidade, longe disso, os diagnósticos e proposições feitas pelo escritório Serete aparecem como uma base indissociável dos planos diretores de 1974 e 1984, seja como identificação dos principais problemas ou como base técnica atualizada pelas equipes da prefeitura de Natal. Na continuidade desta pesquisa, vamos compreender qual o impacto dessas primeiras iniciativas nos planos oficiais e, das partes que são excluídas da agenda, o que se pode concluir sobre o processo de transformação desses documentos.

Como parte da resposta do que foi proposto neste artigo, destacamos a maneira como o documento Serete entendeu os problemas urbanos de Natal. Conseguimos salientar com clareza que o plano parte de uma base sociológica que destaca a migração campo-cidade como a causa de boa parte dos problemas da época, que têm uma relação intrínseca com a conexão entre a estrutura física e o sistema de vida, a saber, os dois pontos-chave propostos pelo plano para dar base ao diagnóstico. O fato de que os recém-chegados do campo não conseguiam se inserir na vida urbana da cidade, quer na dinâmica de atividades socioculturais, quer como força produtiva, gerou diversos problemas, agravados pelo padrão de crescimento disperso e de baixa densidade média, que se agravaria nos anos e décadas seguintes.

Arriscamos, através da análise de dois problemas apontados pelo Serete (1968), em resumo, a forma urbana e a questão da favela, tentar entender de que maneira o plano traz em sua versão final a visão desenvolvimentista-social de Wilheim. Em relação à estruturação da forma urbana, a baixa densidade e a desconexão espacial de vários bairros e eixos de crescimento impunham desafios claros ao esforço de ordenamento territorial, tentando recompor uma coesão urbana ainda muito frágil. Esse quadro era ainda mais premente, considerando os grandes investimentos em novos conjuntos habitacionais que já se vislumbravam e acabariam, nos anos seguintes, a espraiar ainda mais a mancha urbana, aumentando a demanda por infraestrutura.

Em relação às populações marginalizadas da vida urbana, ao mesmo tempo que identificamos uma postura inovadora, condizente com os ideários de Wilheim, ao tratar da favela de Mãe Luiza, vemos também uma outra forma de abordar a favela de Brasília Teimosa. Por que será que isso aconteceu? Podemos especular que não estamos tratando, pois, de ideias inovadoras a respeito do tratamento das favelas, mas de adequações que permitissem ações remodeladoras que enxergam prioridades nas áreas mais “importantes” da cidade e que permitem certa condescendência caso a área marginalizada possa integrar-se mais facilmente com a malha viária urbana.

De todo modo, devemos reconhecer também que os estudos que embasam e compõem o plano Serete (1968) são uns dos primeiros, senão os primeiros documentos oficiais a investigar de maneira mais detida e atenta essas populações marginalizadas, dando nome e endereço ao problema estrutural da favela, conquanto fosse pouco conhecido pelo resto da cidade. Essa parece ser também uma intenção do plano, que a população em geral tomasse conhecimento dos problemas e soluções que poderiam ser direcionados para as favelas. Para esse estudo, por exemplo, a caracterização do problema ou o diagnóstico feito pelo escritório, tomando nota das falas dos moradores e apresentando uma base de dados que traça um perfil dessa população, torna o Serete mais importante como investigação da realidade do que como um plano prático ou exequível.

Em última análise, podemos apontar uma síntese, utilizando os pontos em comum desses dois grandes “problemas urbanos” para entender o que se configurava talvez como o problema norteador de todos os outros nessa Natal que adentrava a década de 1970: a cidade-fragmentada. Ela pode ser entendida como uma cidade em transição, que era consequência direta da pressão de uma configuração socioeconômica trazida pelo padrão de urbanização atravessado pela expansão dos loteamentos privados nas duas décadas anteriores e pelo aumento populacional intenso, que resultou em uma cidade com população empobrecida, segundo dados do plano: 50% pobre de fato e 25% do que chamariam hoje de “classe média C”.8

No presente artigo buscamos analisar as características, a estrutura, as formas de representação, as marcas ideológicas e a construção de soluções do plano Serete, realizando uma análise do documento original, hoje digitalizado, a fim de tentar delinear questões sobre a história urbana de Natal ao final dos anos 1960 e início dos 1970. Entendemos esse documento como um texto que contém diversos elementos que nos permitem estabelecer uma leitura de cidade e avançar na hipótese de que é nessa transição dos anos 1960 para 1970 que podemos localizar a articulação de um outro e novo momento dos processos de modernização e urbanização, atravessados pelos esforços para construção de novos marcos de planejamento.

Os autores agradecem à Capes e ao CNPq pelas bolsas concedidas (de mestrado e de produtividade, respectivamente) e o apoio da Pró-reitoria de Pesquisa (Propesq) e do grupo de pesquisa História da Cidade, do Território e do Urbanismo, vinculado ao Depto de Arquitetura (HCUrb) da UFRN.

Fontes

Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

Diário de Natal. Natal, 1961-1979.

Referências

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Recebido em 1/10/2023

Aprovado em 16/3/2023

   

Notas

1    Sobre os PDDI e PDLI dentro das políticas do Serfhau, ver a pesquisa de Simone Vizioli (1998).

2    Como descreve Juliana Mota (2004, p. 155-156), a Serete S/A Engenharia, fundada em 1959, era uma empresa com sede em São Paulo e filiais em Curitiba, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, com centenas de profissionais e dedicada à elaboração de estudos, consultorias e projetos em diversas áreas, entre as quais o planejamento urbano e territorial. O arranjo para a elaboração do plano para Natal, com o economista Milton Bacha como coordenador-geral e Jorge Wilheim como “subcontratado responsável pelos aspectos urbanísticos”, era relativamente comum (e, no caso, foi o mesmo para Goiânia).

3    Algumas das reflexões contidas aqui foram discutidas pelos autores no Enanpur de 2019 (“Natal entre planos: reestruturação dos marcos urbanísticos, 1960-1984”, em sessão livre dedicada ao tema “Dimensão nacional do planejamento”) e de 2021 (“Leituras de uma cidade a ser planejada: notas sobre a (re)construção dos marcos urbanísticos de Natal, 1967-1984”) e fazem parte também da pesquisa de mestrado desenvolvida por Stephanie Moreira junto ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

4    Este artigo se enquadra nos marcos de uma pesquisa em desenvolvimento que objetiva compreender os elementos formadores dos planos diretores de Natal, entre 1968 e 2007; a proposta é identificar os elementos técnicos, discursivos e políticos que debateram os problemas urbanos e ambientais na cidade, antes e depois da elaboração dos planos, evidenciando os conflitos, as discussões profissionais e as tensões socioeconômicas.

5    Foi realizada uma pesquisa sistemática no acervo desses periódicos no recorte entre 1960 e 1979, a partir de uma série de palavras-chave, como “serete”, “wilheim”, “plano diretor”, “urbanismo”, “favelas” etc., e diversas combinações para refinar os resultados, quando necessário. Esse material, com centenas de ocorrências, está em uma base de dados, organizado temática e cronologicamente.

6    Sobre a atuação e as ideias urbanísticas de Jorge Wilheim, ver, entre vários, a dissertação de Wesley Silva (2010) sobre o caso de Natal; a dissertação de Juliana Mota (2004) sobre Goiânia; o artigo de Elise Savi e Fabíola Cordovil sobre Maringá (PR) (2013); e a entrevista concedida pelo próprio Wilheim e publicada na revista Pós, da FAUUSP (Szmrecsany; Oseki; Jorge, 2000).

7    A leitura do plano aponta algumas poucas imprecisões ao longo de todo o texto, a exemplo dessa datação da origem do que seria caracterizado como “favela” em Natal e da identificação de algumas fotos. De todo modo, sabe-se que a ocupação que deu origem à Mãe Luiza remonta ao início dos anos 1950, pelo menos.

8    Esses dados estão no item 6: “aspectos do desenvolvimento econômico do RN e de Natal” (Serete, 1968, p. 97 et seq.; ver em especial a p. 105) e se baseiam tanto nas pesquisas de campo conduzidas pelos economistas do Serete quanto nas informações do IBGE (o inspetor regional Cid Craveiro é citado expressamente nos agradecimentos iniciais).



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