Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 2, maio/ago. 2023

Marc Ferrez: a fotografia como experiência | Artigos livres

A literatura como arquivo da Guerra do Contestado

Literature as an archive of the Contestado War / La literatura como archivo de la Guerra del Contestado

Sérgio Roberto Massagli

Doutor em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) com pós-doutorado no Programa de Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor adjunto da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Brasil.

massaglis@hotmail.com

Resumo

Abordar a produção literária sobre o Contestado pressupõe discutir categorias como testemunho, memória e arquivo, bem como considerar o papel dos autores com relação ao passado e à história. Este trabalho mapeia o acervo literário sobre a Guerra do Contestado para identificar o que Leonor Arfuch chama de “temporalidades da memória”, mostrando que há peculiaridades na forma de se escrever sobre um evento traumático nos períodos que lhe sucedem.

Palavras-chave: literatura; arquivo; memória; Guerra do Contestado.

Abstract

When approaching the literary production on the Contestado War it's necessary to take into account important categories for history such as testimony, memory and archive, as well as to consider the role of authors in relation to the past and history. This work maps the literary collection produced about the Contestado War to identify what Leonor Arfuch calls “temporalities of memory”, showing that there are peculiarities in the way of writing about a traumatic event in the periods that follow it.

Keywords: literature; archive; memory; Contestado War.

Resumen

Abordar la producción literaria sobre el Contestado supone discutir categorías como testimonio, memoria y archivo, así como considerar el papel de los autores en relación con el pasado y la historia. Este trabajo mapea el acervo literario sobre la Guerra del Contestado para identificar lo que Leonor Arfuch llama “temporalidades de la memoria”, mostrando que hay peculiaridades en la forma de escribir sobre un hecho traumático en los períodos que le siguen.

Palabras clave: literatura; archivo; memoria; Guerra del Contestado.

Considerações iniciais

Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava. Benjamin (2000, p. 240)

Este artigo pretende trabalhar com o conceito de arquivo em um entendimento amplo, como o fez magistralmente Eurídice de Figueiredo em A literatura como arquivo da ditadura brasileira (2017), cuja leitura me inspirou a utilizar o mesmo procedimento com relação a um evento igualmente muito mal resolvido da história brasileira: a Guerra do Contestado. Afinal, do mesmo modo que o período da ditadura militar (e tantos outros acontecimentos, normalmente movimentos de luta pela terra, insurgências e revoltas populares sufocadas com violência extrema pelas forças oficiais), o conflito do Contestado, ocorrido há mais de um século, assombra a nossa memória. O Brasil, de fato, é um país que lida mal com o seu passado, recusando-se a encarar fantasmas e passar a limpo a história.

Hoje há um entendimento quase consensual de que a memória é um processo aberto de reinterpretação do passado, assim como de que o passado não é simplesmente uma memória constituída oficialmente pelas classes dominantes, manipulada por elas a fim de glorificar os seus heróis, justificar os seus pontos de vista e manter os vencidos sem voz para contarem a sua versão. Assim, a concepção de história a ser adotada aqui não é aquela apoiada em um tempo linear e homogêneo da historiografia tradicional, mas aquela postulada por Walter Benjamin, desvinculada de origem e causalidades e calcada num “tempo que salta para fora da sucessão cronológica niveladora com a qual uma certa forma de explicação histórica nos acostumou” (Gagnebin, 1999, p. 10). Trata-se, pois, de “escovar a história a contrapelo” (Benjamin apud Löwy, 2005, p. 70), perspectivando-a do ponto de vista dos vencidos, em oposição à história oficial do “progresso”, cuja identificação com as classes dominantes oculta os projetos e reivindicações dos oprimidos do passado e do presente.

Nessa leitura histórica, a estratégia é questionar, em sua composição e linguagem, a confiabilidade cega em um único discurso hegemônico e desconstruir algumas narrativas predominantes. Para este fim, o registro deixado pelo acervo de obras literárias sobre um acontecimento ou período da história constitui um arquivo de fundamental importância.

Consequentemente, este artigo propõe-se a inventariar o acervo literário produzido ao longo do tempo sobre a Guerra do Contestado, detendo o olhar com mais atenção sobre algumas obras, para identificar o que Leonor Arfuch chama de “temporalidades da memória” (2012, p. 13), já que há peculiaridades na forma de se escrever sobre um evento traumático nos períodos que lhe sucedem, porque há coisas que demandam um transcurso de tempo para poderem vir à luz e serem aceitas. Ao analisar a produção literária sobre o Contestado, fica claro que, com o passar dos anos, o olhar sobre o conflito deslocou-se para aqueles que a história oficial deixou de lado: o caboclo expropriado de sua terra, os chefes dos rebeldes, as lideranças femininas, entre outros.

Para isso, após delimitar o conceito de arquivo de modo suficientemente amplo para abarcar também os textos literários, será apresentado um panorama do estado atual da arte quanto aos estudos críticos que contestam a versão oficial que perdurou por mais de três décadas, a fim de identificar diferentes temporalidades da memória. A partir daí, será elencado um acervo das obras literárias, para em seguida, num diálogo com os arquivos históricos, discutir as abordagens inerentes a três publicações de diferentes momentos dessa memória literária sobre a Guerra do Contestado, sendo elas: Eles não acreditavam na morte, de Fredericindo Marés de Souza, o primeiro a ser escrito, ainda em 1958; O bruxo do Contestado, de Godofredo de Oliveira Neto, escrito nos anos 1990, sob o influxo de uma renovação do romance de natureza histórica; O reino místico dos pinheirais, do jornalista Wilson Joel Leal Gasino, publicado em 2011, portanto mais próximo de nossa contemporaneidade.

A memória na confluência das narrativas históricas e literárias

Ao tratar de memória, a discussão inevitavelmente deve se enveredar, antes de tudo, para questões fundamentais sobre a narração, sempre presentes nos estudos literários desde os teóricos antigos: O que é contar a história? O que é contar histórias? Para que isso serve? Por que há essa necessidade? Dessa maneira, cabe aqui iniciar com uma reflexão centrada nas formas possíveis da história ou de histórias serem contadas desvinculadas do modelo de verdade buscado pelos discursos sobre os acontecimentos históricos, de modo a escapar do binômio verdade/ficção. O que interessa é refletir sobre como a literatura, por meio de sua linguagem, ocupada com a tessitura de um universo ficcional, pode contribuir com a criação de novos sentidos, para além das noções estabelecidas de “verdade” e “ficção”, e ajudar a repensar os fatos históricos.

Bella Jozef afirma que história e ficção se originam de um mesmo tronco e, sendo ramos de uma só árvore, são próximas, dialogam entre si: “Ambas são formas de linguagem. Os fatos, na verdade, não falam por si. Só adquirem significado depois de selecionados e interpretados, provocando uma desfamiliarização do cotidiano” (Jozef, 2005, p. 35). Portanto, como construções linguísticas, ambas buscam representar o mundo a sua volta e interpretá-lo, atribuindo sentidos à massa crua dos acontecimentos empíricos. Para tanto, como afirma a teórica canadense Linda Hutcheon, obtêm suas forças a partir da verossimilhança, mais do que a partir de qualquer verdade objetiva, além de se identificarem como construtos linguísticos, altamente convencionalizados em suas formas narrativas e serem igualmente intertextuais, já que desenvolvem com os textos do passado uma relação de textualidade complexa (Hutcheon, 1991).

Para o historiador Paul Veyne, a noção de trama, como preconizada na obra Como se escreve a história (1998), constitui-se a partir do pressuposto de que os fatos não existem isoladamente. Ao historiador, em seu ofício, cabe fazer relações, seleções, montar as séries dos documentos, a partir da subjetividade. A trama é o tecido que constitui a forma da narrativa histórica. Assim, o historiador em sua subjetividade realiza os cortes, os encaixes e costura a sua trama. Veyne vê a história como uma mistura muito humana e pouco “científica”.

Embora Veyne afirme a noção de construção da história, de que ela é um discurso, uma representação a partir do princípio da verossimilhança, ele, contudo, não a separa de sua relação com a realidade. Declara que a história é um “romance verdadeiro”, enfatizando, assim, sua ligação intrínseca com o acontecido, o que a distinguiria da narrativa literária. Assim, a história tem, para ele, um compromisso com o acontecido, com o vivido, mesmo que este já não possa ser apreendido, não possa mais ser revivido, apenas rememorado e recontado, quantas vezes e de quantas formas os historiadores o puderem (re)construir.

Na mesma perspectiva de perceber a história como construção acerca do acontecimento, mas dando um passo adiante, Hayden White retira do historiador o “fardo” da história, ao estabelecer uma disjunção entre ela e a verdade, alegando que o historiador carregou sobre si por muito tempo a pesada carga de contar o que realmente aconteceu. Nesse sentido, afirma que o “historiador contemporâneo precisa estabelecer o valor do estudo do passado não como um fim em si, mas como um meio de fornecer perspectivas sobre o presente que contribuam para a solução dos problemas peculiares ao nosso tempo” (White, 2001, p. 53). Para ele, os discursos dos historiadores “são ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos e cujas formas têm mais em comum com os seus equivalentes na literatura do que com os seus correspondentes nas ciências” (p. 98). 

Diante dessa afinidade estabelecida entre a história e a literatura, em que White reabilita o conceito de ficção, conferindo-lhe uma noção positiva, de uma construção sobre a realidade por meio da qual conferimos sentidos aos acontecimentos do mundo, proponho agora estender este conceito segundo a discussão que Jacques Rancière faz em A partilha do sensível (2009).

Rancière afirma que todo “o real precisa ser ficcionado para ser pensado”. Para o autor, todos os campos de saber participam da partilha do sensível, que ele entende como sendo “o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas” (Rancière, 2009, p. 58). Portanto, para ser ficcionado, o real será partilhado a partir de uma distribuição dos lugares, pois uma partilha do sensível irá fixar, ao mesmo tempo, um comum compartilhado e frações exclusivas. Essa repartição se funda “numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha” (p. 15).

Por conseguinte, Rancière não investe sobre a dicotomia ficção/realidade. Ao contrário, para ele, diante das diferentes práticas ou formas de fazer ver e dar sentido ao sensível, uma “nítida separação entre realidade e ficção representa também a impossibilidade de uma racionalidade da história e de sua ciência” (Rancière, 2009, p. 54). Para o autor, a ideia comum de que a ficção se refere ao domínio do inventado, em oposição ao real, não faz sentido, porque, em princípio, a literatura “não é feita de imagens ou enunciados, mas de ficções, isto é, de coordenações entre atos” (p. 53-54). E aí, segundo esse conceito de ficção, tanto a arte como os outros saberes “constroem ‘ficções’, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer” (p. 59, grifo do autor).

Cabe, então, a seguinte questão: se o princípio da literatura não é a ficção, mas um determinado arranjo dos signos da linguagem e se, desse modo, sua soberania estética não é o reino da ficção, então o que definiria a especificidade da literatura nessa partilha do sensível e o que a relaciona tão proximamente com a história?

Rancière responde a essa questão afirmando que a arte, e consequentemente a literatura, são constituídas de “um regime de indistinção tendencial entre a razão das ordenações da descrição e interpretação dos fenômenos do mundo histórico e social” (Rancière, 2009, p. 55). E acrescenta que se trata apenas de constatar que a ficção, no período que chama de “regime estético”, acabou por definir “modelos de conexão entre apresentação dos fatos e formas de inteligibilidade que tornam indefinida a fronteira entre razão dos fatos e razão da ficção” (p. 58). Ele vai além e afirma que esses “modos de conexão foram retomados pelos historiadores e analistas da realidade social. Escrever a história e escrever histórias pertencem a um mesmo regime de verdade. Isso não tem nada a ver com nenhuma tese de realidade ou irrealidade das coisas" (p. 55, 58).

A retomada desses “modelos de conexão” pelos historiadores, de que fala Rancière, ganhou corpo a partir da década de 1960 com posturas de historiadores como Jacques Le Goff e Pierre Nora, que passaram a rejeitar a composição da história unicamente como narrativa, e a valorização dos documentos oficiais como única fonte básica de pesquisa, postulando uma história que banalizasse as formas de representação coletivas (a micro-história, que lida com experiências concretas locais sem ter a preocupação de interligá-las a um contexto global) e valorizasse as estruturas mentais das sociedades (a história das mentalidades).

Esse movimento, que ficou conhecido como a Nova História, segundo Peter Burke (1991), investe em uma conciliação entre dois métodos – o narrativo e o estrutural – em virtude da dificuldade de se estabelecer uma distinção clara entre acontecimentos e estruturas. Contribuem para tais discussões as teorias de Hayden White (2001), Northrop Frye (1978), Luiz Costa Lima (1986), Roger Duby (1986), Michel de Volvelle (1987), Roland Barthes (1988), Mario Vargas Llosa (1990), Peter Gay (1990), Roger Chartier (1990), entre outros, que buscaram reforçar o caráter linguístico-discursivo da história. Nessa nova concepção, a narração é avaliada não meramente como um tipo de discurso que apresenta características particulares, mas, sobretudo, como “uma forma de inteligibilidade, como uma estrutura sem a qual não seria possível apreender o caráter temporal da existência humana, nem compreender a ação dos indivíduos, configurados também sob formas narrativas” (Fleck, 2007, p. 157).

Assim sendo, não faz sentido falar de uma linha divisória rígida entre o discurso da história – sempre atrelado aos fatos – e a literatura, tradicionalmente entendida como produto único da imaginação. Afinal, elementos e técnicas de fabulação (ficcionalização) da realidade fazem parte do trabalho do historiador, enquanto o trabalho do escritor de literatura ganha dimensões históricas. Ademais, ambos se constituem como campos privilegiados de investigação da memória das sociedades, e uma compreensão mais precisa na recuperação de memórias não ocorre por meio de um discurso único, ainda que científico, mas sim pelo diálogo entre discursos que apresentam o passado humano em sua complexidade cultural.

A literatura como arquivo e o autor como testemunha

Abordar a produção literária sobre o Contestado pressupõe discutir categorias caras para a história, como testemunho, memória e arquivo e, ao mesmo tempo, considerar o papel e a responsabilidade dos autores com relação ao passado e à história.

Em primeiro lugar, para ampliar o conceito de testemunha, tomo emprestada aqui, por meio de Figueiredo, a noção de testemunho de Giorgio Agamben como sendo não de testis, um terceiro na disputa entre dois sujeitos, ou suprestes, alguém que viveu uma experiência sobre a qual pode testemunhar, mas como auctor, isto é, aquele que transmite a memória coletiva e que, ao mesmo tempo, trabalha nos arquivos para dar testemunho do que aconteceu no passado (Figueiredo, 2017, p. 42).

Pode-se, portanto, aplicar à literatura sobre o Contestado uma noção cara ao romance que se vale dos arquivos – a de “um conceito aberto da noção de testemunha: não só aquele que viveu um ‘martírio’ pode testemunhar” (Seligmann-Silva, 2003, p. 68). É também trabalho do intelectual se deter na auscultação daqueles que foram silenciados, de modo que ele, por sua vez, produza o seu próprio testemunho, já que é “aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro” (Gagnebin, 2006, p. 57). Desse modo, pode-se concluir que toda literatura que retrata os acontecimentos históricos tem um forte caráter de testemunho.

Já em relação ao conceito de arquivo é preciso lembrar que ele não se confunde com memória. Pelo contrário; segundo o historiador Pierre Nora, os arquivos se tornam necessários nas sociedades na medida em que estas não vivem mais da memória, mas da história. Ao discutir sobre “lugares de memória” na França, Nora escreve que “os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, atas notárias, porque essas operações não são naturais” (Nora, 1993, p. 13).

Também para Jacques Derrida, a memória não coincide com o arquivo. Este existe no lugar daquela: “Pois o arquivo, se esta palavra ou esta figura se estabiliza em alguma significação, não será jamais a memória nem a anamnese em sua experiência espontânea, viva e interior. Bem ao contrário: o arquivo tem lugar em lugar da falta originária e estrutural da chamada memória”. E conclui: “Não há arquivo sem um lugar de consignação, sem uma técnica de repetição e sem uma certa exterioridade. Não há arquivo sem exterior” (Derrida, 2001, p. 22).

Dessa forma, para Derrida, o arquivo, como lugar de memória, é a representação exterior e pública da memória interna e privada e, nesse processo, há que se levar em conta que os documentos escritos de toda ordem funcionam como elemento de arquivo. Daí a necessidade de se considerar a infinidade de camadas de sentidos que vão sendo superpostas em relação ao evento histórico, restando ao estudioso lidar com a história a partir desse palimpsesto. Afinal, nessa memória mais dinâmica, o passado nunca é um conjunto de fatos isolados, estando sempre aberto à interferência de acontecimentos novos.

Diferentemente da memória, que é subjetiva e fluida, o arquivo se expressa em signos que traduzem o passado como exterior e fixo. Por consequência, sua natureza é muito distinta da memória, cujo caráter é interior e se manifesta frequentemente de forma involuntária, dando lugar a vazios e indefinições que acabam sendo preenchidos com a imaginação. A literatura, assim como os prontuários, as atas notariais, os depoimentos policiais etc., também se expressa em signos, que traduzem o passado como exterior e fixo. Entretanto, como argumenta Eurídice Figueiredo, diferente deles, cuja “escrita objetiva tende a homogeneizar para que seja fixada uma versão da história sem fissuras”, a literatura “pelo viés da subjetividade mostra resíduos de experiências fraturadas pela violência do vivido. É por isso que a escrita do trauma é, frequentemente, uma escrita fragmentária e lacunar” (Figueiredo, 2017, p. 44). A autora cita Ettore Finazzi-Agrò (2014) para dizer que nos livros de historiadores e jornalistas que buscam a objetividade “falta a comoção pelos corpos torturados, pelas pessoas massacradas, pela dor dos sobreviventes”. Ou seja, falta o pathos, a empatia pela dor do outro. Por fim, Figueiredo conclui:

A ficção não é sinônimo de fantasia e de imaginação: trata-se, antes, de uma estratégia ordenadora da linguagem a fim de criar uma narrativa legível, compreensível. Jaques Rancière (2009, p. 58) observa que a ficção “definiu modelos de conexão entre a apresentação dos fatos e formas de inteligibilidade que tornam indefinida a fronteira entre razão dos fatos e razão da ficção, e que esses modos de conexão foram retomados pelos historiadores e analistas da realidade social”. Assim ele não vê uma fronteira rígida entre a história e a literatura. “Escrever histórias e escrever a história pertencem a um mesmo regime de verdade”. (Figueiredo, 2017, p. 44)

Portanto, pode-se dizer que os arquivos em sentido estrito são documentos de leitura árida, reservados aos historiadores, enquanto a literatura atinge um público amplo. De modo muito semelhante ao arquivista e ao historiador, o escritor de literatura também se vale da memória e dos arquivos, porém seu objetivo é outro, ele visa criar narrativas a fim de dar um testemunho pessoal da história. Consequentemente, “ao escrever para um público mais amplo, o autor encontra no leitor um elemento ativo na transmissão da memória para que não se apague aquilo que afetou a vida das pessoas” (Figueiredo, 2017, p. 47).

Um panorama conciso do arquivo literário sobre o Contestado

Na região do Oeste catarinense e Sudoeste do Paraná, desenrolou-se um litígio político e social que acabou se configurando em um dos episódios mais sangrentos da história do Brasil: a Guerra do Contestado (1912-1916), um evento histórico complexo que envolveu religião, política, exploração econômica e disputas territoriais. Foi um desses acontecimentos trágicos da história que até hoje inquieta os mortos. O evento ocorreu em uma região localizada próximo às fronteiras atuais dos estados do Paraná e de Santa Catarina e foi marcado por episódios violentos devido a sua situação de fronteira, aos movimentos migratórios de colonização e à ausência do poder regulador do Estado. Somou-se a isso a influência subterrânea da religiosidade popular que, em face de uma situação de precariedade econômica, social e institucional, contribuiu para dotar o movimento dos insurgentes de um forte sentido messiânico.

Como nos casos de outros movimentos messiânicos no Brasil, os registros sobre o Contestado padecem de um mesmo mal, o de terem ficado por muito tempo sequestrados pelas versões oficiais, registros quase que exclusivamente de elite, nos quais, segundo Alba Zaluar Guimarães, “os testemunhos dos que participaram dos movimentos aparecem sob o filtro próprio da imprensa ou dos processos judiciais instaurados contra eles ao final das campanhas” (Guimarães, 1979, p. 9). Essas versões consideravam a guerra “necessária” e mostravam empatia com os vencedores, tratando suas ações como “verdadeiras” e “justas”, ao mesmo tempo em que abordavam os sertanejos como rudes, analfabetos e fanáticos.

Devido às dimensões épicas (e trágicas) da Guerra do Contestado, é de espantar o fato de ter sido esquecida. Nas décadas subsequentes aos eventos bélicos, pairou um silêncio a seu respeito. As gerações mais recentes, mesmo aquelas que cresceram e se formaram nas regiões do entorno onde a guerra ocorreu, permaneceram sem receber informações sobre o conflito na educação formal, e ainda hoje esse acontecimento histórico continua à margem dos manuais de história do Brasil, não obstante o trabalho de muitos estudiosos em manter a sua memória viva, procedendo a uma intensa revisão dos trabalhos realizados pela historiografia mais tradicional.

Contra tal esquecimento, eclodiram, nas últimas décadas, produções de cunho artístico e acadêmico que paulatinamente começaram a revisar as versões espetaculares e idealizadas da guerra, principalmente a versão da historiografia tradicional – fonte maior na formação da memória oficial sobre o Contestado.

Essa memória coletiva sobre o Contestado produziu um considerável arquivo após o período de esquecimento que perdurou por mais de três décadas. A partir da década de 1950, historiadores começam a estudar a guerra com visões distintas daquela até então fornecida pelo oficialato (militares e imprensa oficial), que insistia no caráter fanático dos caboclos rebeldes e na natureza unicamente religiosa e messiânica do conflito. Oswaldo Rodrigues Cabral, com sua obra A campanha do Contestado (1960), foi um dos primeiros a adotar um método mais organizado na coleta dos testemunhos e confrontação de fontes, desde ouvir os personagens remanescentes, trocar correspondência com outros estudiosos e questionar os entendimentos já estabelecidos. Contudo, é obrigatório reconhecer que esse pesquisador ainda tratava a população cabocla de forma preconceituosa, referindo-se aos que aderiram ao movimento como “fanáticos”. No entanto, foi o primeiro a fazer uma crítica à concepção racial, lombrosiana, de Nina Rodrigues, que até então prevalecia.

Entretanto, o interesse pela revisão historiográfica surge no meio acadêmico com os trabalhos sobre a influência de Maria Isaura Pereira de Queiroz. Sua tese A guerra santa no Brasil: o movimento messiânico no Contestado (1957), apresentada na École Pratique des Hautes Études, da Universidade de Paris, França, em 1955, e publicada em 1957, inspirou muitos dos que escreveram na sequência, como os importantes trabalhos de Maurício Vinhas de Queiroz, Duglas Teixeira Monteiro, Marli Auras e Paulo Pinheiro Machado, entre outros. Seus estudos pioneiros marcam o início da mudança na maneira de abordar a Guerra do Contestado, não mais centrada nas teorias das ciências sociais da segunda metade do século passado – em especial no determinismo biológico, no racismo e no evolucionismo –, mas agora vinculando o conflito a questões sociais. Em sua tese, a estudiosa conclui que o movimento do Contestado se explica pelo ressentimento contra os coronéis que não foram fiéis a sua gente, acrescido dos problemas surgidos com a questão dos limites, a tensão religiosa entre os caboclos e os padres e, sobretudo, a perda de propriedades territoriais para as companhias estrangeiras.

Na década de 1960, Maurício Vinhas de Queiroz, em sua obra fundamental Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do Contestado (1966), adota uma linha de abordagem ligada à sociologia marxista e aponta como motivo principal do conflito a organização social e econômica da região. Com base em levantamento exaustivo de documentos e matérias jornalísticas, além da coleta de depoimentos, o autor analisou os vínculos entre as condições sociais precárias e conflituosas nas quais surgiu o movimento messiânico que deu origem à Guerra do Contestado, no interior de Santa Catarina e do Paraná. A pesquisa minuciosa entremeia ações e relações de natureza econômica, social, política e religiosa, desnudando questões fundiárias e a luta pela terra contra a exclusão e o desemprego. 

Duglas Teixeira Monteiro, na década seguinte, com Os errantes do novo século (1974), tenta superar o elitismo das várias versões por ele criticadas estudando o movimento do Contestado “de dentro”. Utilizando-se dos trabalhos pioneiros de Isaura Pereira de Queiroz e Maurício Vinhas de Queiroz, de quem obteve documentação elaborada, ao analisar o conflito ele articula o plano social com o simbólico. Teixeira Monteiro interpreta o movimento do Contestado como uma “crise global de uma comunidade humana ao desencantamento do mundo”, na qual tanto a crise no mandonismo local com a emergência do coronelismo provincial quanto a invasão de novos estilos de vida provocada pela expansão do capitalismo levaram a população sertaneja, a partir da religiosidade popular e seus valores tradicionais, a uma tentativa de “reencantamento do mundo”.

Esses e outros trabalhos ‒ como o de Marli Auras, Guerra do Contestado: a organização da irmandade cabocla (1985), que, a partir do pensamento de Antonio Gramsci, analisa o conflito como uma forma de luta dos caboclos contra a nova ordem capitalista, ou Lideranças do Contestado: a formação e atuação das chefias caboclas (1912-1916), de Paulo Pinheiro Machado, publicado em 2004, que, incluindo depoimentos dos últimos sertanejos sobreviventes, apresenta diferentes aspectos da aventura dos caboclos em sua luta pelo que entendiam por liberdade, dignidade e justiça ‒ são produções que demarcam as “temporalidades da memória” de que fala Leonor Arfuch e permitem reinterpretações da memória do Contestado.

Na literatura, com fundamentos na história, encontram-se várias obras de romancistas que em momentos distintos dedicaram-se a escrever sobre episódios envolvendo a Guerra do Contestado, como: Casa verde (1963), de Noel Nascimento; Geração do deserto (1964), de Guido Wilmar Sassi; Eles não acreditavam na morte (1978), de Fredericindo Marés de Souza;1 O jagunço: um episódio da Guerra do Contestado (1978), de Fernando Osvaldo de Oliveira; Império caboclo (1994), de Donaldo Schüler; Os rebeldes brotam da terra (1995), de Alcides Ribeiro J. da Silva; O bruxo do Contestado (1996), de Godofredo de Oliveira Neto; O dragão vermelho do Contestado (1998) e Chica-Pelega: a guerreira do Taquaruçu (2000), de A. Sanford de Vasconcelos; Glória até o fim: espionagem militar na Guerra do Contestado (1998), de Telmo Fortes; Chica-Pelega do Taquaruçu (2000), de Cirila de Menezes Pradi; Taipas: origem do homem do Contestado – o caboclo, de Octacílio Schuler Sobrinho (2002); Da cidade santa à corte celeste, de Delmir José Vicentini (2003); O reino místico dos pinheirais (2011), de Wilson Gasino, entre outros.

A produção romanesca vem, pois, ao longo das últimas décadas, desempenhando um importante papel em resgatar e manter viva a memória do Contestado, constituindo-se em instrumento fundamental de denúncia contra aqueles que construíram e/ou autorizaram interpretações preconceituosas da história, responsáveis por estigmatizar e marginalizar milhares de sertanejos que reivindicam sua terra, sua memória, sua cidadania, enfim, seus direitos humanos.

Temporalidades da memória na produção literária sobre o Contestado em três tempos

Com a finalidade de ler nos romances os vínculos entre os textos e o que Leonor Arfuch chama de temporalidades da memória, que podem ser entendidas como as instâncias distintas em que o que aconteceu pôde sair à luz, na medida em que existiam vozes que podiam falar, ouvidos que podiam ouvir: já que nem tudo pôde aparecer desde o início (Arfuch, 2016); três obras, publicadas em três momentos muito distintos da produção romanesca sobre o Contestado, serão a seguir comentadas. São os romances: Eles não acreditavam na morte, de Fredericindo Marés de Souza, o primeiro a ser escrito, ainda em 1958; O bruxo do Contestado, de Godofredo de Oliveira Neto, escrito nos anos 1990, sob o influxo de uma renovação do romance de natureza histórica; O reino místico dos pinheirais, do jornalista Wilson Joel Leal Gasino, publicado em 2011, em um período de valorização de questões por muito tempo ausentes ou relegadas a segundo plano no tratamento do conflito, como as relações étnico-raciais, os direitos humanos e o meio ambiente. O critério para a seleção dessas obras foi em grande parte determinado pela sua cronologia, não tendo essa escolha sido orientada por nenhum juízo de valor literário. O espaçamento de aproximadamente duas décadas entre sua produção ou publicação proporcionam o transcurso de tempo suficiente para que determinadas temporalidades de memória pudessem vir à luz e serem aceitas.

Segundo Leonor Arfuch, no devir testemunhal haveria momentos em que a palavra pode ser dita e escutada e este fato muda conforme o escritor e/ou o leitor estejam mais próximos ou mais distantes dos acontecimentos. Isso se dá devido à necessidade de haver um distanciamento temporal para que as pessoas que passaram por experiências de trauma consigam transmitir sua experiência anormal.

O trauma gerado pela Guerra do Contestado gerou um abismo de três décadas de silêncio, ou melhor, de silenciamento das vozes daqueles que, desde 1916, derrotados e espoliados pelas forças do Estado e dos coronéis, vaguearam pelos sertões do Paraná e de Santa Catarina, no início sendo literalmente caçados, depois, esquecidos e abandonados. Nesse ínterim viam seu território sendo ocupado pelos imigrantes brancos, de origem europeia, os quais foram criando novas narrativas e novos mitos de origem, apagando quase por completo a presença da cultura cabocla na região. Durante esse período prevaleceram os testemunhos dos vencedores, que foram constituindo os arquivos sob a forma de relatórios das forças oficiais, depoimentos colhidos em julgamentos de prisioneiros, artigos na imprensa (que invariavelmente expressavam a versão oficial). Outros arquivos, como os lugares de memória, cemitérios (muitos sendo valas comuns), capelas, cruzeiros, foram se consolidando como forma de resistência, à medida em que as testemunhas oculares e a memória iam desaparecendo. Obviamente esse processo de apagamento pela pátina da história não é completo, é cheio de rasuras, por baixo das quais se podem decifrar rastros e indícios daquele conflito épico. As obras literárias que foram escritas a partir do final dos anos 1950 têm feito o trabalho de revolver as camadas desse palimpsesto, auxiliando no papel de reconstrução das memórias do Contestado e de reescrita de sua história.

Eles não acreditavam na morte

Apesar de ter sido publicado em 1978, o livro de Fredericindo Marés de Souza foi escrito duas décadas antes, em 1958. É possível identificar nessa obra elementos que o aproximam do romance histórico tradicional do século XIX, como a narração objetiva, centrada no acontecimento histórico, e a presença de um narrador onipresente. Trata-se de uma publicação pouco estudada. Dentre os escassos artigos acadêmicos que mencionam a obra, destaca-se “Um romance paranaense”, de Marilene Weinhardt, publicado em 1998. Segundo a autora, o livro “não merece o desconhecimento em que jaz” (1998, p. 74). De fato, o romance se constitui em um documento riquíssimo, produzido com a sensibilidade de um escritor com alma de antropólogo, que durante a sua vida manteve uma paixão constante pelas populações originárias do Paraná.

Uma leitura em uma chave interdisciplinar do romance ajuda a revelar que as representações que o autor constrói ao redor do conflito podem auxiliar pesquisadores de diferentes campos do conhecimento a problematizar os sentidos construídos em torno de uma população marginalizada pela historiografia oficial, evidenciando a relevância documental dessa obra enquanto fonte indispensável para entender as disputas pela memória histórica do território Contestado. Esse cotejamento da narrativa literária com a produção historiográfica sobre o tema torna-se mais relevante quando se considera a data de sua escrita, conforme muito bem observou Marilene Weinhardt:

O volume, em edição de circulação restrita, traz uma “Explicação” do autor, datada de 1958. É evidente que uma obra só se realiza como tal no momento em que encontra seu leitor. Sem que se cumpra o circuito da comunicação, ela existe apenas em potencial. Ainda assim, comento o texto tendo em vista a perspectiva daquele ano. O fato de levar em conta o momento em que o escritor considerou seu texto por terminado faz grande diferença, particularmente em relação ao romance histórico, que depende de pesquisa documental, e mais especialmente ainda quando se trata de assunto que posteriormente mereceu estudos revisionistas. (1998, p. 74)

Portanto, embora não seja mais o caso, hoje, de se falar em revisão ‒ uma vez que abordagens de cunho histórico-sociológico dos anos 1960 (Queiroz, 1965; Queiroz, 1966; Teixeira Monteiro, 1974) já haviam relativizado a visão da história oficial ‒, em 1958, quando o autor deu a obra por acabada, vigorava ainda uma concepção histórica sobre o evento muito calcada na perspectiva fornecida pelos documentos oficiais e pela imprensa local e em pressupostos científicos ainda arraigados a uma epistemologia fundada no século XIX.

As zonas de pastoreio, extrativistas e agrícolas, que se estendiam entre os rios Iguaçu e Uruguai e abrangiam povoados e vilas, tornaram-se palco de conflitos violentos entre os caboclos revoltosos e os jagunços dos coronéis respaldados por tropas federais em 1912. Entre esses povoados e vilas se destacam: Porto União, Curitibanos, Palmas, Canoinhas, Três Barras, Lajes, Caçador e Campos Novos. Como se nota, hoje são importantes cidades dos estados do Paraná e de Santa Catarina. Naquele período, entretanto, era uma área sob litígio, pretendida pelos dois estados, o que gerava muita instabilidade no que tange ao registro de terras e à aplicação dos impostos. No início do romance de Fredericindo Marés de Souza, um pouco antes de eclodirem os conflitos, vemos um personagem de nome Venuto Baiano, “caboclo meão, escuraço e mui estradeiro...” (Marés de Souza, 1978, p. 15), que se tornaria importante durante a guerra, proseando com outros caboclos:

Ele sustentava, à pena de acesa luta, uma posse entre os rios Timbó e Paciência, trato de terras, ora paranaense, ora catarinense. Chegava a medição do Paraná, Sta. Catarina se atravessava. Chegava a deste estado, aquele se opunha. Venuto, ao sabor dessas reviravoltas, virava então de um ou outro lado da enjoada questão de limites entre os dois. – Eu sou mesmo é brasileiro – dizia logo. (Marés de Souza, 1978, p. 15)

Nesse universo sertanejo, o sistema de estratificação social era bem definido, num esquema básico de hierarquias que Maurício Vinhas de Queiroz, em obra já citada acima, procura descrever: “De acordo com a terminologia vulgar assim se escalonava a sociedade sertaneja: a) coronéis, b) fazendeiros, c) criadores, ou meio-fazendeiros, d) lavradores, e) agregados, f) peões” (Queiroz, 1965, p. 37).

Portanto, no ápice dessa estrutura estava o coronel, uma figura que teve o seu melhor momento na história brasileira durante o período da Velha República. Na base dessa pirâmide estavam os caboclos, a ocupar as posições de lavradores, agregados ou peões. Os caboclos formavam uma população heterogênea naquelas paragens ermas, disputando a terra com os bugres. O ambiente era inóspito e a vida muito dura. Fredericindo Marés de Souza assim pinta os caboclos:

Eles viviam chafurdados na terra; a mão calosa de arrancar mandioca, de colher milho, de manejar o laço, a foice, o facão; as vestes imundas das queimadas, tintas de sangue, encoscoradas de sol e chuva nas tropeadas; os pés deformados de bichos de pé, de pisotear o chão duro, os lamaçais catinguentos dos mangueirões de suínos, os olhos engorgitados, a pele ressequida e acobreada das fumaceiras dos carijos e barbaquás de erva-mate; a boca desdentada, curtida dos cigarrões de palha, da goleada de pinga e do chimarrão escaldante. Viviam vida real, selvagem, primitiva, curvados sobre a terra quase virgem que lhes sustentava. Sua alegria não era mais que o gargalhar nervoso da revolta, alegria fanfarroneira e valentona, traduzida no “aleito”, no jogo do facão, na cachola batida a cabo de rêlho, nas galopadas dos matungos nas raias; no truco violento, entremeiado de palavrões; nas cachaçadas mais violentas ainda, nos desafios de viola, nos sapateados com tamancos enguizalhados, nos velórios em que a aguardente e as cantorias abafavam ilusoriamente a tristeza e o luto, no frequente roubo ou fuga com a mulher querida ou simplesmente desejada. (Marés de Souza, 1978, p. 70)

É justamente um personagem caboclo, Elias Cantagalo (e seus familiares) que será eleito por Marés de Souza como o elemento norteador dos acontecimentos históricos narrados. Seu percurso ao longo do romance será o fio condutor que desfiará o novelo da trama literária. Assim, por meio dele, o leitor percorrerá um trajeto em que a ficção revela as minúcias da história da Guerra do Contestado com base na ausculta de testemunhas que realmente vivenciaram os conflitos.

Elias Alves, mais conhecido pela alcunha de Elias Cantagalo por causa de suas origens, é um homem de devoção ao Senhor, que foi parar na Barra do Só, às margens do Iguaçu, para além de Porto União, depois de ter sido desalojado com seu falecido pai, Bastião, e o resto da família. Após uma viagem de canoa foram bater ali, onde, à custa de muita labuta, desbastaram a floresta densa e se instalaram:

Em terra, [Bastião] abriu a facão a picada. No ar as aleluias formigavam estonteadas pela bulha estranha. Os borrachudos agressivos esvoaçavam. Batiam-se desguaritados, sorvendo o sangue dos intrusos. O nhapindá rasgou-lhe as carnes. Ele empurrou-o com o pé. A sola do pé de Bastião, virgem de sapato, virou cascão, tal e qual carapaça de cágado. Entrou mais fundo, os guapécas ganiram. Pulou do carreiro mal encoberto em disparada gordo tapiruçu quase do porte de u’a mula. Se fosse dessas antinhas, uma cambucica qualquer, nem gastava munição. Abate-o o tiro certeiro de sua pica-pau caçadeira. Talvez fosse a primeira descarga de pólvora ouvida naquelas margens do Iguaçu. Alcançou, meio engatinhando, o cocoruto de barranca íngreme, livre das enxurradas. Desbastou à foice o lugar do pouso. Atorou forquilhas de canela e levantou o girau. Cobriu tudo de palmas de jerivá. (Marés de Souza, 1978, p. 17)

Um lugar ermo e esquecido dos homens, onde era possível avistar, por trás de uns pinheiros, num gramado limpo, as choupanas de rachões de pinho, cobertas de tabuinhas da mesma madeira, no centro a bandeirola em cores de São Sebastião a tremular no mastro de pinheiro desgalhado. O tempo passou e Elias Cantagalo agora vivia com sua mulher e filhos, e um agregado, o velho balseiro Aleixo. De tempos em tempos passava algum mascate ou curandeiro, até mesmo transitou por ali o monge João Maria. Assim é descrito o sítio de Elias Alves:

Compunha-se o sítio apenas do casebre, ligado ao puxado da cozinha. Mais o paiol e o carijó de fazer erva. Malgrado testemunhar fruto de bruta energia humana, dava impressão morta, ideia de isolamento, de banza solidão, como a justificar o batismo: sítio da Barra do Só, ou na rima pícara dos cantadores: “Três pinheiros da Barra do Só onde dá pouca gente e sobra socó....”. (Marés de Souza, 1978, p. 15)

Só nos tempos de puxirão esse isolamento era rompido. A convite vinham, de mais de três léguas ao redor, vizindários para a ajuda na colheita. O sábado e o domingo seriam então dias de suor: o primeiro na enxada e o segundo no baile. No trabalho coletivo do puxirão os Cantagalo encheriam o paiol de milho catete, feijão guarumbê, abóboras e melancias, sob o calor do sol e da cachaça preparada com guaco. Na manhã seguinte, os puxirãozeiros cairiam no fandango.

Assim como Elias Cantagalo, milhares de outros caboclos que compunham a base dessa sociedade sertaneja desbravaram aquela terra selvagem, enfrentando toda sorte de perigos para constituir nas condições mais difíceis imagináveis as suas pequenas propriedades, para dali tirar a sua subsistência, ou colher e torrar o mate para vendê-lo a preço vil às empresas comerciais. Outra característica comum a todos eles era a de não ter o documento da posse de suas terras, podendo a qualquer momento ser expulso por alguma empresa imobiliária, como a Lumber, a Hansa, a Piccoli e a Hacker, ou por coronéis locais e seus apaniguados. Em suma, era uma prática comum a todos aqueles que possuíam alguma influência sobre os governos estaduais: “Àquela época denominavam-se bendengós largos tratos adquiridos por preços irrisórios aos governos estaduais e que, depois de expulsos os posseiros, eram logo passados adiante ou permaneciam incultos, à espera de ocasião mais propícia para a venda” (Vinhas de Queiroz, 1966, p. 79).

Portanto, a passagem da condição de posseiro para a de despossuído passou a ocorrer com mais frequência e era normalmente acompanhada de muita violência. Desde a Proclamação da República e a modernização das relações tradicionais de produção, com a chegada das empresas citadas, deteriorou-se o tecido social, por muito tempo montado na estrutura descrita por Vinhas de Queiroz e conservado pelo instituto do compadrio. O esgarçamento desse tecido social levou à necessidade de resistência por parte da população cabocla, que encontrou nas palavras dos monges, que por ali haviam plantado suas sementes proféticas, uma forma de reencantar o mundo e se aglutinar em agrupamentos chamados de quadrados santos.

Dotado de um poder excepcional graças ao seu carisma, o líder messiânico se tornava apto a disputar com o coronelato a ascendência sobre a população cabocla. Em outra passagem do romance de Fredericindo Marés de Souza, na sequência da citação anterior, em que descreve o caboclo enfronhado na labuta com a terra, emerge uma descrição em direção oposta, com a finalidade de mostrar o universo místico do caboclo como terreno propício para o surgimento da figura do líder messiânico.

Mas se o corpo vivia grudado à gleba, orvalhado das madrugadas e dos serenos da noite, num mundo realíssimo e ingrato, ao erguerem a cabeça viam-se cercados de gênios e duendes, de demônios cruéis e santos vingativos, num universo fictício, à margem da lógica, fora do mais singelo raciocínio, além do real e do verdadeiro. As profecias místico-heróicas avassalavam seu espírito aterrorizado pelo medo do castigo e por um exagerado sentimento de culpa. Tudo em suas mentes rústicas tomava aspectos de tragédia. Procuravam salvação em amuletos, nos bentinhos, nas rezas que lhes fechavam o corpo contra a cadeia, a emboscada, a morte. Descriam sincera e absurdamente em seu fim terrestre. As profecias atribuídas aos chamados monges desencadeavam-se sobre eles com a força contagiante das grandes epidemias ceifadoras de vidas, grassavam como outrora ao cólera-morbo, a febre-amarela, a bexiga, atirando-os num delírio coletivo, no mais irracional fanatismo. (Marés de Souza, 1978, p. 70)

Desse modo, a terra era fértil e a semente já tinha sido plantada nas dobras do tempo. Adivinhos, puxadores de reza, capelães leigos, penitentes, entendidos, curandeiros, benzedores, profetas, monges e santos desde há muito haviam impregnado a imaginação daquele povo com curas, milagres, promessas e profecias.

Não obstante a visão simpática que Fredericindo Marés de Souza lança sobre a população cabocla ao longo da sua narrativa, em muitos trechos fica claro como sua concepção é marcada pela perspectiva que predominava na década de 1950, influenciada por estudiosos que mantêm ainda um olhar pejorativo sobre as populações do interior, para os quais o caboclo era chamado de “ignorante, incivilizado, matuto, tosco e ingênuo” (Machado, 2020, p. 82). Esse é um ponto de vista que perdurará por duas décadas, sendo questionado a partir de 1972, com os estudos de Duglas Teixeira Monteiro. O autor defende que a população rural tem que ser vista pelo que é, ou seja, por seus valores, tradições e cultura. Até então ela era entendida negativamente, isto é, definida pelo que não era: não urbana, não europeia, não industrializada, não alfabetizada.

Vale ressaltar que a perspectiva preconceituosa foi predominante no meio universitário no período da escrita do romance, mesmo entre aqueles como Maria Isaura e Maurício Vinhas, que adotavam a nova conceituação weberiana de messianismo, que tinha como ponto central a noção de anomia social como uma forma patológica de manifestação de irracionalidade. Se então não eram mais chamados de fanáticos, a sua desqualificação e pauperização intelectual continuavam sendo defendidas pelos pesquisadores (Machado, 2020).

Entretanto, a percepção que fica da leitura do romance de Marés de Souza é que sua visão sobre a população cabocla, sua cultura e seu meio ambiente, é profundamente empática com as razões que a levaram a se rebelar contra o regime dos coronéis e a tentar subvertê-lo. Portanto, o valor dessa obra está em seu pioneirismo no tratamento da questão, não apenas no que tange à cronologia dos fatos, mas sobretudo no que diz respeito a uma sensibilidade que, ainda à época da fatura desse romance, era sufocada por visões eivadas de preconceito sobre a insurreição cabocla do Contestado. Nesse momento da memória do Contestado, já era possível dizer que a população cabocla era quem perdia, pois concessões de terra eram dadas a coronéis e empresas exploradoras sem a menor atenção aos ocupantes, pobres posseiros, criando assim o clima de insurreição, a onda de insegurança e a rapinagem. De forma peremptória, o narrador do romance sentencia:

Foram os coronéis politiqueiros e não os sertanejos que transformaram aqueles vales férteis, aqueles planaltos cheios de luz, próprios para a paz e o trabalho, em terra rubra e maldita. As cruzes semearam-se. O sangue ensopou largos anos a grande região, regada de rios incomparáveis, de campos, de florestas de pinheiros tudo de beleza inexcedível. Criminosa incompreensão! Paladinos da arte, das letras, da civilização contra sertanejos, abandonados e embrutecidos, fanatizados pelo desespero, ao acicate das perseguições. (Marés de Souza, 1978, p. 116)

Por conseguinte, é lícito afirmar que o romance de Fredericindo Marés de Souza marca uma nova temporalidade de memória em que se investe no lado até então maldito do conflito. Ou seja, questiona o poder do Estado, apoiado pelo incipiente capitalismo internacional e pelo poder local dos coronéis, valorizando a irmandade mística dos sertanejos. O tempo todo o narrador se mostra preocupado com o destino das pessoas simples, mas também maravilhosas, revelando um fascínio pela relação mística e sobrenatural que demonstram com a própria existência, com a terra e com a natureza. Trata-se de uma nova perspectiva, que valoriza os caboclos em sua diversidade cultural e sua luta histórica. É lamentável que sua publicação tenha se dado vinte anos depois de sua escrita.

O bruxo do Contestado

A quase totalidade das obras literárias sobre o Contestado se inscreve na série do romance histórico e regional, marcada por uma forte aderência ao estilo realista, buscando dar conta de um relato “fiel” dos acontecimentos relacionados com a guerra. Assim, estabelecem uma marcante relação de dependência com o discurso historiográfico e aquilo que mais o caracteriza: a semelhança, não com um real possível, mas com a verdade do real referenciado. De maneira muito diferente, o romance O bruxo do Contestado se ocupa do conflito indiretamente, afastando-se do acontecimento histórico e sua época, para se concentrar na sua memória ao longo do tempo. Para tanto, Godofredo de Oliveira Neto faz uso de estratégias próprias de uma literatura de ficção mais autorreflexiva. Nesse tipo de ficção é estabelecido um jogo que evidencia a própria linguagem, por meio de estratégias narrativas que provocam e conclamam o leitor a dialogar com o texto (por conseguinte com a história) de maneira mais crítica, ao promover uma releitura dos fatos históricos da Guerra do Contestado valendo-se de uma escrita que consciente e sistematicamente chama a atenção para sua condição de artefato.

Essa obra se inscreve em um estilo que surge na década de 1980, cuja produção ficcional é marcada pela multiplicidade de estilos e liberdade estética do período. Flora Sussekind (1993), ao estudar a produção ficcional dessa época, afirma que o encerramento do período da ditadura e o fim da censura tornaram possível o surgimento de outros modelos de romance, como o policial, o histórico e a ficção-ensaio.

Valendo-se, portanto, desse momento de renovação do gênero, o romance de Godofredo de Oliveira Neto se inicia com uma “nota aos leitores”, avisando que a obra é resultado de uma mera edição de manuscritos encontrados em um antigo palacete em demolição no cento de São Paulo, no início dos anos 1980.

Esse procedimento, de se apresentar como editor de um original pretensamente encontrado e não como o verdadeiro autor, é antigo na história da literatura, tendo sido muito popular no século XVIII. Isso produz um efeito metaficcional, ao sugerir aos leitores que existe de fato um manuscrito com o título de O bruxo do Contestado que veio à luz pelas mãos do editor após ter sido encontrado em um antigo edifício em escombros. Fica estabelecida então uma relação que se alimenta de uma ficção dentro da ficção e que intensifica o efeito, ao mesmo tempo de verdade e de contrafação, ao confundir esses dois níveis enquanto realidades verossímeis.

Outro efeito importante é questionar a subjetividade autoral: Quem conta essa história? A partir de qual lugar está falando e com que autoridade? Devido a essa autorreflexividade, esse romance tem sido enquadrado no gênero conhecido como “metaficção historiográfica” (Goss, 1999; Barbosa, 2011; Lessa, 2011). Em sua obra Poética do pós-modernismo: história, poesia, ficção, do início da década de 1980, a canadense Linda Hutcheon cunhou o termo metaficção historiográfica para designar os romances que se constroem sobre uma dúplice inflexão: de um lado refletem sobre o próprio processo de elaboração artística, daí o caráter metaficcional; de outro, num movimento ambíguo, utilizam a história para, em seguida, contestar a própria veracidade histórica. Trata-se de romances que problematizam o processo de criação literária e de construção historiográfica, ao questionar o que há de verdadeiro no texto ficcional e de ficcional nos relatos históricos.

Na discussão que Linda Hutcheon faz sobre esse gênero, ela afirma que o romance irá questionar valores importantes do que chama de “humanismo liberal”, tais como: autonomia, transcendência, certeza, autoridade, unidade, totalização, sistema, universalização, centro, continuidade, teleologia, fechamento, hierarquia, homogeneidade, exclusividade, origem (Hutcheon, 1991, p. 84). Pelo jogo entre verdade e ficção, pela duplicação das instâncias narrativas/autorais e pela polifonia de vozes das personagens, nota-se que em O bruxo do Contestado há um processo no qual esse questionamento fica estabelecido.

A narrativa desse romance, por não ter como objeto principal a massa de acontecimentos do conflito bélico, ocorrido entre 1912 e 1916, e sim sua rememoração ao longo do tempo, revela uma estratégia de distanciamento e de deslocamento temporal que proporciona um diferimento na memória sobre o Contestado, libertando-a da clausura de algumas oposições como presente/passado ou lembrar/esquecer, tão caras ao estudo da história e da memória. Fica estabelecida, assim, uma disputa sobre territórios de memória que leva em conta a elaboração de representações, imagens e visões do passado da região do Contestado. No romance de Oliveira Neto, essa elaboração se dá por meio de uma rememoração cujo acervo de experiências não se deixa congelar como um retrato acabado e nem se confina em uma concepção linear e progressiva do tempo histórico.

Em seguida àquela “falsa” nota aos leitores, o romance se abre na forma de um diário (os manuscritos encontrados), com um cabeçalho: Hotel Levante, São Paulo, 20/01/1981. A narração de Tecla Jonhasky, a autora/narradora, se inicia de maneira dramática:

Os médicos me deram no máximo seis meses de vida. A doença, no meu caso, não tem cura. Morrerei, pois, com cinquenta e um anos. Meus pais também morreram relativamente jovens. Eu tinha que voltar e confiar esta história ao meu país. (Oliveira Neto, 1996, p. 13)

Ao se concentrar na memória que é recuperada pela narradora desses manuscritos, e por alguns personagens, vivendo em tempos diferentes da história do Brasil – mais precisamente no período da ditadura Vargas, por volta de 1942, e nos tempos da ditadura militar de 1964 –, o autor do romance promove uma continuidade na descontinuidade, permitindo, como diz Walter Benjamin, em suas Teses sobre o conceito de história, “fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo” (Benjamin, 2010, p. 223), já que regimes autoritários ameaçam a continuidade da memória, tanto nos que a produzem quanto nos que a recebem.

Ao jogar com discursos fronteiriços, como o são o discurso histórico e o literário, o romance O bruxo do Contestado mostra como ambos (e não apenas o literário) deixam-se impregnar pelo imaginário, e como o discurso histórico, principalmente quando pretende se apresentar como objetivo e puramente fatual, está a utilizar estratégias de ocultação do seu modo de fabricação e das motivações pulsionais que o engendraram.

Afinal, as fontes sobre as quais ambos se edificam são elas próprias o resultado de um jogo de poder, de ostentação/ocultação, que é preciso despedaçar. O conhecimento histórico é parcial e seletivo e deve ser alargado em direção às zonas que a história oficial se esforçou por apagar. A literatura, especialmente a de caráter metaficcional, pode colaborar nesse trabalho de alargamento ao fazer ficção sobre ficção e, assim, refletir sobre sua própria identidade narrativa e/ou linguística. Mais especificamente, a metaficção historiográfica é capaz de levar essa autorreflexão para a própria história, revelando que há uma linha tênue entre realidade e ficção e que tanto a narrativa histórica como a romanesca são construídas com base em estruturas de verossimilhança, sendo praticamente impossível saber, quando problematizadas, onde começa uma e termina outra.

No reino místico dos pinheirais

O reino místico dos pinheirais, do escritor e jornalista Wilson Gasino, publicado em 2011, insere-se na série dos romances históricos sobre o Contestado. Ao contrário dos anteriores, observa-se que neste livro o autor opera uma reatualização da memória do conflito na atualidade. Há no seu discurso um forte caráter revisionista e ressignificador de histórias, deixando ver claramente a necessidade em considerar as diferentes temporalidades da memória para que essas histórias possam ser atualizadas, de modo que as memórias sejam problematizadas. Logo no prólogo, o autor alerta para a relevância em se revisitar esse conflito, pois o “vácuo criado pelo silêncio de tanto tempo e as versões ‘oficialescas’ veiculadas no início deixaram um rastro de contradições e dúvidas” (Gasino, 2011, p. 10) que dificultam a tarefa daqueles que hoje desejam conhecer e recontar essa história. Segundo ele, ainda prevalece, mesmo na memória local, a versão contada pelos vencedores.

Assim, Gasino procura “dar voz e sentido histórico a diferentes personagens, em especial aos sertanejos, valorizando seu imaginário mítico religioso, ao invés de condená-los, como muitos outros intérpretes o fizeram”. Nota-se uma preocupação ativa do autor com relação à maneira como a história do Contestado foi contada, “criticando enfaticamente a história oficial que dá voz e razão aos vencedores” (Schneider, 2019, p. 229-230).

Como no romance de Fredericindo Marés de Souza, a narrativa se constrói ao redor de uma família sertaneja e sua trajetória através dos eventos dos conflitos que irão se desenvolver e culminarão na Guerra do Contestado. Francisca, uma mulher cabocla, dá à luz trigêmeos: Gabriel, Miguel e um terceiro filho, que morre no parto. Na trama, eles desempenharão um papel alegórico, cada um funcionando como metáfora das forças antagônicas de cujo embate resulta o conflito histórico do Contestado.

Após a família perder a propriedade, os irmãos tomam rumos distintos. Gabriel, que tinha um talento nato para lidar com a terra, uma afeição pela natureza e uma crença no monge, acaba indo morar nos redutos sertanejos. Miguel vai para Porto União da Vitória morar e trabalhar com o padrinho, o comerciante Paulo Ananias, onde logo se destaca como um jovem trabalhador e estudioso. Ali, acaba por ingressar no exército para lutar contra os sertanejos rebeldes. Dessa maneira, esses dois personagens, por meio das descrições e diálogos que permitem construí-los como dualidades arquetípicas, representam as diferentes versões, a místico-religiosa e a racionalista-positivista, que Gasino coloca em ação num palco em que os debates ideológicos e o conflito se dão, tendo em vista a luta pela terra e pelo poder.

Nesse embate entre a natureza e o progresso, a fé e a razão, fica evidente o projeto do autor de colocar em pauta, além de novos sentidos históricos, também a disputa pela memória. Se a memória está aberta à dialética do esquecer e do lembrar, sendo, portanto, móvel e dinâmica, Gasino, ao invés de fixar sentidos e limitar as representações históricas, busca problematizar os usos e manipulações da história oficial e evidenciar novas abordagens historiográficas a partir do uso de memórias coletivas ou individuais reveladas por meio das personagens do romance.

Nos diálogos entabulados entre os personagens, pode-se ver que postulados da ciência e do progresso são colocados em xeque, levando o leitor a desmistificar o discurso positivista que ao longo da história serviu ao mesmo tempo para encobrir o conflito, apagar identidades indesejadas, silenciar as vozes dissonantes e privilegiar a presença de um sujeito ideal para o Contestado: o imigrante branco. Gasino mostra os desmandos dos coronéis e a indiferença do Estado, que opta por assentar o colonizador branco, e coloca-se ao lado das minorias em sua resistência na luta reivindicatória por sua terra, sua identidade e sua memória.

Há no romance, por exemplo, uma forte preocupação em dar voz às personagens femininas, enfatizando seu protagonismo e conferindo-lhes uma relevância somente possível após as sucessivas ondas dos movimentos feministas e suas conquistas no campo teórico, propiciando a condição de elaboração crítica da memória que, nesse momento histórico, reveste-se de capacidade de ação ética e política, em uma clara relação com a temporalidade que lhe é inerente.

Acrescente-se a isso as conquistas mais recentes dos movimentos negros em busca de visibilidade para as suas pautas, já que, no romance de Gasino, algumas dessas personagens femininas são negras e construídas para além dos estereótipos reproduzidos ao longo do tempo, como dona Aspásia, mãe de Maria Clara, que é assim descrita: “Era uma baiana bonita, filha de escravos, que recebera uma educação de sinhazinha na casa grande da fazenda onde nascera. Tivera patrões esclarecidos quando criança e aproveitara cada oportunidade para aprender” (Gasino, 2011, p. 55). A consciência conquistada por meio dessa educação, ela a compartilha com a filha:

Tinha longas conversas com a mãe, que ouvia seus relatos e procurava dar uma explicação, interpretando os acontecimentos à luz da sua visão de mundo. Quando a filha contava alguma história em que os sertanejos haviam sofrido a injustição dos poderosos da região, dona Aspásia lembrava da trajetória dos negros, contando à filha como os escravos eram capturados como animais na África, trazidos em navios atulhados e insalubres, e depois eram maltratados e sofriam todo o tipo de abusos dos patrões. Contava também da sua cultura iorubá, da religião, da música, dos heróis, das fugas, dos quilombos e de Zumbi dos Palmares. (Gasino, 2011, p. 118-119)

O grande mérito do romance de Wilson Gasino é registrar novas sensibilidades e sociabilidades históricas para representar sujeitos antes marginalizados e estigmatizados pela história como indígenas, caboclos, negros, migrantes pobres. Desse modo, realiza um trabalho de desestabilização da memória construída pela história oficial e dos sujeitos que se afirmaram a partir dela. Em sentido oposto, promove visibilidade à luta de populações marginalizadas e dá sentido histórico à relação mística dos sertanejos com a natureza, sua luta pela terra e pelos direitos básicos da cidadania.

Considerações finais

As últimas décadas têm testemunhado a produção de diversas obras, sejam de cunho historiográfico ou literário, voltadas para a compreensão da Guerra do Contestado, bem como para o desdobramento de debates e reflexões sobre seus sentidos para a nossa história, memória e nacionalidade. Todavia, convém reconhecer que existe ainda um desconhecimento de amplos setores da população sobre esse período. Tal desconhecimento se dá em consequência da falta de políticas de memória mais efetivas no sentido de rememorar os aspectos violentos e contraditórios do passado, cujo resultado perverso é negar ao presente o acesso a um passado rico de resistência e luta de uma população heterogênea, mas prevalentemente cabocla, pelo direito à terra, ao trabalho e à sua cultura.

Aos que contribuíram para as experiências traumáticas da Guerra do Contestado, e eles ainda estão por aí, prevalece a vontade do esquecimento, as políticas de apagamento e a criação de outros mitos de origem para aquela região. Contudo, essas mesmas experiências, quando rememoradas, permanecem como feridas simbólicas abertas, a serem revisitadas. Esse é um trabalho que, ainda que por vezes doloroso, constitui a missão dos escritores e historiadores que, diante das milhares de mortes e do luto que nunca cessa, encontram na coragem daquela irmandade de homens e mulheres, e no seu sonho messiânico de uma sociedade justa, o motivo para revolver esse terreno de memória, em que cada descoberta confere à história e à memória o seu caráter de coisa inacabada.

Referências

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Recebido em 11/11/2022

Aprovado em 6/3/2023


Notas

1 Foi publicado postumamente, em 1978, mas é datado de vinte anos antes, portanto anterior a Casa verde (1963), de Noel Nascimento, e Geração do deserto (1964), de Guido Wilmar Sassi.



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