Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 3, set./dez. 2023

Artigos Livres

Sob a pena dos viajantes

Narrativas sobre vida e trabalho no Marajó oitocentista

Under the feather of travelers: narratives about life and work in the 19th century Marajo / Bajo la pluma de los viajeros: narrativas sobre la vida y el trabajo en Marajo en el siglo XIX

Lucas Monteiro de Araújo

Doutor em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista de Capacitação Institucional no Museu Paraense Emílio Goeldi, Brasil.

araujo_lucas@outlook.com

Agenor Sarraf-Pacheco

Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor associado da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará (UFPA), Brasil.

sarraf@ufpa.br

Resumo

Propomos neste artigo analisar o processo de construção da narrativa sobre o arquipélago de Marajó, veiculada em livros, artigos, diários e cartas produzidos por viajantes naturalistas do século XIX. Partimos do pressuposto de que a realidade construída e relatada foi moldada à luz de embates de percepções sobre vida e trabalho.

Palavras-chave: arquipélago de Marajó; literatura de viagem; século XIX; pensamento decolonial.

Abstract

The propose of this article is to analyze the process of construction of the narrative about the Archipelago of Marajo in books, articles, diaries and letters produced by naturalist travelers in the 19th century. We depart from the assumption that the constructed and reported reality was shaped in the light of clashes of perceptions about life and work.

Keywords: Archipelago of Marajo; travel literature; 19th century; decolonial thinking.

Resumen

En este artículo, nos proponemos analizar el proceso de construcción de la narrativa sobre el Archipiélago de Marajo en libros, artículos, diarios y cartas producidos por viajeros naturalistas del siglo XIX. Partimos del supuesto de que la realidad construida y relatada se formó a la luz de choques de percepciones sobre la vida y el trabajo.

Palabras clave: Archipiélago de Marajo; literatura de viajes; siglo XIX; pensamiento decolonial.

Introdução

Durante o século XIX, a América Latina esteve constantemente na rota de viajantes naturalistas brasileiros e estrangeiros (europeus e norte-americanos principalmente) que buscavam desenvolver estudos diversos da chamada história natural nos territórios visitados.

O Brasil, nesse cenário, surpreende enquanto ponto de atração majoritariamente por seu patrimônio natural, com destaque para a Amazônia, que fecundava a imaginação e aguçava a curiosidade desses homens e mulheres que direcionaram várias excursões, oficiais e autônomas, a percorrer os quatro cantos da região.

Dentre alguns dos nomes que por aqui passaram, podemos destacar Louis Agassiz (1807-1873), Elizabeth Agassiz (1822-1907), Henry Bates (1825-1892), François Biard (1799-1882), Charles Baerigton Brown (1839-1917), Henri Coudreau (1859-1899), Orville Derby (1851-1915), William Edwards (1822-1909), James Fletcher (1823-1901), Daniel Kidder (1815-1891), Hércules Florence (1804-1879), Charles Philippes de Kerhallet (1809-1863), Thomas Knox (1835-1896), Paul Marcoy (1815-1888), Pierre Émile Levasseur (1828-1911), Henry Lister Maw (1801-1874), James Orton (1830-1877), príncipe Adalberto da Prússia (1811-1873), Francisco Michelena y Rojas (1801-1872), Herbert Smith (1851-1919), J. B. von Spix (1781-1826), C. F. P. von Martius (1794-1868), Frank Vincent (1848-1916), Alfred Russel Wallace (1823-1913), John Warren (1827-1896), Robert Avé-Lallemant (1812-1884), Georg Heinrich von Langsdorff (1774-1852), Joseph Beal Steere (1842-1940), para citar só alguns.

As narrativas das aventuras vividas por esses viajantes, bem como os resultados de seus estudos científicos foram apresentados em livros, artigos, diários e cartas publicados nacional e internacionalmente e que formam a hoje chamada literatura de viagem. Não poucas vezes, esses materiais são registros únicos de lugares, pessoas, práticas e modos de vida desconhecidos da historiografia oficial.

Grande parte dessa rica herança bibliográfica está hoje preservada em bibliotecas, museus, arquivos, universidades e repositórios digitais, brasileiros e estrangeiros, e é foco de devotados estudos de diversos campos, como a história, a antropologia e a museologia.

Estudiosos e pesquisadores têm buscado recentemente ultrapassar a percepção dos materiais como meros constructos literários para também os analisar como importantes atores na construção da representação e propaganda do país (tanto no Brasil, quanto no exterior), na formação de uma identidade nacional (fundada em preceitos nobiliárquicos), na legitimação de padrões de conduta de colonizadores e colonizados, além de terem auxiliado no conhecimento de vasta parte do território brasileiro que permanecia em branco nos mapas oitocentistas (Ferreira, 2010; Araújo, 2017; 2021).

Buscamos neste trabalho submergir nesse universo documental a fim de analisar o processo de construção da narrativa veiculada nos documentos produzidos pelos viajantes. Questionamos que narrativas foram veiculadas nos livros de viagem sobre o viver e o trabalhar na região marajoara oitocentista e a partir de quais visões de mundo essas representações foram concebidas.

Partimos do pressuposto de que a realidade construída e relatada por eles foi moldada à luz de embates de percepções sobre vida e trabalho. Os expedicionários projetavam sobre os locais visitados e suas gentes as suas próprias visões de mundo, que frequentemente entravam em choque com hábitos, costumes e práticas de indígenas, negros e afro-indígenas (Sarraf-Pacheco, 2009).

Nesses termos, a narrativa crítica e de censura às populações locais e seus modos de vida é que vai dar o tom à literatura. A representação da realidade sob este aspecto foi uma forte ferramenta no projeto de manutenção do poder colonial, pois os escritos (e a ciência moderna de um modo geral) atuaram não só como plataforma de observação científica sobre o mundo social, mas também foram definidores e legitimadores de um conjunto de normas de submissão e naturalização de relações sociais a partir da formatação das identidades de colonizadores (os críticos) e colonizados (os criticados) (Castro-Gómez, 2005; Lander, 2005).

Foco especial foi dado às narrativas de viagem sobre o arquipélago de Marajó, no atual estado do Pará. Por sua localização privilegiada na foz do rio Amazonas, o local era passagem e parada obrigatória na rota dos expedicionários em trânsito marítimo pela região, fato que faz com que suas cidades e vilas apareçam com frequência nos livros.

Ademais, uma das características da literatura de viagem é a grande profusão de temas (Lisboa, 1997). Os viajantes buscavam esboçar os mais diversos aspectos da realidade visitada, incluindo os modos de vida, trabalho, práticas quotidianas, religiosidade e saberes de populações locais. Para este artigo especificamente, buscaremos dar conta de apenas dois desses temas, a saber: os modos de vida e as práticas de trabalho.

Escolhemos tal matéria, pois no século XIX o arquipélago de Marajó esteve no centro de importantes mudanças econômicas que não passaram despercebidas nas penas dos viajantes. A criação do gado e o extrativismo de produtos florestais que dominavam o mercado na primeira metade do século XIX, a partir de 1840, veem a borracha emergir e se tornar o principal artigo exportado pela região, produzindo rotas de migrações de homens e mulheres para dentro das matas, visando sangrar as seringueiras. Esse fato é fortemente criticado pelos expedicionários, pois na visão de mundo europeia, a fixação à terra e o desenvolvimento da propriedade privada por meio da agricultura seriam motores do processo civilizatório, enquanto o nomadismo exigido pelo extrativismo gomífero levava o homem à barbárie (Penna, 1971; Weinstein, 1993; Sanjad, 2010).

A busca pelos livros, artigos, diários e cartas dos viajantes foi feita tanto de forma presencial quanto virtual. No primeiro caso, realizamos incursões em instituições nacionais como a Biblioteca Domingo Soares Ferreira Pena e o Arquivo Guilherme de La Penha (ambos no Museu Paraense Emílio Goeldi), o Arquivo Público do Estado do Pará e a Fundação Cultural do Pará (Centur). Internacionalmente, visitamos principalmente instituições norte-americanas como a Biblioteca Carl A. Kroch, da Universidade de Cornell, a Biblioteca Histórica Bentley, da Universidade do Michigan, os Arquivos do Museu Peabody de Arqueologia e Etnografia, a Biblioteca Tozzer, a Biblioteca Widener e a Biblioteca Ernst Mayr do Museu de Zoologia Comparada (todos na Universidade de Harvard), e os Arquivos do Museu Kingman.

Virtualmente, realizamos pesquisas em diversos repositórios digitais, a exemplo da Biblioteca Nacional do Brasil, Arquivo Nacional, Biblioteca do Senado, Biblioteca Nacional da França (Gallica), Biblioteca do Senado dos Estados Unidos, Internet Archive, Newspaper.com, repositórios e coleções on-line dos próprios museus, dentre outros.

As fontes foram analisadas com base em diálogos interdisciplinares entre os campos da história, antropologia e museologia. Autores como Stuart Hall (2016), Santiago Castro-Gómez (2005), Mary Louise Pratt (1999), Rogério Haesbaert (2021), Bárbara Weinstein (1993), Michael De Certeau (1998), Paula Montero (2006), John Hemming (2009), José Carlos Barreiro (2002), dentre outros, compõem o quadro teórico que auxiliou a intepretação dos documentos.

Esses autores guiaram o olhar à percepção dos livros de viagem não apenas como um instrumento de informação, mas também como uma poderosa ferramenta de produção e difusão de significados e visões de mundo a partir de experiências historicamente determinadas. Assim, ao analisar a construção da representação do arquipélago nos documentos, estivemos também atentos aos dispositivos de saber e poder que serviram de pano de fundo nesse processo (Castro-Gómez, 2005; Hall, 2016).

Os estudos sobre os livros de viagem se ampliaram nas últimas décadas, pois muitos periódicos científicos, revistas e boletins têm dedicado números inteiros a trabalhos com essa temática. Nessas oportunidades, não só despontam novas análises e perspectivas de estudos, como outros lugares e regiões são tomados para exame.

Ainda que o arquipélago de Marajó apareça com frequência nos livros e artigos de viajantes do século XIX, são escassos os trabalhos que se propõem a estudar sua representação nessa literatura – fato que pode ser comprovado com uma rápida procura virtual.

Trabalhos como os de Sarraf-Pacheco (2009), Araújo (2017), Araújo e Sarraf-Pacheco (2015; 2016), Sarraf-Pacheco e Silva (2016) e Anna Linhares (2017), por exemplo, buscam analisar, a partir da perspectiva da história, antropologia e museologia, a realidade narrada nos livros de viagem e a forma como essa literatura deu suporte à construção de uma identidade nacional fundada em preceitos nobiliárquicos ao longo do século XIX.

A arqueologia é outro campo que se utiliza das narrativas de viagem. Trabalhos como os de Palmatary (1949), Meggers e Evans (1957), Roosevelt (1998), Schaan (2009; 2012), Ferreira (2010) e Araújo (2021) buscam suporte nos textos de naturalistas para remontar aos anos iniciais das pesquisas arqueológicas no arquipélago de Marajó, bem como para compreender o papel da cultura material desenterrada dos tesos e sítios da região na construção de um passado nacional enobrecido.

O trabalho que aqui desenvolvemos caminha na esteira das contribuições deixadas por esses autores. Nele são apresentados os resultados de mais de dez anos de pesquisas dedicados à ciência na Amazônia marajoara oitocentista. As investigações foram realizadas no âmbito de um doutorado e um mestrado em antropologia social, que resultaram na tese O que os viajantes levaram: a cultura material marajoara em invenção nos museus brasileiros e norte-americanos1 e na dissertação Representações marajoaras em relatos de viajantes: natureza, etnicidade e modos de vida no século XIX,2 além da graduação em museologia que derivou na monografia Os marajós em relatos: narrativas museais de viajantes no século XIX.3

Campos e florestas na primeira metade do século XIX

Em trânsito pelo Marajó das Florestas e pelo Marajó dos Campos,4 os viajantes buscavam construir um amplo panorama sobre a realidade visitada. Uma das temáticas mais repetidas nos papéis diz respeito à questão mercantil, momentos em que os expedicionários buscavam expor potencialidades econômicas e exploratórias que as terras visitadas poderiam oferecer.

Leite (1996, p. 61) reconhece que as viagens são fruto de uma conjunção de interesses, dentre os quais figuram os dos Estados nacionais e dos comerciantes locais e estrangeiros, que usavam os relatos como orientação para a exploração de recursos e a introdução de novas mercadorias, que tomavam como base usos e costumes das populações locais narradas pelos homens e mulheres.

Desde os momentos iniciais da chegada do europeu na América, o olhar mercantilista foi uma das primeiras orientações. Tzvetan Todorov (2003, p. 9) mostra que na viagem de Colombo, por exemplo, a busca por metais preciosos foi a bússola dos interesses europeus, cujo expoente idílico máximo eram as cidades de ouro, como o El Dorado. Para Pizarro (2012, p. 79) esse mito “é a concretização do desejo de enriquecimento do europeu na América”.

Essas imagens da Amazônia como a terra de projeção e enriquecimento se modificaram ao longo do tempo de acordo com as orientações e visões de cada época. Referenciais antes mitológicos cederam lugar, após o Iluminismo, a visões científicas que prezam por registros de possibilidades visíveis de exploração por um crescente mercado internacional (Pratt, 1999; Hall, 2016).

É nesse contexto de busca pela objetividade científica que o arquipélago de Marajó emerge na pena dos viajantes, sendo visto – assim como toda a região amazônica – como local paradisíaco, terra fértil, com diversos recursos naturais, mas sob a tutela das pessoas erradas, indígenas, negros e afroindígenas que supostamente se contentavam com pouco e se acomodavam com as pretensas facilidades que a vida naquela paragem permitia (Godim, 2019; Araújo, 2021).

A realidade econômica da região marajoara ganha destaque na literatura de viagem principalmente pelas transformações que sofreu ao longo do século XIX. Em princípios do oitocentos os principais produtos da região do Marajó das Florestas eram especiarias coletada nas matas.

Hércules Florence, um dos colaboradores da expedição russa chefiada por Georg H. von Langsdorff, copiou o livro de registros comerciais da vila de Gurupá, local que funcionava como entreposto fiscal na região marajoara. Segundo ele, os principais produtos que ali foram produzidos no ano de 1827 foram:

Barras de ouro: 30 no valor de 3:125$220; cacau: 190.452 arrobas; salsaparrilha: 5.744 arrobas; cravos (especiaria): 5.646 arrobas; breu: 260 arrobas; óleo de copaíba: 167 potes; óleo de copaíba: 18 barris; guaraná: 89 arrobas; urucú: 6 arrobas; castanhas doces: 1.953 sacos; fumo: 7.380 arrobas; café: 5.725 arrobas; algodão: 126 arrobas; estopa do país: 317 arrobas; amarras de piaçaba: 252 arrobas; piaçaba em rama: 615 arrobas; piaçaba em molhos: 357 arrobas; piaçaba em cordas: 4.328 polegadas; arroz: 314 alqueires; feijão: 43 alqueires; farinha de mandioca: 1.256 alqueires; carne seca: 4.271 arrobas; cebo: 215 arrobas; chifres: 730 arrobas; couros: 1.612 arrobas; pirarucu seco: 48.718 arrobas; manteiga de tartaruga: 7.896 potes; mixira: 230 potes; redes: 30; tábuas de itaúba: 182; tábuas de cedro: 24. (Florence, 1876, p. 175-176)

O autor completa o relato questionando a falta da borracha nesta tabela e argumenta que naquele mesmo ano foram exportadas dez mil arrobas do produto. A lista deixa ver que existia uma grande variedade de artigos sendo explorados e comercializados na região. Florence nos apresenta nada menos que trinta tipos de mercadorias, sendo a borracha – que mais tarde ganharia protagonismo – apenas uma dentre tantas outras e cuja produção naquele momento era quase vinte vezes menor que a do cacau.

Já na parte do Marajó dos Campos havia a predominância da criação do gado, que abastecia o comércio de carne da capital Belém, além de manter um vivo negócio internacional com países vizinhos como a Guiana e Guiana Francesa. O jornalista irlandês e especialista em economia William Scully (1866) lembra o protagonismo dos senhores James e Ambrose Campbell, os maiores donos de terra da província e possuidores de um quarto de todo o arquipélago. “These gentlemen are zealous in the improvement and cultivation of their immense property and derive great profits from the lucrative trade in which they are engaged, furnishing the beef market of Para, and even shipping cattle to Cayenne and Demerara”5 (Scully, 1866, p. 274).

Antonio Baena (2004), militar, geógrafo e estatístico português radicado no Pará, apresenta na obra Ensaio corográfico sobre a província do Pará os números totais de reses nas fazendas da região marajoara na primeira década do século XIX:

No triênio volvido de 1756 a 1759 a produção da vacaria rendeu ao dízimo no ato da ferra o número de 7.416 reses; no decorrido de 1801 a 1803 a mesma operação distintiva compreendeu 9.499 reses; no de 1807 a 1809 teve o número de 15.830 reses; e no de 1825 a 1827 o de 9.935. (Baena, 2004, p. 274)

Nos primeiros anos do século XIX, a indústria pecuária vivenciou visível expansão, com números de reses nas fazendas chegando à soma de mais de quinze mil cabeças de gado em seu momento mais alto. Por outro lado, o excerto de Baena também permite visualizar que entre os anos de 1825 e 1827 houve um decréscimo no mesmo número, caindo para 9.935 reses, uma diminuição de mais de 30%.

O político e naturalista brasileiro Domingos Soares Ferreira Penna (1971, p. 73) vai mais além e mostra que desde a introdução do gado na região marajoara, o número de cabeças já havia chegado à incrível marca de quinhentas mil reses, mas esta quantidade caiu quase pela metade na década de 1870. Toda essa redução foi encabeçada por diversos fatores que serão apresentados mais adiante.

Assim como o Marajó dos Campos, o Marajó das Florestas também testemunhou um decréscimo no extrativismo. A redução se deu em visível contrapartida à emergência da indústria gomífera. Como mostra Weinstein (1993, p. 23), na Amazônia a produção da borracha passou, em 1830, de 156.060 kg para 2.673.000 kg em 1860, ou seja, em um período de trinta anos a produção da borracha cresceu mais de 1.000% e atingiu patamares nunca vistos.

Em trabalhos anteriores (Araújo; Sarraf-Pacheco, 2013; 2014), mostramos que esse aumento se deu por diversos fatores, dentre os quais se destacam novos modelos de utilização da borracha, que inicialmente estavam centrados na produção de bens como sapatos e cintos, para usos industriais, principalmente após o desenvolvimento do método da vulcanização por Charles Goodyear, na década de 1840.

A ascensão da borracha motivou severas críticas por parte dos expedicionários. Suas censuras demonstram a existência de embates de percepções sobre modos de vida, trabalho e propriedade privada. Para o europeu, o homem deveria se fixar e desenvolver o seu pedaço (privado) de terra através de atividades como a agricultura ou a pecuária. Barreiro (2002, p. 17) aponta que esta concepção emerge progressivamente na Europa entre os séculos XVI e XVIII, pois “será nesse período que a ação da chamada ‘acumulação primitiva’ configurar-se-á como um processo criador do capital, mediante os artifícios da pressão econômica e monopólio [...]”.

Por outro lado, as populações locais de Marajó viviam, em grande parte, do extrativismo de produtos florestais. Elas exploravam grandes áreas de terra sem necessariamente ter a posse ou se estabelecer sedentariamente naquele território. As delimitações geográficas em que operavam essas populações eram moventes e temporais, sendo produto do desejo e da necessidade de sobrevivências de cada um. Muitas vezes esses desejos estavam ligados às sazonalidades dos ciclos e estações do ano, como aponta Costa (2012, p. 226):

O inverno amazônico, período das grandes chuvas e das enchentes, é o período de escassez. A pesca é rara, a caça e a coleta de frutos na floresta – muitas vezes, inundada – tornam-se mais difíceis. Nessa época, nada se colhe nas roças. Ao contrário, no verão quando as águas baixam, as chuvas são menos intensas ou até mesmo se interrompem por algum tempo.

Os embates de percepções ficam marcados nos relatos dos viajantes quando eles narram com forte criticismo o modelo extrativista de exploração, já que em suas interpretações é maléfico ao desenvolvimento da civilização. “Nesse sentido, a contradição do processo civilizatório manifesta-se quando considerado em relação à natureza” (Lisboa, 1995, p. 85), pois se mostrava rica e com grande potencial, mas sob o “comando” e base exploratória errados.

Um claro exemplo disso aparece na narrativa dos naturalistas bávaros J. B. von Spix e C. F. P. von Martius, ainda nas primeiras décadas do século XIX. Quando de passagem pela vila de Breves, eles analisam as noções de propriedade e trabalho que definem e diferenciam o indígena e o negro:

Quando o normando do extremo norte europeu não tranca sua cabana, porque confia na lealdade do vizinho mais do que em fechaduras e ferrolhos, o colono de raça indígena, em Marajó, deixa a sua choça aberta, porque não possui coisa alguma de valor e mesmo sem curiosidade espera tampouco segredos do vizinho. Quão diversa é, nesse sentido, a mentalidade do negro! Este fecha cuidadosamente a sua morada; apreciando a comodidade do lar, reconhece também o valor de suas posses, e é com isso estimulado à atividade e ao ganho. Com tal índole da gente de Breves, debalde se procurariam plantações extensas e outras provas de diligência. De fato, o café, aqui, dá admiravelmente, mas encontramos já totalmente desleixados os cafezais plantados pelos jesuítas de Melgaço, paróquia de Breves; em geral, pareciam os habitantes viver em absoluta despreocupação de um dia para o outro. Um peixe qualquer, que o marido traz para casa, umas frutas do mato ou raízes, que a mulher colhe, além da farinha seca, ou mexida com água (tiquara) e umas bananas do quintal maltratado, constituem a alimentação usual; quando muito, cuidam de conservar num cercado, para os dias de penúria, algumas tartarugas. (Spix; Martius, 1981, v. III, p. 77)

A crítica primeira recai sobre a não acumulação de bens e a noção de propriedade privada, que nos termos vistos acima, colocam o negro como aquele com orientação ao ganho e a preservação de sua posse. Por outro lado, os indígenas compartilhavam uma visão ontológica “onde homem e terra, grupos sociais e seu entorno, mundo humano ou espiritual e natural não se apartam, tornam-se constituintes, indissociáveis um do outro” (Haesbaert, 2021, p. 205), eles não buscavam possuir a terra, pois não a viam como propriedade, mas como parte de si mesmo.

Por sua visão de mundo que destoava da do europeu, os indígenas foram repetidamente alvo da censura dos viajantes e agentes coloniais. José Carlos Barreiro (2003, p. 224) comenta que “o discurso e a prática liberal de consolidar e universalizar os pressupostos da propriedade e do trabalho racionalizado estavam em plena vigência em todo o mundo, desde a transição do sistema feudal para o sistema capitalista”.

O viajante, guiado por condutas de acumulação de bens, de propriedade privada e de trabalho regulado, adota a crítica como chave de interpretação geral aos modos de vida de populações locais que se mostram radicalmente distintos, pois fundados em outras percepções sobre a vida e propriedade, conforme dito.

O estado dos cafezais de Melgaço, a busca inconstante pela alimentação, bem como o próprio fato de os indígenas deixarem a porta de sua casa aberta foram traduzidos não como fruto de seu contexto, mas como exemplos de um estado de pobreza, desleixo, despreocupação e indolência levados a cabo principalmente pelos nativos. Tal quadro é reforçado com a construção da contraface dos indígenas, o normando, que ainda que partilhando da prática de deixar a porta aberta, o faz confiando na “civilidade” e lealdade do vizinho. Mesmo o negro, que ao longo da história trocou afetividades, saberes e táticas de luta pela liberdade na Amazônia (Sarraf-Pacheco, 2012), é representado como um oposto, pois distinguia-se quanto à relação com os bens materiais.

O que fica claro é que não eram necessariamente as práticas (o normando também deixava a porta aberta, o negro também fechava sua morada), mas as pessoas que as praticavam que moldavam a “sensibilidade de mundo” (Mignolo, 2017) do viajante à construção da realidade como indolente.

Sobre esse assunto, é importante lembrar que o século XIX testemunhou a emergência de inúmeras teorias que buscavam explicar as diferenças físicas e culturais observadas entre os diferentes povos do planeta. Exemplos são o evolucionismo cultural, o darwinismo social, as ideias eugênicas etc. Mais do que buscar uma explicação científica para a diversidade, as suposições atendiam ao propósito político de naturalizar hierarquias raciais e determinar locais sociais de colonizadores (europeu) e colonizados (negros e indígenas).

Lilia Schwarcz (1993, p. 85) lembra que características físicas passaram a ser intrinsecamente associadas à atributos morais, ou seja, o que definia uma pessoa como “indolente” não era necessariamente o fato de fechar ou não a porta de sua casa para preservar suas posses ou o estado de suas plantações ou ainda seus hábitos de trabalho regulados pelo relógio, mas a cor da sua pele.6

Outrossim, Spix e Martius também revelam uma busca irregular dos nativos por alimentos, através da caça, pesca ou coleta de frutas e raízes nas florestas. A natureza abundante da região possibilita, no olhar dos expedicionários, uma certa facilidade na obtenção da subsistência, com isso, colabora com a percepção de indolência e preguiça dos habitantes locais.

Essa ideia fica evidente, mais uma vez, com o jornalista William Scully, quando relata que “until lately, the scantiness of the population and this overflowing abundance of its spontaneous resources, prevented the development of its agriculture, by the indolence, which the ease of procuring their livelihood induced among the peasantry”7 (Scully, 1866, p. 273).

A “vida cômoda”, vista como preguiça, ajudava a reforçar a exterioridade dos habitantes locais em relação ao sistema de trabalho e modo de vida regrado pregado pela cartilha ocidental. Construir esse paraíso natural em oposição ao inferno social também atendia ao propósito de representar a Amazônia como região que não consegue se autorregular, por isso necessitada da orientação do homem civilizado – o europeu –, justificando assim a dominação colonial (Ferreira, 2010; Godim, 2019; Araújo, 2021).

Mary Louise Pratt corrobora com essa visão ao argumentar que “ideologicamente, a tarefa da vanguarda é a de reinventar uma América como atrasada e negligenciada, de forma a enquadrar seus cenários e sociedades não capitalistas como manifestadamente carentes da exploração racionalizada trazida pelos europeus” (Pratt, 1999, p. 262).

Nesse cenário, a ideia da preguiça, indolência ou, de forma geral, o ócio, foi um dos grandes motores nesse processo. A ele estavam associados uma série de práticas – como a já mencionada irregularidade da subsistência – e mesmo objetos, como as redes e a cerâmica.

Sobre o primeiro, Barreiro (2002, p. 54) argumenta que a rede “aparece sistematicamente nas representações construídas pelos viajantes estrangeiros como um símbolo do tempo-ócio”, conforme é possível ver no relato do príncipe Adalberto da Prússia, quando de passagem por Breves, no sul do arquipélago:

Aliás, essa boa gente sabe tornar a vida cômoda, o que não se pode deduzir só da falta de plantações, de que quase não se vê nenhuma nas cercanias, como ressalta também de passarem a maior parte do dia nas suas redes de algodão, ou de malhas de fibra, semelhantes às de dormir dos puris, e às que nós mesmos trazemos conosco. (Prússia, 2002, p. 231)

Mais uma vez salta ao olhar o fato de que elementos similares compartilhados por nativos e estrangeiros carregavam ideias diferentes por estarem associados a pessoas diferentes. A rede para o viajante é um dos materiais que facilitam a logística da expedição pelas terras amazônicas. Na mão dos indígenas, a rede se torna símbolo do ócio e representativa do modo de vida desregrado e indolente.

Por outro lado, é importante dizer que, se na ótica do estrangeiro o ócio se mostra como indolência, Leite (1996) chama a atenção para o fato de que o “fazer nada” pode também ser interpretado como uma forma de resistência, uma negação por parte das populações locais ao modo regrado e disciplinado de trabalho que tentavam lhes impor.

O naturalista americano Joseph Beal Steere, que esteve pela primeira vez no Marajó em 1870, em uma de suas diversas cartas publicadas pelo periódico Penisular Courrier and Family Visitant, reconheceu que o modo de vida indígena, ainda que inconstante, desregrado e ocioso, era quem ditava a vida nessa parte da Amazônia.

The natives, (Tapuios), as they are called here, that strange mixture of white and Indian blood, which helds a doubtful position somewhere between the proprietor and slave, seem so well satisfied with their mud hut and canoe that they cannot be persuaded to do hard labor by the offer of high wages. They prefer to limit themselves to a pair of coarse cotton pants, colored a brick red by some native bark, and to a diet of fish, and farinha, and often a dearth of that rather to labor for something better. When they have caught a fish they feast in regular Indian fashion until it is gone, swinging in their hammocks and playing the guitar, and then start off in their canoes without a morsel to eat, and perhaps pass a day or two fasting before they find another. The fact is the Indian is triumphant in this part of Brazil, imprinting his customs and manners of life upon the whites and negroes.8 (Steere, 1871, s.p.)

Não se curvar aos hábitos regulares e regrados de trabalho pregados pelo colonizador abria a possibilidade de os tapuios serem donos de seus próprios destinos. Se para os viajantes a posse (de objetos, terras, mesmo pessoas – escravizadas, claro) era o seu maior patrimônio, para o indígena era a sua liberdade, ele não tinha a mesma relação com os bens materiais, por isso não vendia ou trocava seu tempo e trabalho por qualquer valor.

Da narrativa de Steere é possível apreender ainda que outros elementos também são evocados quando construindo a representação da pobreza e indolência dos nativos. É caso do já mencionado hábito alimentar irregular e as próprias redes, mas agora também as vestimentas simples, a moradia de barro e, no caso específico de Marajó, até o artesanato produzido e vendido por mulheres indígenas.

A vila de Breves, ao sul do arquipélago, ganha evidência durante o século XIX não somente por ser região rica em seringais naturais, mas também por seu artesanato indígena. A produção cerâmica na Amazônia é prática multicentenária, prova disso são os diversos objetos arqueológicos que foram encontrados em tesos e sítios cujas datações remetem a centenas ou milhares de anos.

Ao longo do tempo, essa prática modificou-se e adaptou-se a diferentes contextos, momentos e propósitos (Schaan, 2009). Com o processo de colonização da Amazônia a partir do século XVII, principalmente, a região testemunhou uma gradual mudança em seu cenário geopolítico e social. Onde antes eram aldeias, surgiram missões religiosas e pequenas vilas; antigos modos de vida, práticas e costumes dos indígenas foram transformando-se em uma nova experiência na medida em que esses grupos iam sendo catequizados e incorporados à orbita do Estado (Montero, 2006).

A cultura material também não ficou à mingua dessas mudanças. Ela foi amplamente ressignificada e utilizada tanto por colonizadores como estratégia de conversão, como por colonizados enquanto tática de resistência (De Certeau, 1998). Breves, que havia crescido por ser posto de reabastecimento de vapores e, na segunda metade do oitocentos, por sua produção gomífera, atraiu diversas famílias indígenas desterritorializadas para suas cercanias.

A produção artesanal foi uma das formas que esses grupos encontraram para subsistência que não a venda de seus corpos e almas ao colonizador. Todavia, ela foi fortemente criticada pelos expedicionários, pois

o artesanato está associado ao ócio e, portanto, não constitui cultura, nem se eleva ao grau de civilização. Em lugar da atividade assistemática da ocupação artesanal era preciso desenvolver a atividade do trabalho, constituída por um sistema organizado em que gerações sucessivas poderiam ser submetidas à disciplina, à tenacidade e ao espírito da perseverança infatigável. (Barreiro, 2002, p. 55-56)

Mesmo com as censuras, a prática aparece em quase todos os relatos sobre Breves ao longo do século XIX. Spix e Martius (1971, v. III, p. 76) nos ajudam a datar a produção já em princípios do oitocentos, quando registram terem encontrado “diversas mulheres ocupadas em fabricar louça de barro. Elas modelavam cântaros e tigelas quase sempre sem torno, à mão livre, com grande habilidade”.

Ainda que famílias inteiras tenham se mudado para as cercanias da vila, a produção artesanal aparece majoritariamente como ocupação das mulheres. Elas moldavam os mais variados tipos de artefatos, como potes, tigelas, cabaças, cuias, vasos, pratos, jarros, paliteiros etc. O naturalista norte americano William Henry Edwards, que visitou a vila de Breves na década de 1840, registra essa diversidade de formas e tipos quando narra:

At one of the houses an old Indian woman was painting pottery, that is plates, and what she called “pombos” and “gallos”, or doves and cocks, but bearing a very slight resemblance to those birds. Another was painting bilhas, or small water-jars, of white clay and beautiful workmanship. She promised to glaze anything I would paint, giving me the use of her colours. So I chose a pair of the prettiest bilhas, and, after a consultation on the raft, we concluded to commemorate our travels by a sketch of the galliota.9 (Edwards, 1861, p. 88)

Além dos formatos acima mencionados, Edwards registra também a produção de artefatos zoomorfos, bem como a possibilidade de produção com motivos escolhidos pelos viajantes, ou seja, sob demanda.

Não é nosso objetivo aqui aprofundar análises sobre a cerâmica em si, mas sim o seu papel na construção da representação da realidade marajoara. É valido apenas mencionar que em trabalhos anteriores (Araújo, 2021), mostramos que as formas zoomorfas são criativamente adaptadas para suas funções (os cascos das tartarugas, por exemplo, são repletos de pequenos furos que servem como paliteiros). Também percebemos que a produção sob demanda introduziu elementos da cultura do homem branco (como terços católicos e o formato do coração) na cerâmica, fazendo dela compósita, ou seja, um misto de técnicas de modelagem indígena com símbolos europeus.

O naturalista britânico Henry Walter Bates (1979, p. 95), quando de passagem por Breves em finais da década de ١٨٤٠, relata que os objetos cerâmicos eram vendidos principalmente “para os comerciantes ou viajantes de passagem por ali”. Ademais, o expedicionário também argumenta que “a arte faz parte da cultura indígena amazônica, mas unicamente as tribos pertencentes à linhagem dos tupis – que se enraízam e se dedicam à agricultura – a praticam”.

O século XIX testemunhou uma perfeita “tupi mania”, como definiu Emílio Goeldi (1898). A construção de um passado nacional (que se queira nobiliárquico) após a independência do Brasil sagrou os tupis como os grandes pais fundadores da nação (Ferreira, 2010; Linhares, 2017). Na sua representação enobrecida – que obviamente os dava características prezadas pelo homem europeu, como a prática da agricultura –, foram erroneamente classificados como tal diversos outros grupos que nada tinham a ver com eles, como os marajoaras, cuja cerâmica altamente valorizada e estimada estava se desenterrando dos tesos e sítios do arquipélago.

A contraface dos nobres tupis eram os pejorativamente chamados “tapuios”, indígenas desterritorializados, muitas vezes já catequizados, vistos como entraves à civilização, pois não se curvavam aos modos de vida e trabalho dos colonizadores. Em outras palavras, exatamente os indígenas que os viajantes encontravam em seus trânsitos pelo Marajó.

Aquelas pessoas que fabricavam as cerâmicas em Breves eram vistas como “descendentes degenerados” dos antigos tupis. Ainda que tivessem mantido a prática de moldar os potes, eles já não tinham a mesma beleza estética de antes, por isso seus produtos são taxados como “feios” e “curiosos” (Agassiz; Agassiz, 2000), “terrivelmente decorados” (Smith, 1879), “barbaramente pintados” com “cores vivas mal combinadas” (Hartt, 1898).

Mesmo com todo o estereótipo carregado pela cerâmica de Breves, a atividade se tornou uma das principais fontes de renda da população na primeira metade do século XIX. O também naturalista britânico e companheiro de Bates em sua viagem pela Amazônia, Alfred Russel Wallace (2004, p. 180), confirma tal visão quando registra que a vila, em 1848, tinha sua economia baseada “principalmente na exportação de borracha, potes e louças de barros, que são curiosamente pintados”.

Wallace não chegou a desembarcar em Breves quando da parada de seu navio na vila, mas não deixou de relatar “que alguns dos índios da tripulação foram à terra, e, quando voltaram, mais tarde, vieram algum tanto embriagados, trazendo, porém, vários vasos de barros, do formato de pombo, para vender mais acima, onde esses artigos têm muita cotação” (Wallace, 2004, p. 181).

Apesar de centrado em Breves, o comércio das cerâmicas ia muito além das fronteiras daquela localidade, alcançando proporções de indústria regional. É revelada pelo naturalista, nesse sentido, a importante atuação dos indígenas que, em seus frequentes trânsitos pelos rios da Amazônia, eram os responsáveis por transportar e negociar os artefatos em outras partes da região.

A indústria da cerâmica se mantém nas listagens dos principais produtos de Breves até a década de 1860. Já nos anos subsequentes, a prática entra em decadência concomitantemente à emergência da borracha como produto principal. O jornalista e escritor paraense barão de Santa-Anna Nery registra em 188510 a extinção da arte:

Breves semble aujourd’hui une pauvre bourgade en décadence. Autrefois, les naturels de la contrée se livraientà une industrie assez lucrative et fort curieuse: leurs poteries, d’une forme et d’une ornementation très originales, étaient estimées de tous les amateurs, et la civilisation n’a rien appris, en fait de céramique, à ces habiles ouvriers qui, au contraire, ne parviennent plus a faire des vases aussi parfaits que ceux qu’ils fabriquaient autrefois.11 (Santa-Anna Nery, 1899, p. 25)

Diferentemente dos viajantes anteriores, Nery se mostra mais afeito à produção cerâmica, principalmente por sua lucratividade, visão que é fruto do contexto em que o viajante passou pelo Marajó. Com a emergência do extrativismo gomífero na região de florestas do arquipélago (a oeste e sul) na segunda metade do oitocentos, o artesanato cede lugar à indústria da borracha como alvo principal das críticas dos expedicionários, conforme veremos a seguir.

“Cemitério da indústria e civilização”: o Marajó na segunda metade do século XIX

O extrativismo é historicamente uma das principais atividades da região amazônica. Bárbara Weinstein (1993, p. 25) aponta a prática como “o traço que mais marcadamente distinguiu a vida amazônica de outras importantes áreas de colonização no Brasil colonial”, pois segundo a autora “a economia extrativa representava um compromisso entre a ânsia dos colonizadores brancos por bens exploráveis e os diversos problemas que o meio ambiente da Amazônia apresentava”.

Menos por opção, as atividades extrativas eram, na verdade, o modelo econômico mais viável para o território amazônico diante de desafios ambientais e logísticos. Tal noção vinha desde tempos coloniais, não à toa entre os séculos XVII e XVIII um pesqueiro real é instalado em Marajó e obtém relativo sucesso, bem como a exploração das drogas do sertão se tornou uma das principais fontes de renda do local entre os séculos XVIII e XIX.

Nesses termos, o embate entre os dois modelos (agricultura x extrativismo) presente na pena dos viajantes parecia não estar afinado aos espelhos da realidade vivida. A construção da representação social contrária à prática testemunhada estava muito mais interessada em imputar um quadro geral de indolência e assim justificar a dominação do que entender o local visitado em seus termos.

Os livros de viagem eram mais uma forma de autorrepresentação do europeu como civilizado, levada a cabo a partir da construção de sua contraface, o bárbaro. Como aponta Stuart Hall (2016, p. 317), “a famigerada exclusividade do Ocidente foi, em parte, produzida pelo contato e a autocomparação da Europa com as outras sociedades não ocidentais (o resto)”.

Construir a si mesmo como superior demandou, necessariamente, inventar o outro como inferior através de diversos dispositivos, como os livros.

Escrever era um exercício que, no século XIX, respondia à necessidade de ordenar e instaurar a lógica da “civilização” e que antecipava o sonho modernizador das elites criolas. A palavra escrita constrói leis e identidades nacionais, planeja programas modernizadores, organiza a compreensão do mundo em termos de inclusões e exclusões. Por isso o projeto fundacional da nação se leva a cabo mediante a implementação de instituições legitimadas pela letra (escolas, hospitais, oficinas, prisões) e de discursos hegemônicos (mapas, gramáticas, constituições, manuais, tratados de higiene) que regulamentam a conduta dos atores sociais, estabelecem fronteiras entre uns e outros e lhes transmitem a certeza de existir dentro ou fora dos limites definidos por essa legalidade escriturária. (Castro-Gómez, 2005, p. 81)

Dito isso, percebemos que a crítica dos viajantes ao extrativismo na região marajoara estava muito mais ligada aos efeitos da prática na sociedade. Primeiramente, ela criava uma tradição migratória da população, que se embrenhava nas florestas nos meses de verão para coletar o látex. Na ótica dos europeus, isso gerava uma ruralização dos indivíduos e entrave ao desenvolvimento das cidades do interior, bem como para a própria agricultura, pois os tomava dessa ocupação. Tudo isso caminhava na contramão dos ideais de ordem e civilização que guiavam o homem oitocentista (Batista, 2004).

Essa visão ganhava força quando os viajantes ancoravam em lugares como Gurupá e Breves e testemunhavam um estado de abandono, pois a maior parte da população estava nos seringais. O geólogo norte-americano Charles F. Hartt, em uma de suas viagens pela Amazônia em princípios da década de 1870, registra sobre Gurupá:

A vila é pequena, meio deserta desde que começou a aparecer a febre da extração da borracha, está em ruinas. É muito insalubre, predominando as febres, o que não é para admirar, visto como toda a vizinhança é pantanosa. Às vezes a localidade está inteiramente abandonada e o comandante do Jurupense me disse que, uma vez, achou só três pessoas na vila, estando uma d’elas a ponto de morrer de fome [...]. (Hartt, 1898, p. 179)

Para o viajante, homem que se via civilizado e prezava pela convivência em centros urbanos, bem como por interações sociais agenciadas, por exemplo, em festividades da igreja, pelo desenvolvimento material e um trabalho disciplinado e regrado através da agricultura, visualizar um quadro social “decadente” demonstra o mal que fazia o extrativismo.

Os cenários mais desoladores descritos pelos viajantes se desenrolavam nos meses de verão, ou seja, no período de coleta do látex. Nesses tempos, famílias inteiras migravam para as matas marajoaras, deixando as vilas desertas e as casas sem cuidados. Os homens e as mulheres das letras teceram severas críticas a essa “migração da borracha”, pois ela retardaria “a civilização mantendo os índios e as populações de meia raça longe das vilas e escolas” (Smith, 1879, p. 195).

Ferreira Penna, atento às consequências da migração na educação, comenta que as escolas

desde o começo até o fim do verão, fecham-se, e fechadas ficam até a entrada do inverno. Lá para fins de janeiro, os pais começam a regressar para a povoação trazendo consigo os filhos que muitos fazem logo matricular na escola. O professor ou professora faz a inscrição no livro de matrícula, abre-se as aulas e os discípulos as frequentam 3, 4 ou 5 meses.

No fim deste período, os pais que, na forma habitual, têm de preparar-se para a safra da borracha, vêm pedir dispensa dos filhos e filhas, estas para ajudarem a fazer a farinha, e aqueles para lhes ajudarem a ajuntar caroços de urucuri, necessários para a defumação da borracha. (Penna, 1971, p. 66-67)

Muitas dessas escolas, por falta de alunos, nem mesmo eram reabertas, pois foram extintas por políticos da época após a portaria de 1º de março de 1864, que regulamentava a instrução pública na província. O jornal O Liberal do Pará, em 2 de outubro de 1870, então, publicava carta em protesto contra o rebaixamento, para 3ª classe, das escolas masculinas de Soure, Breves e Portel, além da extinção das escolas masculinas de Gurupá e das femininas de Melgaço, Muaná, Breves, Curralinho e Gurupá.

Contraditoriamente, ainda que as vilas estivessem vazias, o aumento na demanda de borracha atraiu um grande número de seringueiros para a região, o que elevou a população de vilas como Breves de umas poucas centenas de pessoas em princípios do século XIX à somatória de mais de dez mil pessoas em meados da década de 1870 (Baena, 2004).

O aumento populacional levou a uma consequente competição pelos seringais, que começaram a ser buscados em áreas cada vez mais distantes. Nos primeiros anos foram explorados principalmente os seringais nos arredores de Belém e região das Ilhas – que incluía o arquipélago de Marajó –, e com o aumento da demanda internacional por látex, os sertões da Amazônia começaram a entrar na rota dos extrativistas (Weinstein, 1993).

O viajante francês Paul Marcoy é quem registra esse aumento na competição e suas consequências na região marajoara. De passagem pelos estreitos de Breves, ele relata ter encontrado alguns indígenas em um barco que estava encalhado na frente do seu. Eram coletores da borracha que estavam viajando por aquelas paragens na busca por árvores para sangrar, pois a concorrência em outras regiões estava muito alta.

Eles contaram que a concorrência havia a tal ponto prejudicado o seu negócio que eles não conseguiam sequer ganhar o necessário para matar a fome. A maioria deles sofria de uma fome crônica que durava anos [...].

A história daqueles seringueiros era a mesma de todos os trabalhadores daquele tipo, expulsos pela concorrência das ilhas do baixo Amazonas onde a borracha, ou seringa, é beneficiada para exportação em larga escala. A região de canais onde esses párias do trabalho haviam encontrado refúgio oferecia, porém, magras recompensas. Eles tinham que procurar muito até encontrar as árvores lactíferas e quando as encontravam tinham que fatigar muito para transformar seu produto em comida e roupa e para amortizar o custo dos seus barcos. Passados seis meses de trabalho e depois de despachar a borracha para Belém, eles regressavam à floresta tão pobres como haviam deixado. (Marcoy, 2006, p. 255)

Essa competição pelos seringais, aliada a um perverso sistema de aviamento, resultou em lucros cada vez mais diminutos aos seringueiros, que muitas vezes os levava à fome. Esse fato contrasta com o hábito extensivo de trabalho que era requerido nos seringais.

O naturalista norte americano Herbert Smith, em meados da década de 1870, comenta que a rotina do seringueiro inicia antes mesmo do sol nascer e esses homens e mulheres chegavam a passar longos períodos dentro da mata. Ainda assim, eram necessárias as coletas de dois ou três dias para se fazer somente uma grande “bola” de borracha12 para ser vendida nas casas de aviamento de Belém e região.


Figura 1 – Preparando a borracha. Fonte: Smith (1879, p. 85)



Cientes desse baixo rendimento da extração do látex, os seringueiros de Marajó jogavam com táticas comuns a seus universos, objetivando maior valorização da borracha fabricada, mesmo que por métodos ilícitos. Henry Pearson (1911) dá um grande exemplo das práticas adotadas por coletores para tentar aumentar o valor ganho, quando relata que era comum ter que se cortar as “bolas” de borracha ao meio nas casas de vendas em Belém e regiões, pois os coletores colocavam pedras, cordas e misturavam areia com a goma da borracha com intuito de aumentar o seu peso e, assim, receberem mais pelo produto.



Figura 2 – Tira colocada no meio das “bolas” de borracha para aumentar o peso. Fonte: Pearson (1911, p. 42)

Nesse cenário, o extrativismo, principalmente da borracha, é criticado e refutado por viajantes enquanto um modelo econômico, pois não traz benefícios sob nenhuma ótica; pelo contrário, levaria à mazela social.

Ademais, muitas vezes os seringueiros acabavam pagando com a própria saúde o preço pela coleta da borracha. A ida dessas pessoas para as matas e o consequente pouco acesso aos serviços de saúde levaram ao desenvolvimento de um quadro de emergência sanitária na região marajoara. John Hemming (2009, p. 350-351) pontua que a malária, febre amarela e tuberculose foram os grandes flagelos dos seringueiros – não curiosamente as duas primeiras são transmitidas por mosquitos presentes na região de florestas.

Ao retornarem às vilas após a coleta do látex, muitos marajoaras vinham assolados por doenças. Charles Hartt comenta que Breves é “edificada em um distrito pantanoso, exalando umidade, esta vila pouco tem que a recomende e desde 1869 e 1870 tem sido o foco de uma febre terrível que tem dizimado os habitantes da vizinhança” (Hartt, 1898, p. 174).

Da mesma forma, o periódico O Liberal do Pará, em sua edição de 10 de março de 1872, expõe o relato de um de seus correspondentes sobre a mesma localidade:

Apareceu novo flagelo em Breves. Há já alguma vítimas. Em um, rio limítrofe, bastante dizimado pelas febres anteriores, que subsistem inda hoje, faleceram quatorze pessoas de tão perigosa moléstia. O vulgo denominou-a – ENTORTA – e como tal é conhecida. A origem do batismo provem-lhe dos sintomas que a caracterizam. Quando ataca, o paciente estorce-se em convulsa agonia e expira.

Em trabalhos anteriores (Araújo; Sarraf-Pacheco, 2013; Araújo, 2021), mostramos que o arquipélago de Marajó viveu as ambiguidades da economia da borracha, pois foi ao mesmo tempo centro (de produção) e periferia (da modernidade). Mesmo sendo uma das principais regiões de exploração do látex, não viu suas riquezas serem traduzidas em melhoramentos estruturais. Pelo contrário, com a ascensão do extrativismo gomífero, as vilas viram seus espaços públicos e privados se deteriorarem, fato que na pena dos viajantes foi fator determinante para o estado patológico testemunhado entre as décadas de 1860 e 1870.

Ferreira Penna resume bem a reprovação ao modelo extrativista quando comenta que a região de florestas de Marajó “tem sido considerada o Eldorado dos seringueiros, cabendo-lhe muito melhor o nome de cemitério da indústria e civilização da província, pelo mal que faz à população o fabrico da borracha” (Penna, 1971, p. 34).

Até aqui, o quadro construído pelos viajantes é o de uma terra em flagelos, assolada pelas doenças, com vilas desertas e em ruínas. Todavia, mais do que construir a contraface da civilização, os estrangeiros também buscavam mostrar que, sob a jurisdição correta, a “ordem e o progresso” poderiam florescer. Assim, eventualmente emergem nos relatos alguns exemplos de conduta a serem seguidos no que tange ao trabalho e à propriedade privada.

Louis e Elizabeth Agassiz nos dão um desses exemplos em 1866, quando de passagem pelo canal Tajapuru (que conecta a foz ocidental do rio Amazonas à oriental):

Tajapuru. 3 de fevereiro – Chegamos ao Tajapuru na quinta-feira; aí ficamos dois dias por causa duma ligeira reparação a fazer nas máquinas. A localidade é muito interessante; tem-se aqui a prova do que podem fazer em pouco tempo, nessa região, o espírito empreendedor e a indústria. Um homem que aqui se estabeleça, se tiver gosto e bastante cultura para tal apreciar, pode-se rodear de quase tudo o que torna atraente a vida civilizada.

Há mais ou menos dezessete anos, o sr. Sepeda fixou-se neste lugar, então completamente selvagem. Tem hoje uma grande e encantadora casa de campo, com jardim na frente, e a floresta vizinha lhe proporciona belos passeios. O gosto e o bem-estar reinam em sua casa, e não tivemos, durante o tempo em que fomos seus hóspedes, senão um voto a formular: que o seu exemplo seja seguido, e que as casas como a sua se tornem menos raras às margens do Amazonas. (Agassiz; Agassiz, 2000, p. 355)

Os valores ocidentais de desenvolvimento material reaparecem no relato, bem como a própria capacidade de intervenção de mulheres e homens que transforma ambientes antes selvagens em um modelo civilizado de habitação e controle, cujo representante maior são os jardins, nada mais que a reprodução de um domínio e ordenação do humano sobre a natureza.

Dentre as atividades desenvolvidas no arquipélago, a indústria da pecuária, mantida principalmente na região de campos, se configurava como uma das poucas alinhadas com os valores defendidos pelos europeus, pois não só rendia grandes lucros, como também demandava a permanência do homem nas fazendas.

A existência das duas indústrias no arquipélago (gado e borracha), em duas regiões distintas (campos e florestas) gestou uma certa “geografia da civilidade”. Ferreira Penna é quem melhor expõe essa divisão quando assevera que

nas matas reinam febres intermitentes e um calor intenso. A população é fraca, doentia e pouco civilizada ao passo que nos campos os ventos correm livres, o clima é salubre, reina a alegria, a atividade, a energia e a robustez.

Esta diferença nas duas seções da Ilha exercia também nos tempos antigos quase a mesma influência no caráter, costumes e civilização dos gentios. É assim que os Aruans, habitantes e senhores dos campos, apresentaram sempre uma considerável superioridade sobre os Nheengaybas e outras tribos do mato ou selvagens. (Penna, 1977, p. 50)

A construção dessa realidade abissal, entretanto, não refletia mais uma vez as práticas adotadas em Marajó. Conforme já mencionamos, no século XIX a criação do gado sofre forte recessão, em parte devido à indústria da borracha, que se tornou o principal produto exportado da região, mas também por problemas da realidade local do arquipélago, que com frequência são acusados pela pena dos viajantes.

Antonio Baena (2004), por exemplo, pontua diversas causas para a queda na indústria da pecuária, como a predação natural de onças e jacarés, mas principalmente doenças e o próprio furto. No caso das doenças, vale destacar a popularmente chamada “quebra-bunda”,13 doença que surgiu a partir da matança indiscriminada de cavalos que competiam com o gado por pasto. Como relata José Coelho da Gama e Abreu, o barão de Marajó:

O resultado d’esta enorme matança, que subiu a muitas dezenas de milhares, foi que abandonados os corpos à simples ação do sol, ficou por tal maneira corrompida a atmosfera, que se tornou impossível a aproximação d’aquelas localidades. A este estado corrupto atribuem os habitantes da ilha ter aparecido ali uma moléstia que, atacando a raça cavalar, afetando os membros posteriores, os matava; a esta moléstia deram eles o nome de quebra-bunda, a qual ainda dura e tem acabado com o gado cavalar até o ponto de ser já insuficiente para o trabalho, impondo grandes sacrifícios aos fazendeiros que os mandavam vir de outros Estados. (Marajó, 1992, p. 309)

De igual maneira, a questão do roubo de gado era problema histórico na região. A prática é taxada como uma “endemia social” ou, como defendeu o então presidente da província do Pará, Jerônimo Coelho, em seu relatório de 1849, atingiu um ponto tão crítico que se torna uma verdadeira indústria.

O furto, todavia, não é algo relativo apenas a “vadios”, como são chamados pelos viajantes os ladrões, mas também é prática dos próprios fazendeiros. Joubert Pinheiro (2007) argumenta que existiam os “gebristas”, que eram aqueles que roubavam o gado para consumo, principalmente durante períodos de escassez de alimentos, mas paralelamente também tinham quadrilhas bem equipadas especializadas no roubo do gado, que eram financiadas pelos fazendeiros com objetivo de apoderar-se dos melhores animais para, assim, melhorar a malhada do seu gado.

Ferreira Penna produz uma extensa análise sobre essa questão nos campos marajoaras. Para ele o furto “é um hábito que tem passado inalteravelmente de tataravós a tataranetos, de geração a geração, e que tem tido a sanção de mais de um século. Em outros termos: o furto de gado em Marajó é um costume, e um costume tradicional” (Penna, 1971, p. 77). O autor expõe que a prática se dava por diversos fins: por costume, para criação, para aumentar o rebanho, para alimentação ou mesmo pela própria impunidade: “o ladrão de gado encontra toda a facilidade para cometer este crime; ele furta do mesmo modo que praticaria um ato lícito” (p. 79).

Nessa trama, os próprios pecuaristas reconheciam sua ação. Em conversa com fazendeiros da região, Ferreira Penna relata a fala de um deles:

“Qual é, meu colega, o fazendeiro de Marajó que não furta gado?”

O interrogado baixou os olhos e permaneceu mudo e como que aniquilado.

“Aí está! Observou o arguente aos circundantes: Nem ao menos o meu colega diz que sou eu esse fazendeiro, para que eu lhe retribua dizendo que é ele o outro que não furta!”

Este fato não é uma simples anedota; é um esboço fiel e característico, não direi do estado moral, mas do costume dos fazendeiros. (Penna, 1971, p. 80)

Esse cenário de roubo do gado é visto por Melo e Sarraf-Pacheco (2013, p. 19) como pertencente ao domínio cultural, em que “além do seu valor econômico, existe uma carga simbólica e mesmo afetiva no ato do roubo do gado”. Em resumo, é possível compreender a prática do furto ou roubo como elemento inerente daquela região, fato que quando associado à classe mais pobre, leva à censura e críticas severas nos relatos, mas quando ligado aos próprios fazendeiros ganha ares de “costume”.

Todos esses fatores combinados levaram a uma severa diminuição nas cifras do gado, fato concomitante à valorização da borracha no mercado internacional. As elites tradicionais pecuaristas e agricultoras de Marajó por muito tempo se recusaram a adotar o extrativismo como base econômica, olhando com severa desconfiança para o comércio do látex no período anterior ao surto.

Alguns anos mais tarde, entretanto, pecuaristas e agricultores cederam paulatinamente espaço e começaram a variar suas produções, mesclando suas antigas bases de produção com a extração da goma elástica (Cancela, 2006; Araújo; Sarraf-Pacheco, 2014). Essa mudança da posição da elite pecuária e agricultora de Marajó em relação à borracha se deu em vista dos vultosos lucros proporcionados pela nova indústria, que caminhavam na contramão da constante diminuição nos ganhos com o gado. Nesse sentido, aponta Sarraf-Pacheco que

em meados do século XIX, depois que cessaram os temores e tremores da cabanagem, alguns fazendeiros, procurando livrar-se dos problemas que atingiram a vida nos pastos (enchentes, secas, doenças, roubos, queda do preço da carne), migraram com seus braços de trabalho para prósperas regiões de verdejantes seringais no coração da região, especialmente em sua parte florestal. Salles assinala que esses proprietários rurais em pane com uma eminente ruína deixaram suas fazendas e partiram com seus “escravos e fâmulos para os seringais vizinhos”, pois a economia bovina não conseguia mais quitar um terço de suas dívidas mensais. (Sarraf-Pacheco, 2009, p. 302-303)

Como lembra ainda o historiador, foi nesse momento que diversas vilas, como Afuá e Anajás, por exemplo, floresceram. Mais ainda, a elite pecuarista buscou se unir parentalmente com a elite seringalista, formando uma espécie de “endogamia de classe” (Acevedo-Marin, 1985, p. 154). Os fazendeiros, já mais atentos e interessados nos vultosos lucros proporcionados pela borracha, buscaram formar oligarquias, através da união entre os seus descendentes e os da nova elite, objetivando aumentar suas posses de terra em Marajó. Luciana Marinho Batista esclarece que

logo em um momento de incremento do comércio paraense – muito em função da crescente produção e comercialização da borracha –, os setores ligados às atividades agrícolas e comerciais estivessem articulados entre si através de alianças parentais. Tais alianças não somente poderiam representar um instrumento para a manutenção da hierarquia social existente, mas, também, o acesso, para ambos os grupos, aos rendimentos que aquele ramo da economia local estava proporcionando. (Batista, 2004, p. 171)

Nesses termos, ainda que em seus livros e artigos os viajantes buscassem defender determinados valores, condutas e modelos econômicos para a região – que quando não seguidos se tornam exemplos de um suposto estado de indolência de populações locais –, a realidade que se desenrolava em Marajó era bem mais complexa.

Na visível diminuição de seus ganhos com a criação do gado, a elite pecuarista se volta para o extrativismo gomífero como saída para saldar seus débitos. O modelo econômico, tão criticado pelos viajantes, curiosamente era mantido em decorrência da alta demanda dos próprios países de origem dos expedicionários na Europa e América do Norte. O fato é que de uma forma ou de outra, independentemente do modelo econômico adotado, o que a literatura de viagem buscou foi fornecer meios e materiais para a manutenção do poder colonial.

Conclusão

Conforme buscamos mostrar, na pena dos viajantes o Marajó é construído como rico em natureza e recursos, mas sob a jurisdição incorreta, por isso se encontrava em estado moral de indolência e barbárie. A métrica eurocêntrica e classificatória do outro e seus modos de ser, viver, trabalhar, festejar e morrer tiveram nos livros de viagem um dos mais poderosos mecanismos de representação da região.

Na primeira metade do século XIX, o olhar mercantilista que emergia da pena dos viajantes se mostrou crítico ao modelo de exploração adotado no arquipélago. Para os naturalistas, a agricultura e a pecuária seriam as atividades mais adequadas ao homem civilizado, pois permitiam a fixação e o desenvolvimento da propriedade privada. Todavia, as populações amazônicas se dedicavam a outras ocupações – como o extrativismo e a produção cerâmica – que não necessariamente prezavam pelo estabelecimento sedentário à terra.

A desarmonia entre a realidade idealizada e a vivida vai resultar na construção da região marajoara como indolente e, por isso, necessitada da exploração racional oferecida pelo homem branco. É nesses termos que os livros de viagem, ao construírem um cenário decadente, foram poderosas ferramentas que auxiliaram na produção de políticas e códigos de conduta, além de darem as justificativas para a manutenção do domínio colonial.

As populações marajoaras, por seu turno, não foram passivas a esse processo, mas atuaram com mecanismos comuns ao seu universo como táticas de resistência. Se na ótica dos viajantes o extrativismo e a produção cerâmica eram representativos de um estado de decadência moral, para os habitantes locais essas ocupações eram formas criativas de agenciarem suas vidas e destinos e não sucumbirem à escravidão.

Já na segunda metade do oitocentos, a emergência da borracha no cenário econômico regional aguçou ainda mais os embates de percepção. O extrativismo gomífero levou famílias inteiras aos seringais, deixando vilas e cidades marajoaras desertas por longos seis meses. Transitar por aquelas paragens e se deparar com seu estado de abandono traduziu-se em críticas ainda mais severas por parte dos naturalistas, pois viam ali a materialização do mal que o “ouro negro” trazia à civilização.

Contraditoriamente, ainda que o modelo extrativista tenha sido fortemente criticado, foi ele quem financiou as reformas de grandes centros urbanos – como Belém e Manaus, que se modernizaram seguindo o modelo francês –, enquanto o Marajó, ainda que região central na produção da borracha, viu suas vilas ruírem.

De igual maneira, os grandes pecuaristas do arquipélago, muitas vezes tomados como exemplos de conduta nos livros de viagem, ao verem suas receitas diminuírem ante a emergência da borracha, se mudaram para a região de florestas e adotaram o modelo que garantia maiores lucros.

Ficou evidente, assim, a ambiguidade entre a realidade relatada e aquela vivenciada na Amazônia: por um lado o modelo extrativista foi fortemente criticado e refutado pelos naturalistas como sistema econômico para a região, por outro, era ele quem garantia o estilo de vida “civilizado” – e prezado por esses mesmos naturalistas – dos barões da borracha nos grandes centros urbanos.

Na esteira dessas ambiguidades, emergiram ainda exemplos que nos permitiram ver como elementos similares ganhavam significados distintos quando associados a diferentes grupos. O hábito de deixar a porta aberta é, quando feito pelo homem branco, símbolo de confiança na civilidade da sociedade europeia, mas quando é praticado pelo indígena, é representativo de um desleixo e pouco caso com as coisas materiais. De igual maneira, a rede de dormir é, para o viajante, um instrumento da expedição científica, já quando na casa do indígena, é símbolo de indolência e ócio. O que fica claro, nesses termos, é que são menos as práticas ou objetos em si que irão definir a civilidade de um povo e mais as pessoas às quais eles estão associados.

Os livros de viagem foram importantes ferramentas na construção da imagem do Marajó e suas gentes. Ainda que essa literatura tenha sido produzida há mais de cem anos, suas influências ainda são sentidas no tempo presente. Stuart Hall (2016) argumenta que se quisermos entender grande parte das noções que temos sobre conceitos como família, trabalho, propriedade, gênero e raça devemos retornar ao século XIX, pois lá se encontra a semente dos entendimentos.

Ainda hoje, minisséries, discursos, programas de TV e textos jornalísticos reforçam representações de um passado construído pela lente dos viajantes acerca da fauna, da flora e das populações marajoaras, como se habitassem um eterno presente. Elas demonstram a forma como imagens e percepções inventadas em tempos distantes não desaparecem tão facilmente, recriam-se conforme circunstâncias, interesses e jogos do poder, repetindo o senso comum (Hall, 2016).

O projeto moderno/colonial oitocentista de construção de um modelo de sociedade ensejada pelo poder instituído – científico, político, econômico – se ancorou em diversos mecanismos do mundo real, como os museus e a literatura. Estudar tais mecanismos nos abre a possibilidade de compreender não só o pretérito, mas também aspectos geracionais de problemas sociais que assolam a sociedade atualmente.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - código de financiamento 001.

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Recebido em 28/2/2023

Aprovado em 17/5/2023


Notas

3 Disponível em: https://bdm.ufpa.br:8443/jspui/handle/prefix/2202. Acesso em: 6 set. 2023.

4 Para Sarraf-Pacheco (2009) o termo “Ilha de Marajó” se mostra limitado para pensar, estudar e compreender a complexidade da história e das relações socioeconômicas e geoculturais dos 17 municípios que conformam o maior arquipélago fluviomarinho do mundo. O referido termo alcança apenas 12 municípios (Soure, Salvaterra, Cachoeira do Arari, Santa Cruz do Arari, Muaná, Ponta de Pedra, São Sebastião da Boa Vista, Curralinho, Breves, Anajás, Afuá e Chaves), deixando nas margens aqueles que, para além da dimensão geográfica, tiveram suas trajetórias interconectadas e, portanto, se assumem como municípios marajoaras, a exemplo de Melgaço, Bagre, Portel e, recentemente, Oeiras do Pará, que voltou a ser incorporado à grande Amazônia Marajoara. Assim, os pesquisadores preferem utilizar termos como “Arquipélago de Marajó”, “Amazônia Marajoara”, “Marajós”, “Marajó dos Campos” (norte e nordeste do arquipélago) e “Marajó das Florestas” (leste e sul), buscando desvelar paisagens, tradições, saberes, fazeres e movimentos históricos urdidos em relações e diferenças por dentro e pelas margens da região.

5 Em tradução livre: “Estes senhores são zelosos no progresso e cultivo de sua imensa propriedade, e derivam grandes lucros a partir do lucrativo comércio em que estão envolvidos, abastecendo o mercado de carne do Pará, e até mesmo transportando gado para Cayenne e Demerara”.

6 Em trabalhos anteriores debatemos mais profundamente a questão racial, vide Araújo (2017; 2021).

7 Em tradução livre: “até recentemente, a escassez da população e essa abundância transbordante de seus recursos impediram o desenvolvimento de sua agricultura, pela indolência que a facilidade de obter sustento induzia os camponeses”.

8 Em tradução livre: “Os nativos (tapuios), como são chamados aqui aquela estranha mistura de sangue branco e índio, que ocupam uma posição duvidosa em algum lugar entre o proprietário e o escravo, parecem tão satisfeitos com sua cabana de barro e canoa que não podem ser persuadidos ao trabalho duro pela oferta de altos salários. Eles preferem se limitar a um par de calças de algodão grosso, tingidas de vermelho tijolo por alguma casca nativa, e a uma dieta de peixes e farinha, muitas vezes até a falta disso, em vez de trabalhar por algo melhor. Quando pegam um peixe, eles banqueteiam à maneira comum dos índios até que acabe, se balançando nas redes tocando seu violão e então partem em suas canoas sem um pedaço para comer e talvez passem um ou dois dias jejuando antes de encontrar outro. O fato é que o índio é triunfante nesta parte do Brasil, imprimindo seus costumes e modos de vida aos brancos e negros.

9 Em tradução livre: “Em uma das casas, uma velha índia estava pintando objetos cerâmicos, que são pratos e o que ela chamou de “pombos” e “galos”, ou pombos e galos, tendo uma ligeira semelhança com aquelas aves. Outra estava pintando bilhas, ou pequenas jarras de água, de argila branca e artesanato bonito. Ela prometeu vitrificar qualquer coisa que quisesse pintar, dando-me o uso de suas cores. Então eu escolhi um par das mais belas bilhas, e, após uma consulta sobre a jangada, concluímos comemorar nossas viagens através de um esboço do galliota”.

10 O ano de publicação da primeira edição do livro Le pays des Amazones..., do barão de Santa-Anna Nery, foi 1885. Neste trabalho estamos utilizando a edição de 1899.

11 Em tradução livre: “Breves parece hoje uma vila pobre em decadência. Antigamente, os naturais da região se dedicavam a uma indústria bastante lucrativa e muito curiosa: suas cerâmicas, de formas e ornamentações muito originais, eram estimadas por todos os amadores, e a civilização não ensinou nada, a respeito da cerâmica, para esses trabalhadores habilidosos que, pelo contrário, não conseguem mais fazer vasos tão perfeitos quanto os que fabricavam antigamente”.

12 O látex coletado pelos seringueiros era defumado em processo demorado, cujo resultado eram grandes bolas negras de borracha que eram encaminhadas para Belém para serem vendidas e exportadas.

13 Segundo Lisboa (2012, p. 110), a doença seria a tripanossomíase equina, cuja característica principal é a fraqueza nos membros traseiros dos cavalos. O caso do “quebra-bunda” em Marajó foi levado para círculos de debates internacionais, como a Zoological Society of Paris, bem como passou a figurar nos livros sobre a origem e prevenção de patologias, a exemplo da obra de George Fleming, Animal plague: their history, nature, and prevention (1882).


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