Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 2, maio/ago. 2023

Marc Ferrez: a fotografia como experiência | Documento

Vontade de guardar e intenção autobiográfica

Uma análise dos cadernos de anotações de Marc Ferrez

Will to keep and autobiographical intention: an analysis of Marc Ferrez's logs / Voluntad de guardar e intención autobiográfica: un análisis de los cuadernos de registros de Marc Ferrez

Mariana Muaze

Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora associada do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Brasil. Bolsista de produtividade CNPq e Cientista do Nosso Estado Faperj.

mamuaze@gmail.com

Resumo

O artigo remonta aos cadernos de anotações de Marc Ferrez, produzidos nas primeiras décadas do século XX, analisando-os como uma escrita autobiográfica e um esforço de construção de memória. Os cadernos evidenciam um empenho de inventariar a própria obra, registrar os conhecimentos tecnológicos e científicos que marcaram a fotografia no limiar da prática fotográfica moderna e produzir uma “escrita de si” que valorizasse o autor como artista, fotógrafo, homem moderno e exímio conhecedor dos processos e tecnologias da imagem fotográfica.

Palavras-chave: coleção, memória, autobiografia, escrita de si, documentos pessoais, Marc Ferrez.

Abstract

The article traces Marc Ferrez’s logs, produced in the first decades of the twentieth century, analyzing them as an autobiographical writing and an effort to build memory. The notebooks show a determination to inventory his own work, to register the technological and scientific knowledge that influenced photography at the threshold of modern photographic practice and to produce a “self-writing” that valued the author as an artist, photographer, a modern man and expert in processes and technologies of the photographic image.

Keywords: collection, memory, autobiography, self-writing, personal documents, Marc Ferrez.

Resumen

El artículo traza los cuadernos de registros de Marc Ferrez, producidos en las primeras décadas del siglo XX, analizándolos como una escritura autobiográfica y un esfuerzo de construcción de la memoria. Los cuadernos muestran un arrojo por inventariar su propio trabajo, por registrar los conocimientos tecnológicos y científicos que influyeron la fotografía en el umbral de la práctica fotográfica moderna y por producir una “auto escritura” que valoraba al autor como artista, fotógrafo, un hombre moderno y experto en procesos y tecnologías de la imagen fotográfica.

Palabras clave: colección, memoria, autobiografía, auto escritura, documentos personales, Marc Ferrez.

Não arquivamos nossas vidas, não pomos nossas vidas em conserva de qualquer maneira; não guardamos todas as maçãs da nossa cesta pessoal; fazemos um acordo com a realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos, riscamos, sublinhamos, damos destaque a certas passagens. Philipe Artières (1998, p. 11)

Os arquivos, de origem pública ou privada, constituem “lugares de memória”, por excelência. São, assim, impulsionados pela “vontade de guardar”, fruto da sensação de aceleração do tempo histórico, da percepção dos eventos da “modernidade” como efêmeros e passíveis de esquecimento, bem como do sentimento de que não há memória espontânea, sendo urgente a salvaguarda dos objetos e documentos (escritos, visuais), por meio da criação de arquivos e museus, para tornar possível a reconstrução do passado através da operação intelectual da história (Nora, 1993). Ao longo do oitocentos, há um claro movimento das chamadas nações modernas ocidentais de construir um estoque material, além de bens simbólicos, daquilo que faz lembrar, almejando a construção de uma memória comum entre seus concidadãos (Nora, 1993; Furet, 1986; Meneses, 1994; Le Goff, 2003).

Contudo, a “vontade de guardar” artefatos e registros que carregam as marcas do tempo, da memória e da história não se limitou aos estados nacionais. Ela tocou uma dimensão individual, dos sujeitos históricos que passaram a valorizar a autorrepresentação, a singularidade, a experiência biográfica e o ato de arquivar a própria vida (Artières, 1998). Durante o processo de emergência do indivíduo moderno, surgiram duas novas práticas sociais que interessam diretamente à discussão sobre documentos e arquivos pessoais. A primeira: a produção cotidiana de uma literatura íntima e autorreferencial, a qual se convencionou chamar de “escrita de si”, a exemplo dos diários, cartas, relatos de viagem, cadernos de anotações, livros de assento e autobiografias. Tal escrita reforçava a singularidade do indivíduo, configurava sua importância no todo social e colocava a subjetividade do autor como elemento central da narrativa.1 A segunda: a ação consciente de juntar, selecionar, preservar e organizar uma série de elementos da cultura material ‒ a exemplo de fotografias, bilhetes, cartões-postais e outros objetos e escritos de cunho pessoal ‒ relativos à sua história. Assim, o ato de “arquivar a própria vida” (Artières, 1998) deriva do intuito de construir uma dada memória individual e coletiva a ser perpetuada no tempo, envolvendo, portanto, um processo de negociação entre o individual e o social, no qual tais identidades são constantemente construídas e reconstruídas (Gomes, 1996, p. 6). A ação cotidiana de colecionar registros e formar arquivos que imprimam uma marca pessoal se tornou bastante frequente no oitocentos. Todavia, essa foi uma prática social que não se reduziu ao universo privado e íntimo, sendo o escritor francês Victor Hugo um dos primeiros homens de notoriedade a doar seus manuscritos para uma instituição de guarda, a Biblioteca Nacional da França, ainda em 1880 (Artières, 1998, p. 12), transformando um arquivo privado em bem público.

Como se vê, os arquivos não são repositórios passivos, sem historicidade ou identidade própria, mas espaços de intensa subjetividade, criatividade e engenhosidade de seu(s) agente(s) formador(es). Trata-se de uma coleção de objetos que conforma um espaço afetivo de preservação no qual o historiador transita, mas não de forma incólume, pois é afetado pelas escolhas que mediaram sua organização, por seus artefatos, bem como por suas práticas sociais e materiais de constituição. Assim, pensar a força histórica dos arquivos e de seus objetos é uma parte importante da investigação histórica (Edwards, 2011).

Na esteira da história social, da renovação da história política e da micro-história, a pesquisa com arquivos pessoais tem sido bastante valorizada. No que compete às instituições de guarda, é cada vez mais comum a recepção de coleções particulares e familiares, nas quais documentos de caráter autorreferencial e biográfico são frequentes. Nesses casos, é essencial pensar as formas materiais e sociais que estruturam o arquivo, mas também reconhecer as especificidades das diversas “escrita de si”. O estilo fomenta uma narrativa contínua e coerente do sujeito-autor, escamoteando a fragmentação e a incoerência do sujeito moderno, provocando o que Bourdieu chamou de “ilusão biográfica” (2006, p. 183). Portanto, trabalhar com a “escrita de si” inclui pensar como o indivíduo-autor constrói e reinventa sua subjetividade durante o próprio processo de elaboração do texto. Mas, ao mesmo tempo, como ele precisa obedecer ao sistema de regras e rituais sociais, nada ingênuos, que circunscrevem a escrita autobiográfica no tempo e no espaço. No caso dos arquivos pessoais, é mister buscar as lógicas do guardar, os impulsos de seleção (o que deve ser lembrado) e descarte (o que pode ou deve ser esquecido) daquele que assume o papel de “guardião da memória” (Gomes, 1996), ressaltando que, apesar da sua vigilância constante, sempre há momentos de indisciplina, a exemplo de uma carta de amor comprometedora mantida no arquivo a despeito dos pedidos para que fosse queimada (Artières, 1998; Gomes, 1996). Tais atitudes também revelam as relações entre as pessoas e as coisas, apontando para a necessidade de pensarmos a materialidade dos objetos arquivados (Edwards, 2011).

Os itinerários da coleção Marc Ferrez


Figura 1 – Cadernos de Marc Ferrez pertencentes ao Fundo Família Ferrez, Arquivo Nacional. Foto da autora


Este artigo analisa os nove cadernos de anotações deixados pelo fotógrafo franco-brasileiro Marc Ferrez, produzidos entre as primeiras décadas do novecentos, no Brasil e na Europa, entendendo as práticas sociais de “escrita de si” e de “arquivamento do eu” como ações entrelaçadas e derivadas do esforço autobiográfico de inscrever uma dada memória, individual e coletiva, no tempo. Como pretendemos demonstrar, nos últimos anos de sua vida, ao preencher seus cadernos com os mais variados tipos de anotações pessoais, Ferrez buscou destacar a principal “arte de fazer”2 que marcou sua longa vida: a fotografia. O personagem construído e evidenciado por ele, tanto nos cadernos analisados quanto nos documentos que compõem seu arquivo pessoal, priorizou sua identidade como profissional da fotografia. No entanto, não era qualquer profissional. A persona inscrita por Ferrez através de suas ações autobiográficas (de escrita e arquivo) é, sobretudo, o fotógrafo profissional, exímio conhecedor das técnicas fotográficas e estudioso dos químicos, materiais especializados e aparelhos destinados à produção de imagens tecnicamente perfeitas. Marc Ferrez se apresenta como um homem moderno, antenado com as invenções de sua área de expertise, um profissional zeloso com a preservação de sua imensa obra e preocupado com o registro dos conhecimentos técnicos que marcaram a fotografia do seu tempo.

Ao longo de sua vida, Marc Ferrez guardou uma série de artefatos como parte de sua coleção pessoal, entre eles os nove cadernos com anotações variadas aqui analisados. Em 2007, cadernos foram doados ao Arquivo Nacional, integrando o fundo Família Ferrez,3 que conserva cerca de quarenta mil itens, acumulados, selecionados, pensados e organizados ao longo de três gerações da família. Nesse fundo estão presentes os registros pertencentes aos arquivos pessoais de Marc Ferrez, dos filhos Júlio e Luciano, da firma Marc Ferrez & Filhos, do neto Gilberto Ferrez, além de Mary Dodd Ferrez e Claire Louise Poncy Ferrez, respectivamente esposa e nora de Marc Ferrez.4 A longevidade da documentação que compõe o fundo familiar em questão denuncia a “ânsia de guardar” e a “vontade autobiográfica” daqueles que assumiram o papel de “guardiões da memória” ao longo dos mais de 160 anos que compõem o arco temporal do material acumulado.5 O registro mais antigo data de 18 de setembro de 1839 e se trata de um ofício enviado pelo pai de Marc Ferrez, Zeferino Ferrez, medalhista, escultor e gravador, para o diretor da Casa da Moeda. Encerra o fundo uma série de pranchas que reproduzem pinturas a óleo de Wim L. van Dijk, que entraram na coleção Gilberto Ferrez em 31 de dezembro de 2000.

No que se refere à coleção particular de Marc Ferrez, existem 155 documentos, entre cartões-postais, placas de metal, cartes-de-visite com e sem envelopes, fotos estereoscópicas avulsas ou em álbuns, folhetos, cartas, recortes de jornal, passaportes, selos, álbuns de cartes cabinet, desenhos de crayon, inventários, atestados médicos, talões de cheque, cardápio de festa de bodas, santinhos, diploma de irmão do Santíssimo Sacramento da Freguesia de Nossa Senhora da Candelária, crucifixo e até uma mecha de cabelo. O conjunto de documentos evidencia suas redes familiar e de sociabilidade, bem como protagoniza sua atividade como fotógrafo profissional, através de várias correspondências com encomendas e agradecimentos pelo envio de fotos, a exemplo do bilhete da princesa Isabel, condessa d’Eu, escrito em 31 de dezembro de 1888, que solicitava mais duas reproduções das fotografias da missa campal pela abolição da escravatura.

Entretanto, a existência de imagens fotográficas em arquivos pessoais não foi privilégio daqueles que se dedicaram ao ofício, pois o artefato foi uma mercadoria essencial para a cultura e a vida familiar burguesa (Mauad, 1990; Sontag, 2004). São fartas as coleções familiares com imagens de filhos, esposas, parentes e amigos, demarcando cuidadosamente os papéis familiares e as redes de sociabilidade segundo um habitus social dito civilizado (Muaze, 2008). Com a família Ferrez não foi diferente. Estão presentes em sua coleção registros relativos à saúde, à herança e à religião, bem como os santinhos que o filho Júlio e sua esposa Claire mandaram confeccionar para a primeira comunhão de Gilberto Ferrez, em 1908, e que o avô guardou; ou uma mecha de cabelo de sua irmã Augustine Emile Catinot, preservada como lembrança.

A construção do papel social de Marc Ferrez como fotógrafo profissional em seu arquivo pessoal ganha mais protagonismo quando refazemos os percursos de sua coleção. Após a morte de Marc Ferrez em 1923, seu acervo pessoal permaneceu em posse da família. O papel de “guardião da memória” ultrapassou mais duas gerações, pois seus filhos Júlio e Luciano, ambos fotógrafos e continuadores das atividades da firma Marc Ferrez & Filhos, mantiveram os guardados do pai e da empresa, além de constituírem seus próprios arquivos. O mesmo ocorreu com o neto Gilberto Ferrez, que se tornou um importante fotógrafo, historiador da iconografia no Brasil, divulgador e colecionador da obra de Marc Ferrez.6

Em 1998, as fotografias ampliadas, os negativos de vidro e flexíveis, as imagens estereoscópicas, os suportes positivos para lanterna mágica e os álbuns fotográficos de Marc Ferrez que sobreviveram ao tempo passaram ao Instituto Moreira Salles (IMS), sob o título de coleção Gilberto Ferrez, junto com os pertences do neto. Além de sua obra comercial, foi somada uma série dos registros do cotidiano familiar de Ferrez, onde ele próprio era o fotógrafo. Em seguida, o IMS adquiriu os equipamentos do artista que haviam ficado com outro ramo da família.7 Essas imagens e esses objetos foram acumulados por Marc Ferrez desde 1873, pois houve um grave incêndio em seu ateliê localizado na rua São José, 96, centro do Rio de Janeiro, e sua produção anterior foi perdida no fogo.

Dessa forma, para entendermos a coleção Marc Ferrez contida no fundo Família Ferrez do Arquivo Nacional como um todo dotado de sentido, é preciso analisá-la de forma integrada aos objetos existentes na coleção Gilberto Ferrez do Instituto Moreira Salles, pois, originalmente, tratava-se do mesmo arquivo pessoal.8 Ao percorrer os itinerários da documentação e correlacioná-los com informações biográficas do autor, o arquivo pessoal e os objetos que o compõem ganham historicidade. A coleção de Marc Ferrez não se resume aos 155 documentos (visuais e escritos) salvaguardados no acervo do Arquivo Nacional, já citados neste artigo. Entre seus pertences também estavam equipamentos, documentos, fotografias impressas em vários tamanhos, negativos de vidro e flexíveis, suportes positivos para lanterna mágica e álbuns fotográficos, muitos dos quais são arrolados em seus cadernos. Seguindo os rastros desses artefatos e pensando seus itinerários no tempo, torna-se possível recriar a coleção Marc Ferrez. E, a partir da lógica de guardar do indivíduo-autor, entender como construiu uma imagem individual e social através dos objetos escolhidos para serem preservados. O conjunto de seus guardados, assim como os nove cadernos de anotações, evidencia a imagem do fotógrafo profissional, artista com grande rigor técnico e profundo conhecedor da prática fotográfica, com seus equipamentos, emulsões e fórmulas químicas especializadas.9

Através dos cadernos de Marc Ferrez

Na coleção Marc Ferrez foram preservados nove cadernos com conteúdos diferentes. Dois deles ‒ “Máquinas e acessórios para a fotografia” (77 páginas) e “Catálogo das vistas, estrada de ferro e Marinha” (190 páginas) ‒ pertencem ao IMS e outros sete foram doados ao Arquivo Nacional: “Contabilidade, vistas e coleções” (155 páginas), “Processos e materiais” (250 páginas), “Agenda Pathé Frères” (122 páginas), “Anotações Brasil-Europa” (159 páginas), “Procedimentos e fórmulas” (82 páginas), “Anotações França” (72 páginas), “Inventário manuscrito de negativos” (100 páginas). A separação dos cadernos, consoante as instituições, seguiu os itinerários da coleção já explicitados neste artigo.10

Não é possível saber se as brochuras foram objetos escolhidos ou presentes recebidos, contudo, a preferência pelas capas de cor preta, tonalidade que representava distinção e sobriedade para roupas e objetos na moda burguesa do período, demonstra como o artista compartilhava o habitus social das classes abastadas. A materialidade dos cadernos possui grande diversidade, havendo, ainda, dois vermelhos de capa dura e um pardo. No que compete aos tamanhos, Ferrez escreveu em cadernetas, com dimensões que variam entre 17x11 cm, 16,5x7 cm, ou 17x17 cm, e papéis quadriculados, lisos ou pautados, bem como em cadernos maiores, de 24x16,5 cm ou 21x16,5 cm, alternando entre pautados ou aqueles para contabilidade, com colunas verticais para listar preços. Duas brochuras impressionam pelo tamanho pequeno. Elas são agendas de 12x14 cm, com capas de courino e inscrições em dourado referentes aos anos de 1918, 1919 e à empresa Pathé Frères, da qual Ferrez foi representante no Brasil. As agendas trazem, nas folhas de abertura, propagandas da Pathé, calendário anual, local para telefones e endereços importantes, seguidas de inscrições na lateral dispostas por semana (de sexta a quinta-feira) para todo o ano. A agenda 1919 não foi usada e, por isso, foi contabilizada pelo Arquivo Nacional como um único item, juntamente com a agenda 1918, onde o artista anotou palavras soltas ou frases curtas, que mais parecem funcionar como gatilhos de memória para atividades planejadas e/ou realizadas enquanto esteve morando na França. As camadas temporais de passado, presente e futuro são múltiplas e se misturam nos escritos. Há endereços do oculista Falliet, de lojas de equipamentos, do consulado inglês, bem como de cinemas e cafés em Paris. Há também anotações com nomes de filmes, lembrança de um convite recebido para 6 de maio ou, simplesmente, o comando imperativo: “tomar aspirina”.

Du Vendredi 25 au Jeudi 31 de Janvier

Chez Gaumont

Demander les proscrits de prix

34 Rue des Mathurins

J. Parker Read - Apollo

Trading Corporation

5h. Rua Pierre Charron

pour valider les passaportes11

Para todos os cadernos, o idioma escolhido para se expressar cotidianamente foi o francês, língua materna de seus pais e familiares, na qual Ferrez recebeu sua educação formal depois que, aos 7 anos de idade, ficou órfão e foi morar em Paris aos cuidados do amigo da família, Alphée Dubois, retornando ao Brasil em 1861, com 17 anos.12 Portanto, sua intimidade com o francês era grande, mesmo assim o português aparece frequentemente ao denominar lugares, eventos e pessoas que o remetiam ao Brasil:

Vues expedicies à M. Louis Mounier en noir

M Praia d’Icarahy

Vue de Botafogo pris des pain de sucre

Copacabana

Avenue pris de S. Antonio

Palais S. Cristovão

Praia Flamengo

Canal du Mangue

Itapuca

Vue pris du pain de sucre

Les quais de la Dossasse [cais do Sasse, atual Gamboa]

Praia de Botafogo du Morro das Viúvas [...]13

Dentre os nove cadernos de Ferrez, há um que se diferencia de todos os outros: o “Máquinas e acessórios”, um catálogo ilustrado, editado pela Casa Marc Ferrez em 1905, mesmo ano em que a firma passou a vender artigos para cinema em sua loja. O livro possuía anúncios de equipamentos e materiais para fotografias, postais, estereoscopias, lanternas mágicas e cinematógrafos, além de informações escritas e ilustradas sobre produtos químicos, retocadores, pigmentadores, lâmpadas de magnésio, fórmulas de revelação, ampliação, banhos de viragem e muitas outras especificidades do ofício de fotografar. A escolha metodológica de considerar o impresso como um dos cadernos de Ferrez se explica porque ele foi preenchido ‒ nas margens e laterais ‒ com comentários pessoais, como se um caderno fosse. Assim, as anotações dão novos usos e funções ao manual de fotografia, que adquire valor de registro autoral com as opiniões e lembranças de Ferrez sobre os processos fotográficos ou os equipamentos ali contidos. O artefato acabou por se configurar, sobretudo, como um manuscrito de estudo e consulta. Por outro lado, numa época em que o mundo e as tecnologias mudavam tão rapidamente, o registro de processos fotográficos do oitocentos apontava a urgência de preservar conhecimentos que tendiam a desaparecer.14 Essa sensação de fugacidade e aceleração do tempo, típica do indivíduo moderno, permeia, de diferentes maneiras, todos os cadernos analisados, principalmente quando Marc Ferrez se dedica a inventariar sua obra ou a elencar diferentes equipamentos, químicos e processos fotográficos. Como indivíduo-autor, sentia a necessidade de registrar uma época da história e da prática fotográfica, na qual se destacou profissionalmente, mas que tendia a desaparecer com o progresso, os novos inventos e o mundo que emergiria após as turbulências da Primeira Guerra Mundial.

Das nove brochuras aqui tratadas, apenas duas são datadas: o catálogo “Máquinas e acessórios para a fotografia” (1905) e as agendas Pathé Frères (1918 e 1919), já citadas. Todavia, através dos conteúdos relatados, dos carimbos das papelarias onde foram adquiridas e da biografia de Ferrez, foi possível saber que foram elaboradas nas duas primeiras décadas do século XX.15 À época, Ferrez já era um artista reconhecido nacional e internacionalmente, com ampla rede de sociabilidade e negócios, inclusive a exclusividade da representação das empresas Pathé e Gaumont no Brasil.16 Ao que tudo indica, a maioria dos cadernos foi produzida depois da morte da esposa Marie Ferrez,17 em 1914, quando, aos 72 anos, o artista se mudou para Paris, já com a Grande Guerra em curso, para salvar o contrato de exclusividade que a Marc Ferrez & Filhos possuía com as empresas Pathé e Gaumont no Brasil, tendo sido bem sucedido somente no primeiro caso. Desde então, já septuagenário, permaneceu morando em Paris, no Grand Hôtel Brebant.18

A análise serial dos documentos tratados demonstrou que a “escrita de si” empreendida por Ferrez não foi a do relato íntimo ou do diário. Não há passagens com desabafos, impressões pessoais ou confissões íntimas, que devessem permanecer longe dos olhos de terceiros. Pelo contrário, suas anotações são objetivas e utilitárias, apresentando uma racionalidade que organizava as tarefas do cotidiano e abarcava quatro temas principais, distribuídos com maior ou menor intensidade nos diferentes cadernos, a saber: equipamentos e químicos, finanças, assuntos pessoais e família, e inventário da obra.

Para o tema equipamentos e químicos, foram considerados tanto os escritos de Ferrez com as diversas receitas de revelação, viragem, fixação, secagem, clareamento, impressão de fotografias em preto e branco ou coloridas, “estudos de expressão e estilo”,19 fórmulas personalizadas (“revelador Ferrez ‒ fórmula”),20 novas (“revelador Ballagny ‒ novo”)21 e de sua preferência (“processo Michaud”, “fotocromia pelo conde E. Ogonowsky”, “receita papel heliográfico dr. Antunes”),22 quanto recortes de jornal com comentários pessoais sobre equipamentos, tipos de papel, receitas, processos fotográficos (estereoscopia, fototipia, calotipia, autocromos), “reprodução de desenhos pela luz”,23 e imagens em movimento como a lanterna mágica e o cinematógrafo. Entre os recortes de impressos, há trechos do Bulletin Belge [de Photographie], Paris Photographe, Bulettin de la Société Française de Photographie,24 Union Photographique Industrielle (UPI),25 demonstrando que Ferrez comprava os periódicos, recortava aquilo que lhe interessava como forma de manter o seu próprio material de estudo e deixava a fonte anotada como aval de cientificidade. Seus cadernos remetem a múltiplas temporalidades. O passado é pontuado pelo dever de memória, a intenção de registrar o conhecimento pregresso do artista que, com as novas invenções tecnológicas, poderia se perder no tempo. O presente se apresenta no entusiasmo com as novidades da contemporaneidade no que compete às imagens fixas e às imagens em movimento, mas também é recheado pela certeza do efêmero, do transitório. A guerra, elemento fulcral do presente e nunca antes vivido pelos indivíduos modernos em proporções tão avassaladoras foi fotografada, mas não comentada em seus cadernos e raramente nas cartas. O futuro aparece como incerto, mas positivo, e requer investimento do artista para acompanhar os desafios das transformações técnicas, da prática fotográfica e do mercado. Essa sensação de furtividade e provisoriedade, própria do indivíduo moderno, talvez explique não só as incansáveis anotações de Ferrez sobre equipamentos e químicos, mas também a expansão de seus negócios, que passaram a envolver as lanternas mágicas, já na década de 1870, e depois o cinema, de forma pioneira no Brasil, nos primeiros anos do século XX.

O afã do registro também estava presente no que competia às finanças e aos negócios da firma Marc Ferrez & Filhos. Desde 1907, já possuindo a exclusividade da venda de cinematógrafos e a representação dos filmes da Pathé no Brasil, a família investiu na criação do Cinema Pathé, no centro do Rio de Janeiro. Apesar dos filhos Júlio e Luciano estarem à frente da empresa desde que o pai foi morar em Paris em 1915, há passagens nos cadernos com encomendas de clientes (remetidas e a fazer), artigos consignados para fotografia e cinema, além de listas de filmes da Pathé e discos que seriam exibidos no Brasil. Ter Marc Ferrez morando na Cidade Luz, um dos principais centros do capitalismo mundial, mantinha as mercadorias e os serviços disponibilizados pela empresa Marc Ferrez & Filhos sempre atualizados com os lançamentos mais modernos e com rapidez na entrega.26

sr. Louis Mounier, enviados em janeiro ao sr. Megle

Encomenda para Humberto Antunes

Para comprar: 2 lustres, discos Pathé, recompor a mola do aparelho estereoscópico27

Artigos diversos em consignação; sr. Falcon28

O assunto finanças também aparece relacionado aos registros de gastos com hotéis e viagens, além de anotações sobre saldo bancário. Buscando uma relação com o tema equipamentos e químicos, abordado anteriormente, é possível que muitos dos materiais ressaltados pelo artista em seus cadernos funcionassem também como uma espécie de aval técnico do que seria oferecido pela Marc Ferrez & Filhos. Diante das múltiplas possibilidades, aferia-se a qualidade e a necessidade de adaptação no mercado brasileiro. Tal aspecto fica mais evidente nos panfletos e nas propagandas avulsas que complementam alguns dos cadernos.


Figura 2 – Contracapa do caderno “Processos e materiais”. Fonte: Arquivo Nacional, fundo Família Ferrez


Os assuntos familiares ou pessoais não são protagonizados nos relatos. Encontramos raras passagens relativas a gostos particulares. Todavia, há receitas culinárias apreciadas, a exemplo dos “ovos moles sobre canapé”, “brioche de batata doce”,29 “compota de melão” e “geleia de laranja”,30 ou mesmo remédios caseiros para a moléstia do fígado, que tanto atormentou Ferrez.31 Os filhos, noras e netos aparecem pontualmente em todos os cadernos, sendo referidos, essencialmente, através das datas de aniversário e listas de encomendas. Para a família de Luciano foram solicitados: seis camisas, três anáguas, dois espartilhos de modelo pequeno, dois tapetes, produtos para arboricultura e floricultura. Para o núcleo de Júlio, dois robes de lã de cor neutra e duas calças de lã, com tamanho de boneca. Para o neto Gilberto, “a última publicação de selos postais”.32 Como se vê, o trânsito de mercadorias era intenso e valorizava os artefatos prestigiados pela moda e o habitus burguês.33 Da França para o Brasil, Ferrez listou para levar: máquina de escrever, sabão Saint Bloom, camisas coloridas, 2 ternos completos, 1 fonógrafo com discos, 1 álbum para Júlio, lanterna para autocromos, cuecas, lâmpada de ½ watt, dentre outros itens.34 Em relação ao que seria transportado para si, Ferrez misturava roupas, presentes para terceiros e equipamentos relacionados a sua profissão. Já as encomendas da nora Claire [Clairette], documentadas tanto num papel avulso apensado quanto no caderno “Anotações França”, com pouquíssimas modificações, agregava roupas e objetos de casa:

12 pratos de sobremesa, 18 sopa, 1 saladeira, ½ dúzia de pratos redondos pequenos, 1 molheira, 3 tulipas lírio do hall, 3 tulipas lírio para sala de comer, 1 roupa de marinheiro de lã para Jean 8 anos, 1 pijama para criança 13 anos, 1 dúzia de meias para criança que calça 27, 1 pequeno casaco azul para criança 8 anos, 1 vestido pequeno para menina de 2 anos e ½, 1 vestido longo para recém-nascido, ½ dúzia de aventais macios para a camareira e babados, meias femininas conforme medida, 1 camisa 1m de colarinho, Jean tem 1,16m de altura.35

Não obstante, o trânsito de mercadorias também ocorria no sentido contrário, conforme o desejo do fotógrafo: “para levar [do Brasil] para a Europa: planos diversos, 4 placas de metal destinadas à impressão tipográfica de fotos e textos [clichês], 4 quadros de suporte para conserto [chossis pour faire raccomoder]”.36 Tão comum quanto a circulação de produtos era a circulação de pessoas através do turismo, que ganhou força como elemento de distinção no habitus burguês. Assim, enquanto morou na Europa, Ferrez teve a oportunidade de viajar sozinho e em família.37 Nesses momentos, o artista produziu diversas “vues en couleur” e brincou com os pigmentos, experiências que compartilhou com os filhos Luciano e Júlio tendo registrado a produção de ambos em seus cadernos “Contabilidade, vistas e coleções” e “Anotações Brasil-Europa”.

As placas de autocromos Lumière haviam sido lançadas no Brasil em 1907, mas foi durante a temporada no Velho Mundo que Ferrez passou a dedicar-se ao experimento com mais afinco.38 Como resultado, há um grande conjunto de imagens coloridas tiradas em Paris,39 em outras cidades francesas (Boulogne-sur-Mer, Vincennes, Pau, Lourdes, Vichy, Fontainebleau, Chalon-sur-Saône, Hyères) e em países europeus (Itália, Suíça).40 Em sua cidade natal, Rio de Janeiro, Ferrez refez em cor algumas de suas vistas mais famosas (Pão de Açúcar, Jardim Botânico, praia de Copacabana), além de registrar outras paisagens e seu ambiente doméstico, com familiares e a casa onde morava em Botafogo.


Figura 3 – Autocromo, Marc Ferrez, 1912. Marc e Claire Ferrez acompanhados do filho Júlio, da nora Claire e dos netos Gilberto e Eduardo. Fonte: Instituto Moreira Salles (IMS)


Os autocromos europeus gozavam de uma maior liberdade, despretensão, não buscavam o enquadramento perfeito das fotos souvenires, vistas ou paisagens, que trouxeram fama e prêmios nacionais e internacionais para Ferrez (Lissovsky, 2020). Esse estado de liberdade permitiu ao artista se divertir com as colorações, incitar o movimento e construir verdadeiras cenas. Como analisou Maurício Lissovsky (2020), as “vues en coleur”, como eram intimamente chamados os autocromos nos cadernos, suscitavam o espetáculo, pois eram visualizadas por meio do dispositivo estereoscópico ou da projeção em ambientes escuros, proporcionando uma experiência imersiva do sujeito na fotografia, que mudava sua relação com a imagem. Àquela altura, o cinema já havia se infiltrado no olhar de Ferrez, fazendo com que, a partir de 1912, suas estereografias já aspirassem ao fotograma.41

Já septuagenário, viúvo e vivenciando uma série de rápidas transformações na prática fotográfica e de exposição das imagens, bem como nas suas tecnologias, o artista se preocupou em produzir um minucioso inventário das diversas fotografias tiradas ao longo de sua vida profissional. Contudo, esse ato de inventariar a própria obra se coadunava com a sua organização em caixas numeradas e catálogos de negativos, para o arquivamento dos materiais. Desse modo, seus escritos em alguns cadernos também funcionam como verdadeiros códices, que informavam onde as imagens podiam ser encontradas e a que conjuntos pertenciam. Tal esforço era tanto uma escrita autobiográfica através das imagens que compõem sua obra artística, projetando a memória de sua atividade profissional para as gerações futuras, quanto uma listagem de bens, uma herança material a ser deixada para os filhos, porque Ferrez tinha plena consciência do valor artístico e comercial de sua extensa coleção. E ninguém melhor do que o próprio autor para elaborá-la.

O descritor principal, aquilo que organiza o inventário e o próprio pensamento de Ferrez ao catalogar sua obra, é o dispositivo fotográfico. São as “vistas para estereoscopias”, “vistas estereoscópicas sobre vidro”, “vistas em cor”, “vistas para lanterna”, “vistas do Rio 18 x 24” e os “clichês em película convertidos em vidro fino”, “negativos estereoscópicos invertidos para imprimir sobre vidro” ou “negativos estereoscópicos invertidos para imprimir sobre papel” que figuram de forma privilegiada nas páginas, constando logo abaixo títulos de conjuntos fotográficos, geralmente remetendo a lugares (“Av. Central”, “estradas de ferro”, “navios a vapor da Marinha de guerra”, “canalização das águas”, “comissão do planalto”, “vistas de minas de ouro e ferro na província de Minas Gerais” etc.) ou títulos das imagens (“E.F. Central do Brasil”, “Pão de Açúcar”, “Paquetá”, “negra com criança” etc.). A datação das imagens não foi uma preocupação para Ferrez, aparecendo muito raramente. Porém, a partir dos conjuntos instituídos, fixava o contexto de produção das imagens, o que não deixava de ser uma forma de situá-las no tempo. Algumas caixas foram, ainda, arranjadas atentando-se para os diversos tamanhos e formatos das reproduções: “Petrópolis clichês 18 x 24”, “panoramas 24 x 40”, “vistas 30 x 40”, “chapas 24 x 30”, “vistas 50 x 60”, “grandes panoramas 50 x 25”.42


Figura 4 – Página interna do “catálogo das vistas, estrada de ferro e Marinha”, com vistas panorâmicas com títulos existentes, demonstrando a organização das imagens realizada por Ferrez. Fonte: Instituto Moreira Salles, coleção Gilberto Ferrez


No processo de inventariar a própria obra e, por que não dizer, a vida como artista, profissional e estudioso da fotografia, há imagens que são colocadas sempre juntas, formando conjunto temáticos que configuram trabalhos comissionados, ou imagens sem encomenda prévia. Seja como for, elas se repetem sem grande variação, não importando o dispositivo em que foram reproduzidas. No entanto, há algumas alternâncias interessantes a serem analisadas. Para o conjunto de imagens de fazendas de café e seus trabalhadores escravizados, produzidas entre 1883 e 1885 (Muaze, 2014; 2017), por exemplo, aparecem disposições variadas:

vistas para estereoscópicas: 6 vistas do Parahyba, fazenda de café-população, fazenda de café, 3 vistas de terreiro, 2 carros de boi, estação de Paty com bois e igreja anglicana protestante.

clichês para lanternas sobre vidro: fazenda de café, terreiros, grupo de apanhadores, cafeeiro, colheita de café [último item riscado pelo autor].

clichês diversos 24 x 30: fazenda de Paty café, interior, terreiros, colheita de café, lavagem de café, grupo de apanhadores, café, terreiro de café.

vistas de lanternas: fazendas, colheita de café, grupo de apanhadores, carro de boi, pé de café, embarque de café.

vistas do Rio 24 x 30, álbum: cafeeiro em flor, fazenda de café, secagem do café no terreiro, fazenda [Belle Joana], secagem do café, despacho da colheita do café, despacho na roça.

vistas do Rio 18 x 24: fazenda de café, colheita de café, pé de café, terreiro de café, colheita de cana de açúcar, carro de boi.

chapas 24 x 30: pé de café, colheita de café, fazenda de café, apanhadores, carro de boi, rapaz com cesta de café. 43

catálogo de vistas 18 x 24: café em flor, colheita de café, partida para a roça, as peneiras, Santos embarque de café [último item escrito em vermelho].

vistas 8 1/2 de positivos para lanterna: café em flor, terreiros de café, colheita de café, apanhadores de café, lavagem de café, carros de boi, marcação do café, carroças de café, armazém de café, diversas fazendas de café.

catálogo de vistas 18 x 24: fazenda de café, Paty, carro de boi, corte de canaviais, lavagem de ouro, Ouro Preto, rancho e tropas de burros.44

A temática das fazendas de café foi inventariada e arquivada a partir de um núcleo duro (constante) e itens flutuantes que, dependendo das imagens adicionadas, vão comunicar de forma diferente. As fotos de cafeeiros, terreiros, carros de boi e fazendas de café, quando seguidas das imagens da estação de trem de Paty do Alferes e da igreja anglicana protestante, diluem o foco principal da produção de café e ampliam a narrativa visual para a vida no interior da província. Mas, ao serem compostas com três imagens do porto de Santos, pontuam o café como produto de exportação moderno; podendo, ainda, ressaltar a diversidade da economia do Centro-Sul (produção de café, cana e extrativismo do ouro), conforme aparece no último conjunto transcrito. Portanto, influíam na performance das imagens as outras que com elas formavam um conjunto do arquivo.


Figura 5 – Imagem da série "fazendas de café", que pode ter sido descrita como “carros de boi”, Marc Ferrez, 1882-1885. Fonte: Instituto Moreira Salles


Apesar da aparente objetividade do ato de inventariar a produção de uma vida, Ferrez deixava transparecer como dançava e brincava com as imagens, sugerindo diferentes interpretações a depender das combinações realizadas. Assim, fazia as fotos migrarem entre conjuntos, mas também entre dispositivos e tamanhos. Desse modo, as fotografias performavam de maneiras diferentes de acordo com a forma como eram apresentadas. A mesma imagem em dispositivo estereoscópico, lanterna mágica ou fotografia em papel não incide sobre os olhos, os cérebros e os corpos dos indivíduos de forma igual. A metáfora de colocar as imagens para dançar expressa o gosto de Ferrez pelo movimento. Desde seu trabalho como fotógrafo da Comissão Geológica e Geográfica do Império, em 1875, experimentou ver suas fotografias projetadas em grandes dimensões e para um público mais amplo, primeiro para ilustrar a conferência de Hartt, depois em exposições internacionais45 e cinematógrafos ambulantes, que se deslocavam de cidade em cidade, a partir de 1905 (Ferrez, 1997, p. 343).

A temporalidade em que os cadernos de Ferrez foram escritos, as duas primeiras décadas do século XX, abarcava mudanças profundas no que compete à produção de imagens técnicas. Com a invenção do cinematógrafo, não demorou muito para que o grande público, já acostumado com as lanternas mágicas, se encantasse com o cinema. Com o aumento do tempo de projeção e uma maior profissionalização da indústria cultural, as empresas começaram a produzir e exportar obras cinematográficas mais longas, que passaram a ser projetadas em salas de cinema, com um grande interesse público. O próprio Marc Ferrez participou desse processo no Brasil de forma ativa, visto que sua empresa Marc Ferrez & Filhos se tornou a representante exclusiva da Pathé no país e abriu uma sala de cinema, o cine Pathé, cujos filmes eram escolhidos por ele durante sua estada na França.46

Não obstante, as transformações não se reduziram ao cinema. No campo da fotografia, Ferrez vivenciava a era do instantâneo e do amadorismo, quando a principal propaganda era “Você aperta o botão, a gente faz o resto” (Kodak), que exaltava a facilidade de produzir fotografias, pois separava o momento do clique de todo o restante do processo de produção da imagem (revelação, viragem, impressão etc.). Assim, abria-se a possibilidade de qualquer pessoa produzir uma foto, mesmo que não conhecesse nenhum de seus segredos estéticos e técnicos. Apesar de se lançar e investir nos inventos mais modernos, a exemplo dos autocromos e do cinema (no segundo, como empresário), Marc Ferrez resistia ao instantâneo e fazia de seus cadernos um manifesto em defesa da profissão de fotógrafo. No tempo da câmera portátil e da fotografia instantânea amadora, editava um manual cuja folha de rosto trazia seus feitos e prêmios como profissional: “Medalha de ouro na Exposição de Saint Louis. Após uma longa série de vistas nas exposições brasileiras e estrangeiras, é o único fotógrafo (e o sr. Insley Pacheco) a quem foi dada a distinção”.47

Em seus escritos há, por meio dos atos de inventariar sua obra e registrar seus conhecimentos técnicos, a valorização veemente do fotógrafo como um profissional, uma persona de grande expertise, que dominava não só os elementos da expressão fotográfica (enquadramento, luz e ângulos, equilíbrio dos planos etc.) no momento da captação da imagem, mas também tinha conhecimento sobre as melhores câmeras e lentes, além dos processos de revelação, ampliação, viragem e outras etapas da materialização da imagem nos seus diferentes suportes. O manual editado pela Marc Ferrez & Filhos, em 1905, valorizava a perfeição técnica da fotografia profissional, algo que poderia soar como antigo, e até ultrapassado, para os defensores das facilidades do instantâneo. Por meio dele, a fotografia não se revelava como algo simples e fácil. Pelo contrário, era uma arte minuciosa, que requeria um saber específico, dedicação e constante pesquisa e atualização. Os registros incessantes de fórmulas químicas e procedimentos técnicos feitos por Ferrez eram estudos em busca da perfeição, mas também tinham a intenção de deixar uma memória de algo que, com o avanço tecnológico e a prática amadora, vivenciados naquelas décadas de forma bastante rápida, poderiam desaparecer.

Mas a defesa do profissionalismo na fotografia não ancorava Ferrez ao passado de forma nostálgica. Percebia as transformações em plena era do instantâneo como um elemento de ruptura em relação à prática fotográfica da forma como a conheceu, mas não era pessimista com o fato. Acreditava no progresso, na potência e na eficácia das novas tecnologias como a maioria dos indivíduos modernos. O bom profissional da fotografia deveria dominar e estar atualizado com os novos processos fotográfico.48 Mas era preciso registrar os sólidos conhecimentos que lhe consagraram para que não se “desmanchassem no ar” (Berman, 1986), exatamente porque tudo estava mudando com grande rapidez. Seus registros evidenciam um sujeito que “encontrava-se num ambiente que prometia aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaçava destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos” (Berman, 1986, p. 15). E, no tempo em que escreve os cadernos, a ameaça de destruição não era apenas metafórica, era a própria primeira grande guerra em curso.49

Assim, produzidos no limiar do que viria a ser a prática fotográfica moderna (Mauad; Muaze; Lopes, 2017), os cadernos de Marc Ferrez evidenciam um esforço de inventariar a própria obra e produzir uma “escrita de si” que o valorizasse como artista, fotógrafo profissional, homem moderno e exímio conhecedor dos químicos, processos e tecnologias pertinentes à fotografia. Os manuscritos analisados integram a coleção Marc Ferrez, que pode ser reconstruída através de seus pertences reunidos no fundo da família Ferrez no Arquivo Nacional e na coleção Gilberto Ferrez, salvaguardada no IMS. A coleção, formada por múltiplos artefatos, bem como os inventários de fotografias contidos nos cadernos, aponta que a “vontade de guardar” esteve presente no cotidiano de Ferrez e de seus familiares. Como homem da era moderna, compartilhava da angústia da fugacidade do tempo e da memória. Ciente da velocidade das transformações na prática fotográfica, buscava acompanhá-las ao mesmo tempo em que registrava seus conhecimentos e inventariava sua obra, projetando um tempo futuro em que não estivesse mais presente. Seu registro valorizava os saberes fotográficos na forma que os praticou. Ao catalogar sua obra, seguiu uma lógica própria, mas também apresentou diversas composições de conjuntos que ficaram para a posteridade. Podem ser interpretadas como meras formas de organização de negativos de vidro e imagens em caixas, mas prefiro lê-las como conjuntos nos quais o fotógrafo imprimia sua subjetividade, externava diferentes narrativas visuais e abria possibilidades para aqueles que, como nós, têm a oportunidade de vislumbrá-las e se deixar inquietar por elas mesmo tanto tempo depois.

O que conhecemos sobre a imensa e variada produção fotográfica de Marc Ferrez é, em grande parte, fruto da “vontade de guardar” do próprio artista e de familiares que o sucederam nessa empreitada. Hoje, no ano do centenário de sua morte, ela permite que diversos estudiosos se debrucem sobre sua obra, criando uma dimensão de celebração, de efeméride, que demonstra que seu investimento numa memória futura foi bem-sucedido.

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Recebido em 18/10/2022

Aprovado em 2/3/2023


Notas

1    Mesmo que muitos autores salientem que esse estilo esteve presente desde o setecentos, foi durante o século XIX, com o advento do capitalismo e da sociedade moderna, que se tornou uma atividade recorrente entre os grupos letrados (Galvão, 2000; Gay, 1988).

2    Para Michel de Certeau (2008), são as relações sociais que determinam o indivíduo e não o contrário, assim, o cotidiano dos sujeitos sociais, suas “artes de fazer”, suas práticas sociais, são elementos importantes para a compreensão da história.

3    A descrição multinível do fundo Família Ferrez, do Arquivo Nacional, pode ser consultada em: https://sian.an.gov.br. Para aqueles que desejam estender a pesquisa, há também a base de dados Família Ferrez: https://bases.an.gov.br/ferrez//ficha_tec_pesq2.php.

4    Em relação ao fundo Família Ferrez, encontramos fotografias, correspondências, cartões-postais, receituários médicos, pagamento de honorários, álbuns fotográficos, negativos, telegramas, diários de viagem, passaportes, formais de partilha, bilhetes, medalhas, registros ligados à firma Marc Ferrez & Filhos, a exemplo de alvarás e licenças, recibos, contrato de sociedade, livros de contabilidade, livros-caixa, fotografias de cena (filmes diversos) e diferentes livros e estudos para as publicações de Gilberto Ferrez.

5    O termo “guardião da memória” foi usado pela historiadora Ângela de Castro Gomes para analisar o papel de Alzira Vargas em relação ao arquivo de seu pai, Getúlio Vargas. Reproduzo neste artigo, portanto, sua expressão para caracterizar aqueles que conscientemente se incumbem da ação de preservação da memória de si ou de outrem (Gomes, 1996).

6    Comentando a circulação da obra de Marc Ferrez, a historiadora Maria Inez Turazzi afirma: “O pesquisador norte-americano Weston Naef, ao lançar em Nova Iorque, em 1976, um livro realizado em parceria com o historiador Gilberto Ferrez sobre os pioneiros na fotografia no Brasil, não deixou de assinalar que a vida e a obra de Marc Ferrez já eram então mais conhecidas do que qualquer outro fotógrafo em atividade no país do século XIX. Esse conhecimento havia sido construído pelo trabalho de preservação do acervo e divulgação do nome de Marc Ferrez realizado desde 1930 por seu neto, quando começava a colecionar e estudar a iconografia brasileira” (Turazzi, 2002, p. 9).

7     “No arquivo de Marc Ferrez, no Instituto Moreira Salles, além de negativos e positivos em vidro, encontramos as caixas originais das chapas, de fabricantes, formatos e emulsões variados” (Vasquez, s.d.).

8     Agradeço imensamente a Ileana Pradilla Ceron e Pedro Vasquez pelas entrevistas concedidas, respectivamente, nos dias 24 e 25 de janeiro de 2023, que me permitiram reconstruir a história da coleção Marc Ferrez. Interessante registrar que Pedro Vasquez, amigo pessoal de Gilberto Ferrez, auxiliou, desde a década de 1990, a fazer o levantamento das latas com negativos de vidro de grande formato e fotografias em papel, bem como do restante do acervo, que ficava na residência do próprio Gilberto, e atualmente estão no Arquivo Nacional e no IMS. Segundo ele, muitos dos negativos de grande dimensão (1 m e 40 cm) e das panorâmicas, que julgavam desaparecidos, foram encontrados por Gilberto atrás de um cofre no escritório da firma Marc Ferrez & Filhos, na ocasião da mudança.

9     Ainda podemos trabalhar com a hipótese de que o que hoje está relacionado no fundo Família Ferrez do Arquivo Nacional como coleção da firma Marc Ferrez & Filhos não estivesse separado e fosse armazenado por Ferrez como parte de seus guardados. No que compete à historicidade dos arquivos, também é importante atentar para o fato de que grande parte das imagens produzidas por Ferrez no início de sua carreira como fotógrafo foi perdida no incêndio de seu ateliê, em 16 de agosto de 1873. Foi com a ajuda do empresário Julio Chaigneau que o casal Ferrez viajou para a França e comprou novos equipamentos, sendo recebido pelo antigo tutor e amigo Alphée Dubois. Marc e Marie Ferrez retornaram ao Brasil em 1875. Dessa forma, as imagens e documentos de Ferrez anteriores a 1873 são muito raras.

10     Os cadernos foram digitalizados e estão disponíveis ao público por meio de um projeto conjunto do IMS com o Arquivo Nacional. Para este artigo, mantivemos os títulos apresentados pelas idealizadoras do projeto, pois alguns cadernos foram intitulados pelo próprio Ferrez e outros não. Também mantivemos a metodologia em relação ao número de páginas do artefato, pois contamos seu total, não importando se foram escritas por Ferrez. Para acessar os nove cadernos de Ferrez e textos de especialistas abordando cada um deles, consultar: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/.

11     “Agenda Pathé Frères”, 1918. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/agenda-pathe-freres/.

12     Marc Ferrez era o filho caçula dos imigrantes franceses Zépherin Ferrez e Alexandrine Caroline Chevalier. O casal contraiu matrimônio em 16 de junho de 1821 na Igreja do Santíssimo Sacramento e teve seis filhos: Francisca, Augustine, Emile, Sophie, Maurice e Marc, que recebeu o mesmo nome do tio paterno. Zépherin e Marc Ferrez (tio) migraram para o Brasil e integraram a Missão Artística Francesa, como escultores e gravadores, alcançando renome na cena artística carioca. Em 22 de julho de 1851, as crianças ficaram órfãs depois que os pais, alguns escravizados domésticos e animais da chácara onde moravam morreram de diarreia aguda, havendo, inclusive, suspeitas de envenenamento, que nunca foram confirmadas. Depois da tragédia, Marc Ferrez permaneceu na Europa de 1851 a 1861. De volta ao Rio de Janeiro, foi trabalhar por dois anos na Casa Leuzinger, especializando-se em fotografia com o alemão Franz Keller. Em 1867, aos 23 anos, abre a firma Marc Ferrez & Cia e o estúdio fotográfico na rua São José, 96, dedicando-se às vistas e paisagens (Turazzi, 2000; Ferrez, 1967; 1997).

13     “Anotações Brasil-Europa”, 1915-1921. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/anotacoes-brasil-europa.

14     O catálogo “Máquinas e acessórios” foi editado em 1905, no mesmo ano em que a Marc Ferrez assume a exclusividade para a venda de aparelhos e vistas para cinematógrafos da Pathé Frères. Em outubro de 1907, foi criada a firma Marc Ferrez & Filhos, exclusivamente para os negócios de cinema, e a Marc Ferrez & Cia, de fotografia, passou a ser administrada por Emilio Brondi, antigo assistente do fotógrafo.

15     Ileana Pradilla Ceron aponta o caderno “Anotações Brasil-Europa” como aquele que Ferrez escreveu logo no momento de sua chegada, pois encontram-se ali anotações sobre o consulado e o visto de permanência (Ceron, s.d.).

16     Quando Ferrez assinou contrato com as empresas ligadas ao ramo do cinema Pathé e Gaumont, ele já era um profissional bastante conhecido no campo da fotografia. Desde 1875, o artista iniciou uma série de trabalhos comissionados e se especializou em vistas e paisagens, adquirindo grande reconhecimento nacional e internacional. Integrou a Comissão Geológica do Império (1875), chefiada pelo geólogo Charles Frederick Hartt, produzindo uma série de registros da vida indígena, que foram exibidos no escritório da expedição, na Exposição de Obras Públicas do Ministério da Agricultura (1877) e na Exposição Antropológica Brasileira do Museu Nacional (1882). Também registrou as obras de abastecimento de água no Rio de Janeiro (1877-1880), com a publicação de oito álbuns; as fazendas de café e os engenhos de cana do interior fluminense (1880-1885); as construções das ferrovias no Brasil (1880-1890); a Marinha (1880-1910); a Revolta da Armada (1893); as obras da Avenida Central (1904, 1905); a Exposição do Centenário da Independência (1922) etc. Por essas obras, recebeu vários prêmios e condecorações nas exposições universais.

17     Marie Ferrez faleceu em 28 de junho de 1914, aos 65 anos.

18     Ferrez retorna definitivamente ao Brasil em 1922. Menos de um mês depois, fotografou a Exposição Internacional pelo Centenário da Independência e deixou, ao que tudo indica, seu último conjunto fotográfico, vindo a óbito em 12 de janeiro de 1923.

19    Contabilidade, vistas e coleções”. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/contabilidade-vistas-e-colecoes/.

20     “Procedimentos e fórmulas”. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/procedimentos-e-formulas/.

21     “Procedimentos e fórmulas”. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/procedimentos-e-formulas/.

22     “Procedimentos e fórmulas”. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/procedimentos-e-formulas/.

23     “Procedimentos e fórmulas”. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/procedimentos-e-formulas/.

24     “Procedimentos e fórmulas”. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/procedimentos-e-formulas/.

25     “Contabilidade, vistas e coleções”. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/contabilidade-vistas-e-colecoes/.

26     Não é possível saber se, efetivamente, todos os cadernos foram produzidos durante a Primeira Guerra. De qualquer forma, esse contexto violento não aparece como um empecilho para o envio de encomendas e para os negócios em seus escritos. Ileana Pradilla Ceron, analisando a experiência da guerra em Marc Ferrez, também aponta como o artista foi comedido ao representá-la. Ele possui apenas 22 estereoscopias da cidade francesa de Arras com soldados e armamentos de guerra, antes e depois do bombardeio, e uma única carta, datada de 20 de novembro de 1916, na qual comenta: “Hoje, às 10 horas da manhã, recebi seu telegrama do dia 18 perguntando o preço dos aparelhos de Debrie. Imediatamente, peguei um carro e fui ver o velho amigo. Suas oficinas funcionam dia e noite, mas para o governo. Seu filho, que estava no front, retornou para administrar as oficinas, que apenas fabricam peças de precisão. Impossível fazer algo diferente de artigos para o Exército” (Ceron, s.d).

27     As três primeiras citações pertencem à “Anotações França”. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/anotacoes-franca/.

28    “Processos e materiais”. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/processos-e-materiais/.

29    As três primeiras citações pertencem a “Anotações França”. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/anotacoes-franca/.

30    As duas citações seguintes pertencem a “Procedimentos e fórmulas”.

31    Ver “Procedimentos e fórmulas”. Quando vai morar na França, Ferrez já possuía uma moléstia no fígado que lhe causava dores abdominais, para as quais fez tratamento com águas na cidade de Vichy.

32     “Anotações França”. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/anotacoes-franca/.

33     Sobre o trânsito de mercadorias, consultar Rainho (s.d.).

34     “Anotações França”. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/anotacoes-franca/.

35     “Anotações França”. Citação papel avulso. Lista similar na p. 13 do mesmo caderno. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/anotacoes-franca/. Há outra lista de encomendas de coisas de casa e roupas para Claire [Clairette] no caderno “Contabilidade, vistas e coleções”. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/contabilidade-vistas-e-colecoes/.

36    O clichê era uma placa de metal, geralmente de zinco, gravada fotomecanicamente em relevo, obtida por meio de estereotipia, galvanotipia ou fotogravura, destinada à impressão de imagens e textos em prensa tipográfica. É um sistema semelhante à tipografia (a matriz de impressão ‒ clichês ‒ é dura e plana, normalmente de metal, na qual o grafismo a ser impresso está em alto-relevo ou baixo-relevo), porém o clichê não recebe tinta, sendo apenas aquecido e pressionado sobre uma tira de material sintético revestida de uma finíssima camada metálica.

37    Sobre as viagens de Ferrez, consultar Heynemann (s.d.).

38    O autocromo foi o primeiro processo de fotografia em cores comercial realizado à base de grãos microscópicos de fécula de batata tingidos em três cores primárias (vermelho alaranjado, verde e azul-violeta) sobre uma placa de vidro, coberta por uma emulsão pancromática. O resultado eram placas escuras que precisavam ser vistas contra a luz. Para melhor nitidez eram necessários poses e maior tempo de exposição, dando um efeito tranquilo, pontilhado, devido à distribuição irregular dos grãos, que lembrava a estética impressionista. O autocromo foi introduzido e comercializado no Brasil por Marc Ferrez e, muitas vezes associado à estereoscopia, produzia um efeito 3D.

39    “Contabilidade, vistas e coleções”, caixa 1 (boîte 1 / Paris e Jardins) – Sorbonne, Panteão, Palácio da Justiça, Arco do Triunfo, L'Etoile, Arco do Triunfo no carrossel, estátua de Gambeta, decoração do Louvre, Notre Dame, Igreja de Santa Augusta, Jardim de Luxemburgo e Sena, Luxemburgo, Fontana di Medici. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/contabilidade-vistas-e-colecoes/.

40    Ferrez viajou entre 1915 e 1917 para a Suíça, onde realiza uma série de autocromos, inclusive com a família.

41    “Como tecnologia imersiva, a fotografia estereoscópica não acontece apenas diante dos olhos, mas cria um espaço imaginário no interior de nosso próprio crânio” (Lissovsky, 2020, p. 90). Um estereograma é uma técnica de ilusão de ótica, que, a partir de duas imagens bidimensionais complementares, torna possível visualizar uma imagem tridimensional. Basicamente deve-se ver cada uma das duas imagens bidimensionais com um dos olhos, gerando a ilusão da tridimensionalidade. Denomina-se fotograma cada uma das imagens impressas quimicamente no filme cinematográfico. 

42    O inventário das obras é realizado mais propriamente nos cadernos “Inventário manuscrito de negativos”, “E. de ferro e Marinha” e, de forma mais dispersa, em “Contabilidade, vistas e coleções” e “Anotações Brasil-Europa”. Há repetições entre as brochuras de tamanhos, dispositivos e obras.

43    As sete primeiras citações foram retiradas do “Catálogo das vistas, estrada de ferro e Marinha”.

44    As três últimas citações foram retiradas de “Inventário manuscrito de negativos”.

45    “Através do Catálogo das obras expostas no Palácio da Academia Imperial de Bellas Artes, é possível saber que Marc Ferrez expôs as fotos ‒ 'vista de um cafeeiro, casa de colonos, fazenda, rancho, pátio de secagem do café, seleção de cafés, transporte de cafés' – na exposição de Beauvais, na França, em 1885. Além de exibidas no estande brasileiro, tais imagens foram projetadas pelo sistema Alfred Molteni, conhecido como lanterna mágica, para o grande público. Esse tipo de entretenimento era popular na Europa, reunia uma grande concentração de pessoas e permitia a visualização das imagens numa grande tela plana em local escuro” (Muaze, 2017, p. 41).

46     Pedro Vasquez relata que, na primeira década do século XX, Ferrez investiu na produção de vistas “fixas”, para compor os programas diários de seus cinemas, ao lado das vistas “animadas”, como também eram chamados os filmes. Assim, lança a hipótese de que, como participava da distribuição e montagem da programação dos cinematógrafos de sua empresa que rodavam o Brasil, muito provavelmente suas lanternas mágicas tenham tido ampla circulação nacional (Vasquez, s.d.).

47    “Máquinas e acessórios”. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/maquinas-e-acessorios-para-fotografia/.

48     Estudando os processos químicos e equipamentos anotados por Ferrez em seus cadernos, Pedro Vasquez e Gilberto Ferrez também apontam seu encanto pelas novidades. Após décadas de trabalho bem-sucedido com os químicos tradicionais, ele colou em seu caderno um artigo sobre o “Formosulfite Lumière”, que propunha a substituição do sulfato de sódio e dos álcalis nas fórmulas dos reveladores; se interessou por um “fixador a seco para papéis” à base de hipossulfito de sódio, bem como estudava as formas de processamento de fotografias coloridas e das películas cinematográficas Pathé, das quais era representante no Brasil (Ferrez, 1997, 1967; Vasquez, s.d.).

49     Como afirma Ileana Pradilla Ceron, a experiência de Ferrez na guerra aparece como ambígua. Ao mesmo tempo que faz queixa aos filhos, por carta, da restrição dos Correios, da falta de regularidade dos navios, da pouca disponibilidade de filmes e equipamentos para serem enviados ao Brasil, relata viagens, visita amigos e mantém uma rotina tranquila de trabalho (Ceron, s.d.).

“Anotações França”. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/anotacoes-franca/.



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