Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 2, maio/ago. 2023

Marc Ferrez: a fotografia como experiência | Artigos livres

O valor memorialístico e a contribuição sociocultural do Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga

The memorial value and the sociocultural contribution of the Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga/El valor memorial y la contribución sociocultural del Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga

Katia Maria de Almeida Castro

Graduada em Arquivologia pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), Brasil.

aitakastro@gmail.com

Ana Claudia Medeiros de Sousa

Doutora em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora adjunta do Instituto de Ciência da Informação da Ufba, Brasil.

ana.violista@gmail.com

Maíra Salles de Souza

Doutora em Ciência da Informação pela Ufba. Professora do Instituto de Ciência da Informação da Ufba, Brasil.

maira.salles@ufba.br

Resumo

Objetiva evidenciar o valor memorialístico e a contribuição sociocultural do Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga, pertencente à Cúria Metropolitana de Salvador. Caracteriza-se como pesquisa descritiva e documental de natureza qualitativa. A partir da análise dos dados coletados em entrevista e documentos, conclui-se que o arquivo possui relevância na constituição memorialística da Bahia, além de possibilitar aos usuários acesso a documentos carregados de valor probatório e jurídico.

Palavras-chave: arquivo eclesiástico; memória; arquivologia; Laboratório Eugênio Veiga.

Abstract

The article aims to show the memorial value and the sociocultural contribution of the Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga, of the Cúria Metropolitana of Salvador. It is characterized as a descriptive and records research using a qualitative approach. From the analysis of data collected in interviews and documents, it concludes that the archive has relevance in the memorialistic formation of Bahia, and also in providing users with access to records full of evidentiary and legal value.

Keywords: ecclesiastical archive; memory; archival science; Laboratório Eugênio Veiga.

Resumen

El artículo tiene como objetivo resaltar el valor memorial y la contribución sociocultural del Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga, de la Cúria Metropolitana de Salvador. Él se caracteriza por ser una investigación descriptiva y documental de carácter cualitativo. A partir del análisis de los datos recogidos en entrevistas y documentos, se concluye que el archivo tiene una relevancia en la constitución memorialística de Bahia, además de ofrecer a los usuarios el acceso a documentos llenos de valor probatorio y jurídico.

Palabras clave: archivo eclesiástico; memoria; archivística; Laboratório Eugênio Veiga.

Introdução

O termo arquivo pode ser compreendido como entidade responsável pela guarda, organização e difusão de documentos sob sua jurisdição, tendo como elemento configurador o conceito de proveniência ou procedência, cujo significado aponta que documentos produzidos por cada entidade não devem ser misturados, retratando o contexto institucional.

Para Brito, Mokarzel e Corradi (2017, p. 160), “os arquivos estão presentes na história da humanidade desde que o homem se fixou numa localidade e necessitou de um Estado que centralizasse as decisões a serem tomadas dentro de uma comunidade”. Alguns arquivos eram conservados próximo à administração que os criou, com pouco acesso ao público. Essa característica ficou marcada na atuação da Igreja Católica ao custodiar os acervos documentais em tempos e espaços geográficos determinados, a exemplo do Brasil no período colonial. Em vista disso, os arquivos como espaços de memória podem refletir as práticas sociais dos produtores e custodiadores de documentos.

Diante do exposto, esta pesquisa teve como objetivo evidenciar o valor memorialístico e a contribuição sociocultural do Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga (LEV), pertencente à Cúria Metropolitana de Salvador. Ressalta-se que a documentação estudada data da época do Brasil Colônia, demonstrando a inserção da Igreja Católica na comunidade baiana e sua importância nacional, sobretudo em relação aos direitos civis. Para tanto, os objetivos específicos visam contextualizar o processo de institucionalização do Arquivo do LEV; caracterizar suas atividades arquivísticas e seus usuários; identificar as tipologias documentais custodiadas; e descrever alguns itens documentais que retratam sua contribuição sociocultural para a memória baiana.

Assim, trata-se de uma pesquisa descritiva e documental, com o uso do método de estudo de caso. As técnicas utilizadas foram a análise documental e a aplicação de entrevista. Quanto à avaliação dos dados coletados, tomou-se como base a abordagem qualitativa. Como apresentado no objetivo, o corpus de investigação foi composto pelo acervo do Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga, por seu significativo valor simbólico para a memória baiana e brasileira.

Dentre os resultados alcançados, destaca-se a implantação do Arquivo do LEV a partir de 2002, fruto de uma parceria entre o Arquidiocesano de Salvador e a Universidade Católica do Salvador (UCSAL), demonstrando a importância do Arquivo da Cúria para o reconhecimento de direitos civis, especialmente ao identificar documentos que possibilitam garantir a dupla cidadania, a exemplo das certidões de nascimento. Além disso, alguns tipos documentais permitem compreender a importância das irmandades na defesa e no acolhimento de pessoas escravizadas, principalmente em cidades do Recôncavo da Bahia, marcadas pela escravidão nos engenhos de cana-de-açúcar. Ainda há o valor memorialístico: a certidão de batismo de Santa Dulce dos Pobres foi fundamental no processo de canonização, iniciado em 2000. Portanto, observa-se que o Arquivo do LEV apresenta-se como necessário para a reconstrução da memória da cidade de Salvador e da Bahia, ressaltando o papel social, político e cultural da Igreja Católica.

Arquivos eclesiásticos e memória

O arquivo integra as práticas socioculturais por subsidiar as diversas atividades desempenhadas pelos sujeitos, uma vez que, de maneira majoritária, as funções desenvolvidas por estes resultam na produção de diversificadas tipologias documentais.

Existem diferentes atribuições de significado do termo arquivo: por exemplo, pode referir-se a uma instituição que salvaguarda e difunde a informação de uma entidade mantenedora – pública ou privada, coletiva ou pessoal. Pode ser utilizado também para se referir a um móvel que serve para acondicionar documentos, entre outras concepções.

Ainda na Antiguidade Clássica, os arquivos surgiram com o propósito de salvaguardar os documentos e, com isso, têm acompanhado o desenvolvimento da sociedade nos diferentes lugares e períodos históricos (Schellenberg, 2004). Nesse sentido, os serviços arquivísticos visam atender às necessidades administrativas e servir de base para a memória institucional, evidenciando as relações sociais de uma nação, em determinado tempo/espaço.

Em razão da produção documental, os arquivos são classificados quanto à teoria das três idades em corrente, intermediário e permanente, configurando as diversas fases “desde a gestação dos documentos, passando pelos arquivos em formação (correntes, setoriais), arquivos intermediários (semiativos) e arquivos de custódia (o geral)”, como salienta Esposel (1994, p. 74).

Os arquivos permanentes – interesse desta pesquisa – são aqueles que findaram seu valor administrativo, porém são ricos em vestígios de memória, possuem documentos considerados bens patrimoniais, podendo em alguns casos conter valor probatório e informativo.

A respeito do arquivo eclesiástico, que é o tema deste estudo, pode-se sugerir que as secretarias paroquiais sejam o arquivo corrente da instituição Igreja Católica. A secretaria paroquial funciona como a primeira instância de contato com o público e, a partir dela, começa uma comunicação da sociedade com a igreja para fazer nascer o documento eclesial. Pode-se inferir que os documentos ali criados têm valor sociocultural e que possivelmente serão recolhidos para um arquivo permanente.

Os cartórios de registros como são hoje só passaram a existir a partir da Proclamação da República, em 1889. Antes, esse era – literalmente – o papel da Igreja Católica, como argumentam Tognoli e Ferreira (2017, p. 16):

No tocante à legislação brasileira, os arquivos religiosos (em especial os da Igreja Católica), que datam do período anterior à Proclamação da República (1889), por conta do valor jurídico de seus registros, são reconhecidos como de interesse público e social. Isso se deve ao contexto de produção dos registros demográficos naquele tempo. Antes da República, o Brasil não contava com cartórios de registro civil, sendo o registro paroquial responsável pela produção de documentos como certidões de nascimento, casamento e óbitos da sociedade. Tais documentos eram dotados de fé pública, servindo para validar, testemunhar e comprovar tais ações.

Diante disso, entende-se que os arquivos eclesiásticos do Brasil têm em seus acervos itens documentais que podem ser capazes de revelar aspectos históricos do país, por isso seu valor histórico e cultural – assim sendo, classificam-se como arquivo permanente. No contexto atual, a Igreja Católica continua produzindo documentos a partir das atividades por ela desenvolvidas. O Código de Direito Canônico determina a produção documental dos livros de batismo, casamento e óbito em duplicata para as paróquias:

Cân. 535 § 1. Em cada paróquia haja os livros paroquiais, a saber: o livro dos batismos, dos matrimônios, dos óbitos e outros, de acordo com as determinações da conferência episcopal ou do bispo diocesano; procure o pároco que estes mesmos livros sejam cuidadosamente preenchidos e diligentemente guardados. (Código de Direito Canônico, 1983, p. 99)

A partir desse entendimento, compreende-se o valor e o papel sociocultural dos acervos arquivísticos que integram a Cúria Metropolitana Bom Pastor – Arquidiocese de São Salvador da Bahia. A instituição visa criar meios para que os arquivos estejam ao alcance dos que desejarem pesquisar documentos de que necessitem, como, por exemplo, uma certidão de batismo, casamento ou óbito, ou documentos para obtenção de cidadania.

Outra demanda que os usuários de arquivo podem buscar é certidão de batismo de crianças nascidas livres, a partir da Lei do Ventre Livre, de 28 setembro de 1871. Existem também documentos que registraram os casamentos mistos, no caso das pessoas livres com escravizados, à época; documentos que comprovam a demografia histórica de epidemias e causas de óbitos etc.; ou seja, são diversas as informações e tipologias documentais que a Igreja Católica tem custodiado.

O Código do Direito Canônico, em seu cânon 491, parágrafo 2º, determina que cada diocese tenha o seu arquivo e que possa ser acessado e pesquisado.

Cân. 491 § 1. Procure o bispo diocesano que se guardem diligentemente também os atos e os documentos dos arquivos das igrejas catedrais, colegiadas, paroquiais e de outras existentes no seu território, e se façam inventários ou catálogos em dois exemplares, um dos quais se guarde no próprio arquivo e o outro no arquivo diocesano. (Código de Direito Canônico, 1983, p. 89)

A partir dessa orientação, os arquivos eclesiásticos preservam significativos documentos em que transparecem as práticas socioculturais das comunidades às quais as igrejas católicas estão inseridas. Nessa conjuntura, entende-se o quanto diferentes perfis de usuário podem necessitar de informações custodiadas pelos arquivos eclesiásticos. Por isso a importância de que eles sejam organizados a partir dos princípios, técnicas e métodos indicados pela arquivologia, como, por exemplo, cumprir as funções arquivísticas com o intuito de acompanhar desde a criação do documento, seu tratamento até a difusão.

As funções arquivísticas funcionam como norteadoras e delimitadoras do saber-fazer. Rousseau e Couture (1998) entendem que há sete funções arquivísticas interligadas, e a observância de cada função é que vai garantir um resultado de excelência ao profissional do arquivo. Segundo os autores, as funções arquivísticas compreendem: produção, avaliação, aquisição, conservação, classificação, descrição e difusão.

A partir do exposto, reitera-se a função social do arquivo eclesiástico, que deve atender às demandas informacionais dos usuários, além de garantir a preservação de práticas socioculturais ocorridas em diferentes tempos históricos, configurando-se, portanto, como espaço de memória.

Com o desenvolvimento dos diversificados gêneros documentais, o sujeito tem registrado vestígios de suas práticas sociais, que passam a ser documentadas em dispositivos informacionais, configurando-se referenciais de memória. A memória individual é refletida por Pollak (1992, p. 204) como aquela que “grava, recalca, exclui, relembra, é evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização”. Ou seja, a memória individual é fortemente determinada pela capacidade neural do sujeito, na qual lembranças são selecionadas, organizadas mentalmente, de maneira consciente ou inconsciente.

Neste ponto é válido ressaltar que a memória individual tem significativa influência da memória coletiva. De acordo com Halbwachs (1990), o elo da memória individual resulta da interação social, pois em grupo o sujeito também produz, rejeita, valoriza os fluxos das lembranças. Baseado nesse pensamento, Pollak (1989) reitera que a memória de cada indivíduo pode se beneficiar das memórias de outros sujeitos, na medida em que se alcançam pontos de contato, cujas lembranças são pautadas sobre uma base comum.

Ainda de acordo com o autor, “se é possível o confronto entre a memória individual e a memória dos outros, isso mostra que a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos” (Pollak, 1992, p. 204). Diante disso, pode-se entender que a memória é influenciada pela dinâmica das relações da sociedade, em que os grupos dominantes têm forte influência na seleção do que deve ser lembrado e esquecido. Ao mesmo tempo, a memória individual pode, de maneira consciente, buscar preservar traços do passado que em meio à coletividade são negados, tal como ocorre com pessoas que são pertencentes a grupos subalternizados. Por isso, é relevante que os dispositivos informacionais sejam adotados como recursos que materializam traços de memória dos diversos sujeitos formadores da sociedade. Uma vez que, através desses dispositivos, podem ser revelados aspectos históricos que por determinado período foram silenciados.

Nesse sentido, é necessário o arquivista considerar os diferentes registros informacionais sobre determinados acontecimentos, fenômenos, crenças, tradições etc., e observar os traços que aproximam ou distanciam indivíduos e/ou grupos sociais, posto que é preciso preservar os itens documentais que materializam vestígios representativos de diversos sujeitos sociais, para assim garantir que todos os grupos que formam a sociedade brasileira se sintam, de alguma forma, representados nas instituições arquivísticas do país. Britto, Mokarzel e Corradi (2017, p. 172) defendem que

ao pensar-se sobre a memória remetemo-nos, imediatamente, a lembranças de algo que existiu e/ou aconteceu e que por sua relevância, seja pessoal ou coletiva, são preservadas em nossas mentes. Da mesma forma, no âmbito coletivo e oficial, são institucionalizados quais são os pedaços do passado que farão parte da memória social e de que forma os mesmos serão perpetuados de maneira que representem a sociedade da qual ela faz parte.

A partir desse entendimento, confirma-se que é pelo convívio em sociedade que o sujeito produz dispositivos que são selecionados para serem lembrados e preservados. Em se tratando de documentos arquivísticos, que são aqueles produzidos desde as funções exercidas por seus produtores, alguns deles, quando considerados com valor cultural e histórico, são preservados ao materializarem aspectos de memória. Ainda de acordo com Britto, Mokarzel e Corradi (2017, p. 172),

os arquivos são fontes materiais que contêm informações que sustentam, ocultam ou refutam esses fragmentos de memória escolhidos e utilizados em discursos que contam a passagem de um período e de uma sociedade. Os arquivos respondem a normas sociais que estruturam nossas lembranças autorizadas.

Como bem foi dito acima, os arquivos preservam e disseminam a memória de forma institucionalizada, a partir de orientações normatizadas. Nesse ponto, reforça-se a necessidade de a sociedade ter acesso aos seus arquivos, sobretudo os que conservam traços do passado, como, por exemplo, os arquivos eclesiásticos, que por muitos anos funcionaram no Brasil como cartórios até a chegada da República, em 1889, guardando uma documentação significativa de interesse dos cidadãos, mais do que propriamente da instituição em si.

Sendo o arquivo um dos lugares de memória, caberá a ele também a responsabilidade de sanar as lacunas que a história porventura tenha negado, de forma esclarecedora, através de vestígios conectados por documentações. O documento que registra aspectos de memória de um indivíduo ou de um coletivo, em alguns casos, pode perpassar o seu valor informacional, quando perscruta as emoções de quem tem acesso a ele, e de alguma maneira é afetado por se sentir representado no item documental, ou até mesmo por compreender que o documento se configura um vestígio de memória que é capaz de ativar lembranças carregadas de sentimentos.

Metodologia

Esta pesquisa se caracteriza como descritiva, que, segundo Gil (2008), é usada para descrever determinada população ou fenômeno e suas variáveis. Dessa maneira, o objetivo geral foi evidenciar o valor memorialístico e a contribuição sociocultural do Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga, pertencente à Cúria Metropolitana de Salvador.

O método usado é o estudo de caso, uma vez que o corpus de análise foi composto especificamente pelo acervo do Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga. Esse método é conceituado por Severino (2014) como aquele que trata de um caso particular representativo de um conjunto de casos análogos.

O estudo também se configura como documental, posto que para o alcance dos objetivos fez-se necessário o levantamento de documentos considerados memorialísticos que estão custodiados no Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga. De acordo com Marconi e Lakatos (2003, p. 174),

a característica da pesquisa documental é que a fonte de coleta de dados está restrita a documentos, escritos ou não, constituindo o que se denomina de fontes primárias. Estas podem ser feitas no momento em que o fato ou fenômeno ocorre, ou depois.

Gil (2008) acrescenta à pesquisa documental o fato de se tratar de documentos internos da organização, que, no caso desta pesquisa, são documentos provenientes das funções exercidas pela Igreja Católica e custodiados no Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga. Quanto à análise dos dados coletados, tomou-se como base a abordagem qualitativa que subsidiou a interpretação dos aspectos subjetivos que permeiam o arquivo citado e as atividades nele realizadas.

Para a coleta de dados, elaborou-se uma entrevista do tipo livre, com o intuito de recolher informações junto aos colaboradores do Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga. Composta por dois eixos – atividades de tratamento documental e de atendimento ao usuário; e contribuição sociocultural do LEV –, a entrevista foi realizada no dia 20 de maio de 2022 com Pedro Conte Lima.

Também foi adotada a técnica de análise documental, com o propósito de levantar os itens documentais custodiados no Arquivo do LEV considerados indícios de memória. Para esse levantamento, também buscou-se o acompanhamento dos profissionais que atuam no arquivo, uma vez que eles possuem conhecimento sobre o valor cultural materializado em determinados documentos considerados significativos dentre os demais itens.

O corpus desta pesquisa centra-se no Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga, da Cúria Metropolitana de Salvador. Um fundo arquivístico vasto e rico que, após acordo com a Igreja Católica, foi doado à Universidade Católica do Salvador (UCSAL), que ficou responsável pelo seu tratamento, restauro, preservação e difusão. O acervo atende a pesquisadores acadêmicos e sociedade civil, conforme será apresentado no próximo tópico.

Apresentação e análise dos dados

A Arquidiocese de São Salvador nasceu em 25 de fevereiro de 1551 e, com ela, também a documentação que hoje faz parte do seu acervo documental. Foi a primeira diocese do Brasil – uma das mais antigas das Américas – e possui o maior acervo eclesiástico da América Latina.

O Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador esteve sediado nas dependências do palácio arquiepiscopal, localizado no centro histórico de Salvador. Devido a problemas estruturais, foi firmada uma parceria do cardeal dom Geraldo Majella Agnelo com a UCSAL e, desde 2002, esse acervo eclesiástico vem sendo custodiado pela equipe do Laboratório de Conservação, Restauração e Tratamento Arquivístico Reitor Eugênio Veiga, localizado no campus da UCSAL – Federação.

O arquivo da Cúria é constituído por livros de batismo, casamento, óbito, dentre outros tantos documentos que podem revelar traços sociais, políticos e culturais da Bahia. O LEV é constituído por cinco salas, divididas para as funções de supervisão técnica e identificação do acervo; pesquisa; desinfestação e quarentena; expurgos, limpeza mecânica, higienização; laboratório de restauração; e guarda do acervo.

Para o alcance dos objetivos, os dados serão apresentados e analisados em dois blocos. Inicialmente serão interpretadas as respostas obtidas a partir da entrevista e, em seguida, serão apresentados documentos selecionados que carregam vestígios de memória custodiados no Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga.

Atividades de tratamento documental e de atendimento ao usuário realizadas pelo LEV

Na entrevista realizada com Pedro Conte Lima, buscou-se levantar como se formou o Laboratório Eugênio Veiga e a proveniência da documentação custodiada. O respondente citou que

o Arquivo da Cúria Metropolitana e Arquidiocesano de Salvador se formou com a criação e construção do palácio arquiepiscopal de São Salvador, hoje conhecido como Palácio da Sé, localizado na praça da Sé no século XVIII. De lá para cá, várias pessoas do clero, vários membros do clero já vinham trabalhando na organização desse acervo. Porém, até então, até a criação do LEV não havia nenhum profissional formado na área de arquivo. Acontece que em 2000, quando foi feito o projeto para a formação e construção do Laboratório Eugênio Veiga, o acervo se encontrava em péssimo estado de conservação, ainda no palácio arquiepiscopal. Ficava localizado no subsolo em um poente onde a documentação sofria com a umidade, com o calor e com os insetos, principalmente cupim e traças. Em 2002 foi inaugurado o Laboratório Eugênio Veiga. E como se deu essa inauguração? O próprio arcebispo da época, o cardeal dom Geraldo Majella, percebendo a fragilidade e a importância da documentação, pediu ajuda à universidade, ao então reitor professor José Carlos. Mediante esse pedido, o professor contatou o centro de documentação da universidade, e os professores de arquivo e paleografia, que eram na época a professora Venétia Durando Braga Rios e o professor Afonso Bandeira Florence. Com esse projeto em mãos, precisava-se de um setor de restauro, pois de nada adiantaria ter o tratamento arquivístico se essa documentação não fosse salva, já que estava em péssimo estado de conservação. Foi então que foi convidada a professora Anna Maria Villar, recém-aposentada da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que foi diretora da Escola de Belas-Artes e professora da cadeira de Restauração de Acervos, para compor o laboratório. A professora Anna Maria Villar então fez o projeto do laboratório, de todos os equipamentos, das técnicas envolvidas e de toda a mão de obra. [...]. A inauguração se deu em 24 de fevereiro de 2002 e, desde então, nós viemos com nosso trabalho.

A partir da resposta, observa-se que a preocupação surgiu de membros da própria Igreja Católica, provavelmente por reconhecerem o valor histórico, cultural e memorialístico da documentação. Destaca-se o trecho no qual o respondente enfatiza que de nada valeria o tratamento arquivístico se, antes, a documentação não passasse por uma intervenção de restauro e conservação. Pontos esses indicados por Rousseau e Couture (1998) quando defendem as sete funções arquivísticas, incluindo a conservação/preservação como uma das atividades que devem ser consideradas no âmbito das práticas arquivísticas, que no caso do LEV foi a primeira a ser realizada. Depois, seguiram-se as demais ações de tratamento documental, tal como identificação, seleção, higienização, descrição etc.

Buscou-se compreender como o LEV está estruturado, já que é composto por um laboratório de restauro e um arquivo. Assim, questionaram-se as funções de cada setor. Pedro Conte Lima respondeu:

Eu ouso dizer que o LEV é o único arquivo do Brasil em que existe uma simbiose entre o setor de arquivo e o setor de restauro. Nos outros arquivos históricos existe, sim, o setor de restauro, mas não existe essa simbiose. No LEV nós temos um grupo de pesquisa, e os restauradores e os arquivistas estão no mesmo grupo, discutem e estudam juntos o que é feito no acervo. Cabe ao laboratório de restauro fazer uma triagem da documentação a ser restaurada, não pela importância, porque toda documentação é importante. Não existe uma documentação mais importante do que outra, porque quem dá o valor à documentação é o pesquisador [...]. Na triagem a gente parte do estado de conservação do documento; também pela sua raridade, se é um documento único ou se existe cópia; e também pela frequência de pesquisa. Então, além da triagem no restauro, depois de já selecionada a documentação, é feito o trabalho de expurgo ou higienização do acervo [...] para, a partir daí, ir para a restauração propriamente dita, se for o caso. Já no setor de arquivo, o trabalho não é menos importante, e é feito, além da identificação, quando pegamos documento por documento, lemos, transcrevemos e identificamos. Para então setorizar a partir da sua tipologia. Além disso, no setor de arquivo, é feita a parte da pesquisa. Então, a gente separa a documentação, marca a pesquisa. Nós transcrevemos para alguns pesquisadores que solicitam certidão oficial, além de todo o controle do acervo.

Com base na resposta, pode-se observar que, apesar de a atividade de restauro ser realizada pelo laboratório e outras pelo arquivo, fica evidente que existe um trabalho colaborativo em que ambos os setores buscam atender as demandas dos usuários e as necessidades de tratamento de cada documento, considerando que todos os itens são passíveis de serem reconhecidos como bem patrimonial, pois o que irá determinar, nesse caso, será a necessidade apresentada pelo usuário da informação.

Em seguida, foram levantadas as tipologias encontradas no acervo. O respondente comentou:

A tipologia encontrada do acervo é muito variada. O LEV foi formado num período em que havia uma simbiose entre Estado e Igreja chamado padroado régio. Ou seja, a documentação do Laboratório é de importância tanto para a arquidiocese quanto para a sociedade civil. O acervo é composto basicamente de processos matrimoniais, libelos de divórcio, toda a documentação referente aos cartórios (que na época não existia, só veio existir cartório após a República), que é documentação de batismo, casamento e óbito; a documentação dos arcebispos; correspondências, despachos e outros; a documentação das freguesias; o tribunal das relações eclesiásticas (os processos de denúncias, as correspondências, as atas); as documentações de registro paroquial (a criação das paróquias, os limites); a fábrica, e quando me refiro à fábrica me refiro às finanças, que se chamava de fábrica; o tombo, também as correspondências das paróquias, as festas e as estatísticas; os processos de ordenação (habilitação de Genere et Moribus, patrimônio, exames e a matrícula dos ordenandos, os provimentos dos cônegos, a indicação para os padres), que ia de nomeação à colação e à posse em cada freguesia; os processos de incardinação e excardinação, secularização das ordens religiosas e estatísticas. Também temos aqui algumas documentações, apesar de poucas, religiosas, seus recolhimentos, conventos [...].

A partir do relato, fica evidente que as espécies e tipologias documentais custodiadas pelo LEV são diversificadas e pertencentes a diferentes fundos arquivísticos. Sobre isso, Pedro Conte Lima reforça que, desde a criação do LEV, a equipe trabalha no setor de arquivo com a identificação do acervo e junto ao professor Cândido da Costa e Silva, e periodicamente atualiza o quadro de arranjo, disponibilizado aos pesquisadores e utilizado pela própria equipe para compreender a documentação.

Foi perguntado como se dá o acesso do público externo ao acervo e qual o perfil dos pesquisadores. O respondente citou que

o acesso ao público externo é livre. Amparados pela Lei do Acesso à informação (LAI), todo arquivo de caráter permanente histórico, privado ou público, deve ter acesso à pesquisa. Mas como é feito isso? O pesquisador precisa antes marcar, ou seja, agendar a pesquisa, pois no nosso laboratório, devido ao tamanho, temos a limitação de quatro pesquisadores por dia. Então, a pesquisa é agendada antes, e nós precisamos separar o dia e o material que o pesquisador vai pesquisar. Também é feita junto com essa marcação uma ficha de pesquisa, na qual o pesquisador informa qual a finalidade da pesquisa e a documentação a ser pesquisada. Com isso nós podemos fazer uma estatística e um dossiê anual da quantidade de pesquisadores e do que é pesquisado. Além disso, os pesquisadores são de caráter acadêmico… então muitos que estão fazendo graduação, pós-graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado. [...] a maioria dos pesquisadores é de pesquisadores genealógicos, que buscam dados da família por diferentes interesses, ou por questão de querer cidadania, ou por questão de conhecimento, curiosidade. E aí vai de cada pesquisador. E também tem os pesquisadores historiadores que querem fazer obras literárias, também têm acesso. Esses são os três públicos que mais têm acesso.

Conforme apresentado, podem-se delinear os perfis de usuários em três categorias: pesquisadores de caráter acadêmico cujos objetos de investigação têm relações com a documentação custodiada pelo LEV; pesquisadores genealógicos que buscam por informações de familiares com demandas diversas; e pesquisadores historiadores. Com isso, constata-se que o referido acervo é frequentado a partir de diferentes demandas que buscam, a começar pela documentação, acessar informações que vão desde as de valor informativo até aquelas interessadas no valor cultural que o documento registra. Sabe-se que o LEV se classifica como arquivo permanente, que são aqueles que possuem acervos documentais ricos em traços culturais, capazes de revelar o passado e, também, transparecer valor probatório e/ou informativo.

Foi questionado se o LEV possui instrumentos de pesquisa impressos ou on-line que estejam disponíveis para os pesquisadores. Obteve-se a seguinte resposta:

Sim. O LEV é formado por 15 mil metros de documentação – na arquivística a gente fala em metragem. É uma documentação muito extensa, e à medida que nós vamos identificando, esse arranjo, essa organização é mutável, vai mudando. Então, nós atualizamos também os catálogos e bancos de dados. Os catálogos que nós temos não são disponibilizados para os pesquisadores, são de uso interno. Porém, temos alguns bancos de dados que são disponibilizados aos pesquisadores presencialmente. Ainda não conseguimos colocar isso em site, de forma digital, mas o pesquisador vem e tem acesso ao banco de dados. Não é o banco de dados de toda a documentação porque, como eu falei, isso se dá a partir de quando nós vamos identificando, mas ele tem acesso a isso e pode encaminhar a sua pesquisa. Ele tem também acesso ao quadro de arranjo arquivístico do acervo.

Na resposta apresentada pelo entrevistado, percebe-se que existe uma compreensão da relevância dos instrumentos de pesquisa que são provenientes das atividades de descrição e classificação, contudo, pela dimensão da documentação, nem tudo ainda está inserido no catálogo ou no quadro de arranjo. Como afirma Lopez (2002), através da descrição é possível alcançar uma melhor orientação para consulta e localização dos documentos de arquivo.

Em seguida, buscou-se compreender de que forma o LEV contribui para a preservação e difusão da memória eclesiástica e sociocultural em âmbito nacional e regional. Pedro Conte Lima respondeu:

Além de salvaguardar o acervo em sua forma física, através da conservação, restauração e tratamento arquivístico, o LEV contribui com as pesquisas ajudando os pesquisadores, tanto acadêmicos quanto historiadores, a divulgar e difundir a memória eclesiástica e sociocultural. Pois o LEV tem a importância através do padroado régio, as tipologias do LEV têm importância tanto para a sociedade eclesial quanto para a sociedade civil. Dessa forma, nós divulgamos através de museus, publicações, seja de artigos ou publicações de outrem, nós estamos sempre disponíveis para auxiliar as pesquisas para salvaguardar essa memória. Quanto à memória regional e nacional, o laboratório ajuda nessa difusão da memória, pois a importância regional é muito grande, já que se trata do Arquivo da Arquidiocese de São Salvador da Bahia, numa época ainda no século XVI, quando era a única diocese do Brasil. Então, muita documentação nacional está aqui e principalmente a documentação relativa à Bahia. A partir daí, quando são criadas novas dioceses desmembradas da diocese da Bahia, a documentação deixa de ser produzida e enviada para nós. Mas a documentação da Bahia continua vindo para cá, então a importância regional é muito grande. Nacionalmente, além dessa questão que eu falei, de ser a primeira diocese do Brasil, o único lugar onde existia o Tribunal da Relação Eclesiástica era Salvador. Dessa forma, todos os processos em âmbito nacional que precisavam ser julgados nesse tribunal vinham para a Bahia. Os processos de libelo de divórcio, os processos de denúncia contra crimes eclesiásticos, todos, independentemente do local do Brasil, são enviados para cá. Então, esse arquivo tem uma memória, uma importância memorial nacional e regional.

Essa resposta reforça o quanto o LEV é uma unidade de informação importante para a memória da Bahia e do Brasil e destaca o quanto essa compreensão por parte dos seus colaboradores é necessária. Pode-se evidenciar o reconhecimento que Pedro Conte Lima possui do seu papel de disseminador da memória do país, ao reconhecer que, ao atender as demandas informacionais de pesquisadores, contribui de maneira indireta na produção de outros textos (científicos) que irão registrar que o LEV salvaguarda indícios de memória da história do país e seus povos.

Por fim, foi questionada qual a tipologia documental mais pesquisada no LEV:

As documentações mais pesquisadas são os registros paroquiais: casamento, batismo e óbito; e a documentação dos processos de ordenação: de Genere, que é a genealogia dos habilitandos a seminaristas, a padre. Isso de antes do século XIX, Vita et Moribus, que é vida e costume. Então existia na verdade toda uma devassa na vida desse habilitando para saber se ele estava apto a entrar no seminário. Essa vida e costume era para saber se o sujeito era de boa índole, de boa família, digo, moralmente, patrimônio, porque o sujeito tinha que se sustentar até colar grau e receber o primeiro salário que era na época chamado de prebenda. Até ele receber a primeira prebenda ele tinha que se sustentar, então precisava provar isso, e era essa a documentação: de Genere, Moribus e patrimônio. Também outra documentação muito pesquisada é a documentação de irmandades e do cabido. Essas quatro são as documentações mais pesquisadas.

Diante do exposto, fica evidente que a documentação custodiada pelo LEV é capaz de revelar traços de memória de seus produtores, de transparecer costumes da época em que foi produzida, de apresentar aspectos de determinadas pessoas que não eram informações públicas. Para complementar essa questão dos documentos consultados e seus traços memorialísticos, o próximo tópico irá apresentar itens que foram selecionados para análise.

Itens documentais custodiados no Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga considerados indícios de memória

Neste tópico são apresentados itens documentais salvaguardados pelo Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga. A seleção foi feita por uma profissional atuante no LEV há seis anos, a arquivista Miracy Ramos, que escolheu alguns documentos considerados artefatos de memória preservados pelo LEV. Foram selecionados quatro itens, apresentados a seguir.

A Figura 1 trata do Livro de Registros de Batismo da Freguesia de Nossa Senhora do Ó de Paripe, em que constam registros de batismos, de óbito e de casamento, feitos pela Igreja até a República, devido ao padroado régio. É o documento mais antigo do Arquivo da Cúria de Salvador.


Figura 1 – Livro de Registros de Batismo da Freguesia de Nossa Senhora do Ó de Paripe. Fonte: Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga


Com esse documento, datado de 1588, reforça-se o entendimento de que o Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga tem preservado itens carregados de fatos históricos e traços culturais de diferentes períodos. Comprova-se também que a Igreja Católica esteve por um longo período com o controle da produção documental da sociedade brasileira. Por ser o documento mais antigo do arquivo, requer um cuidado ainda maior, não só pela raridade, mas também pelo desgaste já sofrido pelo tempo.

Os livros de registro de batismo são uma das tipologias documentais mais pesquisadas pelos genealogistas, por conterem informações de pelo menos duas gerações: daquele que foi batizado, dos seus pais e padrinhos, e em alguns casos até dos avós.

A Figura 2 refere-se ao Estatuto da Sé da Cidade de São Salvador da Bahia, do ano de 1719.


Figura 2 – Estatutos da Sé da Cidade de São Salvador da Bahia. Fonte: Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga


Esse estatuto registra o ordenado por d. Sebastião Monteiro da Vide, quinto arcebispo de Salvador. O documento traz a regulamentação da Igreja da Sé e do cabido da mesma cidade, além de uma carta do rei d. João V, escrita em 1719, autorizando que se façam os estatutos. Percebe-se que os documentos são capazes de revelar fatos e evidenciar relações e acordos sociais vivenciados em determinada época. Trata-se de um livro encadernado e manuscrito em papel avergoado com presença de marca d’água.

A Figura 3 ilustra o documento que firma o compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Vila de Maragogipe. Tanto a Figura 2 quanto a 3 são ilustrações de documentos que registram informações mais voltadas para a administração da Igreja. Ou seja, trata-se de documentos normativos.


Figura 3 – Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Vila de Maragogipe. Fonte: Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga


O documento, datado de 1820, registra o compromisso da Irmandade de Nossa Senhora dos Homens Pretos, instituída e incorporada à Igreja de São Bartolomeu, edificada no ano de 1643 na vila de Maragogipe, bispado de São Salvador da Bahia. Além disso, regula os direitos e deveres de cada membro da irmandade. Trata-se de um livro encadernado e manuscrito em papel avergoado com presença de marca d’água e ornamentos em aquarela. Salienta-se a importância da irmandade na ajuda às pessoas escravizadas dos engenhos de cana-de-açúcar, especialmente em relação às cartas de alforria e ao acolhimento dos homens livres.

Dentre os marcos históricos da Bahia, tem-se também a Figura 4, que se refere ao registro de batismo de Santa Dulce dos Pobres, no ano de 1914.


Figura 4 – Batismo de Santa Dulce dos Pobres. Fonte: Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga


O documento traz o registro do batismo de Maria Rita Lopes Pontes, da freguesia de Santo Antônio Além do Carmo. Trata-se de um documento encadernado e manuscrito sobre papel avergoado. A ilustração refere-se a uma parte da página do livro de batismo da primeira santa brasileira.

A partir da análise desses documentos, entende-se que as informações são carregadas de valor histórico e cultural por trazerem aspectos das comunidades que formaram esse estado. A importância das informações incrustadas em cada um desses papéis serve para muitos grupos de pesquisadores – os que desenvolvem pesquisas científicas, os que buscam determinadas comprovações para sua vida particular, ou mesmo aqueles que são movidos por mera curiosidade.

Diante do exposto, pode-se inferir que o Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga preserva um significativo acervo carregado de vestígios memorialísticos. Contudo, é válido enfatizar que, para além desse valor memorial, muitos dos documentos que compõem o acervo possuem valor probatório e jurídico, posto que uma das buscas mais frequentes por documentos no LEV refere-se à pesquisa genealógica, para comprovação de direitos, em caso de cidadania, por exemplo.

A importância do Arquivo do LEV para a arte da aprendizagem, e em especial para a arquivologia, é imprescindível. Pode-se tê-lo como base de estudo em vários conteúdos como paleografia, tipologia documental, restauração de documentos, memória etc. Na história, o seu estudo pode apoiar pesquisas de como foram as relações entre a Igreja e o Estado de forma ampla e regional, partindo do pressuposto de que a Bahia foi a origem do Estado brasileiro. Por exemplo, como foi outrora a sociedade baiana a partir das ligações entre as pessoas que são citadas em diversos documentos. Enfim, são muitas as contribuições para além daquele fim para o qual foi criado o documento. Cada informação encontrada vem carregada de memórias em papel escrito à mão de uma sociedade ancestral, que mesmo com tão poucas inovações para a época já entendia o valor das informações documentadas.

Considerações finais

Constatou-se que estão custodiados no Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga documentos que são considerados indícios de memória e que também possibilitam a comprovação de fatos, como exemplos: a identificação de genealogia, análise de processos da trajetória de padres e arcebispos etc. Reitera-se que a documentação só passou a ser tramitada em cartórios no Brasil após a República, por isso os arquivos eclesiásticos foram responsáveis pelos registros de informações provenientes das práticas e fatos sociais do país, em diferentes tipologias documentais.

Quanto às atividades de tratamento documental realizadas pelo LEV, foram identificadas as ações de avaliação, conservação, restauro, classificação, descrição arquivística, resultando na produção de quadro de arranjo e catálogos. O perfil dos usuários, de maneira majoritária, é formado por pesquisadores acadêmicos, genealógicos e historiadores.

Quanto aos aspectos de memória que estão custodiados em arquivos eclesiásticos e sua contribuição sociocultural, os resultados evidenciaram que o Arquivo do Laboratório Eugênio Veiga preserva um tesouro documental ao salvaguardar itens que revelam fatos históricos representativos para Salvador, para a Bahia e para o Brasil. Por exemplo, o registro do batismo de Irmã Dulce – primeira mulher brasileira considerada “santa” pela Igreja Católica – demonstra o valor histórico desse arquivo.

Esta pesquisa buscou descrever a importância dos arquivos eclesiásticos, do seu valor memorialístico e sociocultural, e chamar a atenção para a necessidade de integrá-lo à comunidade que o cerca. Dentro desses arquivos, a exemplo do LEV, há informações que devem ser disseminadas, que são capazes de revelar vestígios de como se constituiu a sociedade brasileira.

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Recebido em 27/9/2022

Aprovado em 7/2/2023



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