Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 3, set./dez. 2023

O arquivo como objeto: cultura escrita, poder e memória | Dossiê temático

“O excesso de palavras”

Arquivos, representação e historiografia no pensamento estético de Jacques Rancière

"The excess of words”: archives, representation and historiography in the aesthetic thought of Jacques Rancière / “El exceso de palabras”: archivos, representación e historiografía en el pensamiento estético de Jacques Rancière

Rodrigo Fortes Avila

Doutor em Ciências da Informação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor do Instituto de Ciências da Informação da UFBA, Brasil.

rodfortes@gmail.com

Pedro Augusto Franceschini

Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Brasil.

pedro.franceschini@ufba.br

RESUMO

O artigo retoma as noções de regimes “representativo” e “estético”, de Jacques Rancière, para pensar o momento moderno de profusão de documentos e sua multiplicidade de vozes, sintetizadas na noção do “excesso de palavras”. A hipótese é que esse recurso estético permite esclarecer uma nova tessitura da memória social, onde política, estética e historiografia se entrelaçam, apontando para uma reconfiguração do estatuto representacional dos arquivos como acontecimento e outras possibilidades de sua mobilização.

Palavras-chave: arquivos; representações; regime representativo; regime estético.

ABSTRACT

The article takes up Jacques Rancière’s notions of “representative” and “aesthetic” regimes to consider the modern moment of document profusion and their multiplicity of voices, synthesized under the notion of an “excess of words”. The hypothesis is that his aesthetic resource allows for a clarification of a new contexture of social memory, where politics, aesthetics and historiography intertwine, pointing to a reconfiguration of the representational status of archives as an event and other possibilities for their mobilization.

Keywords: archives; representations; representative regime; aesthetic regime.

RESUMEN

El artículo retoma las nociones de régimen “representativo” y “estético” de Jacques Rancière para pensar en el momento moderno de proliferación de documentos y su multiplicidad de voces, sintetizadas en la noción de un “exceso de palabras”. La hipótesis es que este recurso estético permite aclarar un nuevo tejido de memoria social, donde se entrecruzan política, estética e historiografía, apuntando a una reconfiguración del status representativo de los archivos como un acontecimiento y otras posibilidades de su movilización.

Palabras clave: archivos; representaciones; régimen representativo; régimen estético.

O homem é um animal político porque é um animal literário, que se
deixa desviar de sua destinação “natural” pelo poder das palavras

Jacques Rancière (2005, p. 59)

Introdução

Enquanto guia que orienta um sistema de percepção dos arquivos, o conceito de representação nos impele a tatear as bases epistemológicas de sua construção moderna, propondo um encontro com a filosofia. Foram as conexões entre records e representations, operadas pelo britânico Geoffrey Yeo (2007; 2008a; 2008b), que abriram as frestas para se vislumbrar tal senda investigativa. Assumindo os arquivos como “representações persistentes” (Yeo, 2007), pode-se dizer que tais acervos se veem diante da exigência salutar de resguardar fundamentos representativos que possam garantir a efetividade da memória coletiva. Atualmente, os arquivos se esforçam na busca por ferramentais metodológicos que permitam “emoldurar” fatos condizentes às pluralidades sociais. São os seus valores culturais que interessam a posteriori, harmonizando-se aos valores secundários,1 que conferem as bases factuais, permitindo examinar retrospectivamente as atividades sociais. Inserem-se aqui os requisitos evidenciais2 – probatórios3 e informativos4 – que possibilitam investigar seus atos de gênese (Schellenberg, 1956). Nesse sentido, a natureza desses acervos ostenta uma duplicidade inescapável: por um lado, eles ativam a capacidade de expressão das demandas que elucidam sua origem produtiva; por outro, operam uma historicidade contingente. Ambas as dimensões colocam diante de si o problema da representação às futuras gerações.

Com efeito, a ideia que sustenta as qualidades representativas na modernidade arquivística enfrenta uma série de julgamentos. Isso ocorre em dois sentidos: no argumento de que elas tornariam factíveis realidades antes questionáveis ou que fariam crer na reprodução crível de realidades inacessíveis. O primeiro presume o abandono de certa “ingenuidade arqueológica”, potencializando a noção dos conjuntos arquivísticos como depósitos não inocentes, que não se interessariam mais por menosprezar sua intencionalidade antes presumível.5 Aqui se questiona mais a artificialidade da representação do que a sua objetividade aparente. Esse olhar investiga como certo controle operativo de uma perspectiva de imparcialidade pode cancelar os variados e múltiplos encaminhamentos que um fenômeno pode nos oferecer. Já a segunda perspectiva subentende as representações como perigosas e/ou prejudiciais, ao emplacarem uma visão única na ordenação dos fatos, em que a novidade pode ser sufocada.6 Os dois olhares se veem diante de um pressentimento irredutível: o da força da presença “nua” dos acontecimentos que um arquivo pode provocar, diluída na estranha sensação de impotência de decifrá-lo a partir da suposta restituição de um tempo já transcorrido.

Em geral, essas críticas são vinculadas ao exame da própria crise da representatividade, questionando os poderes implicados nas decisões sobre o que pode ou não ser representado.7 E mesmo que não se adotem imediatamente tais críticas – reunidas sob a rubrica do “pós-modernismo” (Yeo, 2007, p. 316) –, o ponto é que o sistema de pensamento que constitui a arquivística encontra eco em uma noção de representação mais ampla do pensamento ocidental, baseada em um ordenamento estável e consensual entre a apresentação sensível dos fatos (as “coisas”) e a designação e interpretação de seu sentido (as “palavras”), estruturando a própria possibilidade de se harmonizarem indícios a partir de uma cadeia sucessiva de acontecimentos.

Pode-se pensar, todavia, que, em fins do século XVIII e início do século XIX, essa “visão integrativa”, capaz de formar certa totalidade orientadora dos ordenamentos estáveis que até então regulavam a escrita da história,8 assiste ao embaralhamento das intrincadas relações do tempo e dos fatos com as palavras e, consequentemente, com o que se assume como verdadeiro a partir de sua possibilidade de ser representado. A proliferação dos discursos no período moderno, aparente na materialidade do crescente afluxo de registros de novos sujeitos e agentes, desestabilizaria a univocidade dessas conexões, gerando um novo regime de produção de sentido, cujas implicações confundem os campos da historiografia, da política e mesmo da estética.

É no encontro, ou melhor, na suspensão dessas fronteiras que o pensamento do filósofo Jacques Rancière oferece uma notável contribuição para repensarmos as mudanças no paradigma da representação e a correspondente natureza do trabalho com as fontes. Bastante presente no debate estético contemporâneo, o pensador francês se notabilizou nessas últimas décadas por uma reflexão sobre as inúmeras mudanças no estatuto da representação artística na modernidade, em especial a partir do que veio a chamar de “revolução estética” (Rancière, 2005, p. 39; 2011a), como caracteriza as modificações modernas desses vínculos que estruturavam a noção de representação dominante e que coincide com esse crescimento vertiginoso dos registros vindos de onde se julgava não haver voz – o “excesso de palavras” (Rancière, 2014, p. 37). Esse pensamento, como gostaríamos de mostrar, cristaliza-se em sua formulação dos “regimes das artes”, por meio dos quais procura compreender como o que entendemos por arte se constitui por modos distintos de “articulação entre maneiras de fazer, formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos de pensabilidade de suas relações, implicando uma determinada ideia da efetividade do pensamento” (Rancière, 2005, p. 13). Dessa forma, as mudanças no sistema dos vínculos que sustentam a representação serão entendidas sobretudo a partir da passagem do que o filósofo chama de “regime representativo” para o “regime estético”.9

Pois, mais do que assunto estritamente “artístico”, trata-se de explorar naquilo que se identifica como arte, e que muda através dos tempos, os vínculos entre pensamento, linguagem e mundo que, por um lado, vertebram os protocolos discursivos das ciências humanas e, por outro, estruturam certo campo de visibilidade, distribuindo a participação de sujeitos e ocupações em um tecido sensível comum. Essas perspectivas complementares, por assim dizer epistemológica e política, unidas por uma “estética” em sentido muito mais amplo,10 remetem aos trabalhos anteriores de Rancière, confluindo em sua preocupação com a historiografia. Efetivamente, suas temáticas aí pareceriam, a um olhar apressado, passar longe das discussões sobre o cinema e a literatura que o celebrizaram mais recentemente; era, contudo, já essa ocupação dupla que impulsionava uma obra seminal como Os nomes da história, de 1992.

Em seu tratamento das mudanças na feitura da história, o pensador conjuga a análise dos sistemas de representação que amparam os discursos da historiografia com a tentativa de dar visibilidade e voz aos novos grupos que assim surgem em meio às revoluções modernas. E é precisamente uma certa estética que permite tal conjunção: seguindo a suspensão da rígida separação entre a lógica dos fatos e a lógica da ficção que acompanha invenções artísticas modernas como o romance realista, a ciência histórica também descobrirá uma nova “poética”, ao mesmo tempo que é na proliferação dos novos registros que subjetivações desafiadoras das hierarquias sociais estabelecidas surgirão, ensaiando reconfigurações do regime de visibilidade dominante.

É por esse prisma da estética, tal qual entendida por Rancière a partir dos dois regimes – representativo e estético –, que propomos percorrer um caminho retrospectivo, lançando nova luz sobre o entrelaçamento de antigas questões do autor que, por fim, permitem explorar conexões entre a memória social e as representações arquivísticas. Ao que parece, a relação entre estas geralmente corresponde à clássica divisão entre o oferecimento de “dados” ou “fatos” e a imposição racional de um sentido, principalmente narrativo, que lhes confere inteligibilidade, atestando sua validade como fonte. Tal sistema de produção de sentido pode ser lido mediante o “regime representativo”, que Rancière remonta à Poética de Aristóteles (2017), como será discutido na primeira parte deste artigo. Base de certa historiografia dos acontecimentos envolvendo os grandes personagens, essa lógica se estende de algum modo na história centrada na autoridade real e em suas fontes autorizadas. Trata-se, portanto, do fundamento de um dos usos dos arquivos, a partir de seu estatuto representativo, tratado na segunda seção com o apoio das considerações de Yeo.

Entretanto, as próprias ambivalências e as polissemias que os arquivos, a partir de sua potencialidade representativa, podem oferecer à leitura historiográfica fazem-nos retornar, na terceira parte, a Rancière e suas ponderações sobre o “regime estético”. Caracterizado pela suspensão das hierarquias e ordenações do sistema representativo, o resultado mais evidente dessa novidade parece se mostrar nas mudanças dos paradigmas artísticos. Superando as divisões dos gêneros, seus temas específicos e outras prescrições da tradição poético-retórica, a arte se volta agora para a potência da linguagem, liberta do mero ofício de mediação representacional, simultaneamente dissolvendo a distinção entre objetos estéticos dignos ou não em um reconhecimento de signos em todas as materialidades.

Para além das consequências aparentemente “apenas” artísticas, trata-se, para Rancière, de uma verdadeira revolução política do tecido sensível e das práticas de escrita, que suspende a ordem estável entre as palavras e coisas, ou seja, aquilo que determina o lugar correto e conveniente dos elementos, instaurando novas possibilidades de produção de sentido – um excesso também das palavras. Não por acaso, o “regime estético” acompanha um período de surgimento de movimentos igualitários e democráticos, cuja reivindicação por visibilidade de novos atores políticos adentrará a escrita da “nova história” e o seu deslocamento de enfoque às massas como agentes históricos que reivindicam seu lugar na multiplicidade de discursos, passando a se “misturar” entre as fontes consideradas legítimas.

Não se depreendem disso duas arquivísticas próprias a cada um dos regimes de Jacques Rancière. Muito menos se sugere que a lógica de funcionamento dos conjuntos arquivísticos passe a incorporar de maneira plena esse “excesso de palavras”. Como expõem as considerações finais, o que se coloca em jogo com esse percurso concentrado em questões estéticas é o desafio à própria noção de representação e ao uso dos arquivos como mero testemunho de fatos a serem interpretados pelo historiador dentro de certo contexto de atestação positiva.

Se, por um lado, à luz do “regime estético”, o discurso histórico “cientificizado” revela conter um significado inventivo, como o do poeta, uma vez que o que ambos fazem é arranjar materialidades significantes por si mesmas, por outro, os próprios registros informativos se tornam acontecimentos, não representativos de algo já dado ou de grupos sociais previamente definidos, mas cena que performa vozes e visibilidades que disputam a história oficial e seus lugares naturalizados. Consequentemente, longe de renegar a representação arquivística, as considerações estéticas de Rancière nos propõem uma outra percepção dos conjuntos arquivísticos e do “excesso de palavras”, lançando-nos de volta ao núcleo mesmo dos primeiros trabalhos do filósofo, como A noite dos operários (Rancière, 1988), em que o intenso envolvimento com as fontes não procurava interpretar documentos representativos de um movimento de classe ou de contextos políticos específicos, mas, mediante uma mobilização também estética, recolher vozes que disputam novas subjetivações.

Os regimes das artes e a representação

Central em sua ocupação com a estética, o conceito de “regime das artes” de Jacques Rancière surge pela primeira vez em A partilha do sensível, de 2000, e torna-se então um operador importante para várias de suas discussões em torno das mudanças nas práticas e representações artísticas, principalmente com as rupturas usualmente associadas à arte moderna em contraste com paradigmas anteriores. Reinserindo historicidade nas considerações artísticas, o termo designa, prima facie, os modos segundo os quais identificamos – ou não – a arte em diferentes práticas e contextos discursivos, sociais e mesmo perceptivos, que mudam e são disputados ao longo do tempo.11 Como se percebe rapidamente, todavia, a questão ultrapassa, para o autor, o escopo estreito do que entenderíamos habitualmente por um assunto meramente “estético”: por um lado, tais regimes se associam às formas pelas quais representamos e experimentamos o mundo, dialogando assim com a estruturação dos saberes, por outro, são tributários de uma dimensão política, já do ponto de vista da visibilidade, que distribui e designa espaços, corpos e ocupações em um tecido sensível comum, justamente o que designa como “partilha do sensível” (Rancière, 2005, p. 15).12

Ou seja, Rancière não está interessado estritamente em uma teoria da arte ou em uma análise de seus efeitos sobre a sensibilidade subjetiva – usuais atribuições da estética como disciplina. Na realidade, ele encontra aí um sentido muito mais essencial, um núcleo no qual se indiferenciam e se desdobram igualmente questões que tocam os discursos das ciências humanas e dizem respeito às disputas políticas, revelando que as “concepções do que são e alcançam as representações artísticas ocorrem no interior de uma compreensão mais ampla da sociedade” (Deranty, 2010, p. 117, tradução nossa). Logo, o interesse cada vez maior do filósofo pelas artes pode ser também explicado pelo fato de frequentemente aí se anteciparem, mobilizarem e radicalizarem todos esses traços, por assim dizer, epistemológicos, políticos e estéticos, no nó que lhes é próprio, sedimentando e esclarecendo muito do que Rancière já vinha trabalhando nas décadas anteriores sobre a historiografia e os movimentos igualitários. Por essa razão, partindo do enquadramento dos “regimes das artes”, pode-se retornar com mais clareza ao enlace dessas diferentes perspectivas em suas discussões sobre a representação que já despontavam em obras anteriores.

Rigorosamente um conceito da filosofia moderna, a noção clássica de representação, enquanto imagem que corresponde adequadamente a uma realidade objetiva, torna-se para Rancière (2005; 2012) a denominação de um sistema mais amplo, o “regime representativo”, cujo documento mais significativo ele localiza na Poética de Aristóteles, associada a uma recepção conjunta com a Retórica. Como se sabe, a discussão aristotélica sobre a mímesis –literalmente traduzida por imitação13 é considerada um marco filosófico da reflexão sobre as artes, ao garantir, contra as invectivas platônicas, um sentido racional ao fazer do poeta. Numa das mais célebres passagens da obra, o filósofo grego chegava a aproximar a poesia da filosofia, contrastando-a com a história, uma vez “que a tarefa do poeta não é a de dizer o que de fato ocorreu, mas o que é possível e poderia ter ocorrido segundo a verossimilhança ou a necessidade” (Aristóteles, 2017, p. 95). Se o discurso do historiador estaria, no fundo, limitado à mudez de personagens e eventos particulares que meramente se sucedem no tempo, na desordem empírica o poeta lhes imprime sentido e eloquência, ao dispô-los em um nexo causal centrado em ações ordenadas pelas regras universais da verossimilhança e necessidade, alçando seus personagens a representantes que falam da e à universalidade humana.

Essa reconfiguração aristotélica da mímesis, que a dissocia da mentira acusada por Platão e a transforma em ficção racional, é, para Rancière (2010b), o núcleo em torno do qual se associam, no regime representativo, outros princípios, facilmente identificáveis na poética da tragédia e na retórica clássica: o princípio dos gêneros, segundo o qual cada objeto demandará um modo correspondente de representação; muito próximo a ele, a noção retórica de conveniência, que estabelece a observância de regras quanto à linguagem e quanto ao que pode ou não ser representado, a depender de quem fala, do seu objeto e a quem se dirige; por fim, o que chama de “princípio de atualidade” (2010b, p. 25, tradução nossa), que diz respeito à eficácia e performance do discurso, do privilégio da palavra em ação como aquela que doa sentido, o que não apenas nos conecta com a centralidade da ação como aquilo que é representável, mas sua conexão com aqueles que de fato têm uma voz com poder, que ordenam, comandam e “sabem falar”, e que, portanto, se tornam representativos: os deuses, reis, heróis e suas repaginações ao longo do tempo.

Como fica evidente a partir do último ponto, ao falar do regime representativo não estamos apenas a tratar de normas poético-retóricas isoladas, que teriam constituído certa tradição das belas-artes e letras do Ocidente, mas que, como diz Rancière (2005, p. 32), “entram em analogia com toda uma visão hierárquica da comunidade”. Da mesma forma que o regime representativo estabelece hierarquias e regulagens, como a “dependência do visível em relação à palavra” (Ranciére, 2012, p. 123) e a primazia da ação na representação dramática, encontramos uma divisão do espaço comum entre aqueles que pensam e aqueles que trabalham, as artes liberais e as artes mecânicas, os que mandam e os que obedecem e, em última instância, entre os que são visíveis e têm voz e os invisíveis e mudos. Seria um engano, todavia, observar aqui o estético ou artístico como um mero epifenômeno do social. Antes, como é próprio ao filósofo, é preciso tomar ambas as dimensões como variações dessa estética-política mais profunda, que recorta e distribui no tecido sensível visibilidades e determina um regime de produção de sentido. Como afirma Brito Junior (2018, p. 400):

Representar não significa apenas “pôr em palavras” – “pintar com as palavras” (ut pictura poiesis) do adágio horaciano –, ou seja, trazer ao discurso literário aquela porção do real que está ali, ao alcance da pena, mas sim fazer sobressair, no comum da vida e dos corpos, aqueles elementos, sujeitos e relações que já estão devidamente recortados, permitindo, assim, a sua elaboração poética.

Por conseguinte, tal regime não corresponde ao exame tendencioso do senso comum, que compreende a noção mimética como imitação, isto é, que procura analisar a funcionalidade, seja da arte, seja da representação em geral, mediante a tarefa de produzir semelhanças ao real. Efetivamente, o que está em questão, e mesmo o que viabiliza esse jogo de semelhanças, são princípios normativos que codificam e distribuem as coisas, sujeitos e ocupações em seus lugares corretos, permitindo a possibilidade de verificar a adequação da representação artística, ou do discurso como um todo, a seu objeto, produzindo um consenso sobre o real e sua representação. Essa teia de normas e hierarquias, onde política e estética se determinam mutuamente, produz então um acordo estável entre os modos de apresentação das coisas e sua inteligibilidade, em que, como se depreende, há evidentemente privilégios sobre as palavras, ou melhor, palavras privilegiadas, capazes de atestar as coisas “corretamente”, e uma ordenação de sua circulação de acordo com seus emissores, destinatários e objetos.

Se a mímesis é assim entendida como norma que opera a representação no interior desse “conjunto de relações entre maneiras de fazer, modos da palavra, formas de visibilidade e protocolos de inteligibilidade” (Rancière, 2012, p. 84), observamos que seu interesse e suas consequências não se limitam à constituição de um espaço e de um discurso para as artes que foi dominante na história ocidental. Pois, essencialmente, produz-se um paradigma de racionalidade e discursividade que será mobilizado por outros campos e métodos de saberes; mesmo que sua origem “criativa”, “ficcional”, “artística”, tenha de ser constantemente recalcada em vista da afirmação da objetividade científica. Não se trata, obviamente, de estetizar ou reduzir todo discurso científico à arte, já pelo fato, como vimos, de que aquilo que se identifica como arte nunca está dissociado desses outros enlaces entre palavras e visibilidades. Reconhece-se, todavia, certa provocação de Rancière à ingenuidade positivista de certas noções de método e objetividade que ignoram a dependência das ciências a recursos, ainda que apenas discursivos, que inevitavelmente mantém um parentesco com práticas criativas e artísticas, uma vez que as ciências necessitam de uma “poética do saber” – para empregar a bela fórmula do autor que dá o subtítulo à sua obra sobre historiografia, Os nomes da história.14

Ora, assumindo esse quadro, não surpreende que a própria história ver-se-á, em alguma medida, impelida a incorporar a poética da representação se quiser se assumir como um saber, quase como se respondesse à acusação aristotélica e ao mesmo tempo lhe desse razão. Se em seu sentido comum a história permanece presa à sua definição como “uma série de acontecimentos que se passam com sujeitos geralmente denominados por nomes próprios” (Rancière, 2014, p. 1) – o que Aristóteles indicava ao limitá-la ao meramente particular e o que de fato determinou a natureza das primeiras crônicas –, já alguém como Políbio, em suas Histórias, substituía a simples sucessão de um acontecimento após o outro pela manifestação ordenada de “uma totalidade significante” (Rancière, 2011b, p. 27), fazendo da expansão romana não obra do acaso, e sim resultado de um processo necessário. Os personagens são mais do que nomes próprios particulares, e sim grandes atores históricos, representativos do gênero humano, motivo de registro por se tornarem exemplares para a posteridade. Para Rancière (2011b, p. 27), desde aí se mostrava que “a promoção da história como discurso verdadeiro passa pela sua capacidade de tornar-se semelhante à poesia, de imitar por sua própria conta a potência da generalidade poética”.

Esse modelo de historiografia, centrada no encadeamento narrativo e causal dos eventos importantes e dos grandes sujeitos, continua em grande medida dominante até a entrada da modernidade, consolidada no que Rancière (2014, p. 33) chama de modelo do “real-empirismo”:15 história dos reis, ou das personalidades estatais que assumem o lugar da autoridade real, contada a partir de documentos oficiais e das fontes reconhecidas como confiáveis, permitindo uma atestação fidedigna da correspondência aos fatos. A prevalência do sistema representativo se mostra em vários níveis: em sua acepção mais básica, mantém-se o esquema aristotélico da produção de sentido como a doação intelectual de forma à matéria, operada pelo intelectual, mas com isso também se reconhece sua participação naquele ordenamento que regula uma relação estável entre as palavras e as coisas, no qual, como vimos, não estão ausentes sujeitos e vozes privilegiadas, tanto na atestação dos fatos quanto na destinação dessas mesmas palavras.

Essa estrutura se torna especialmente significativa para pensarmos um certo uso dos arquivos, que reconhecerá no próprio aparelho real-estatal a produção dos documentos autorizados para contar essa história. Pois, afinal, tal sistema da representação camufla com essa estabilidade algumas tensões e contradições inerentes. Por um lado, há uma interdependência do “visível” com a palavra, uma vez que é esta última que possibilita “ver algo”, impondo determinada ordem no caos circundante. Por outro, ela sublinha a manifestação desse “algo” exaurido em si mesmo por sua presença. É nesse sentido que a representação sistematiza um jogo ambíguo: se a palavra faz ver, nomeando, sua efetividade ocorre diante da ausência que ela tenta apontar. Em outros termos, a palavra permite “ver” ao mesmo tempo que não apresenta o que “se vê” de forma genuína. Isso significa que ela potencializa a presença, mesmo mascarando a ausência num “compromisso tácito entre o fazer ver e o não fazer ver da palavra” (Rancière, 2012, p. 124).

A representação arquivística e seus impasses

Vemo-nos, assim, conduzidos à ideia de representação arquivística, que coloca a capacidade de um documento representar algo supondo, evidentemente, certo nível de correspondência com o representado. É em Geoffrey Yeo (2008b) que se indicam as possibilidades de aferição dessa passagem: (a) como substituta do original; (b) como abertura a grupos ou indivíduos, atrelando-se à justiça social; (c) como forma de descrever tanto um processo quanto um produto. Nas três ocasiões, a representação considera seus vestígios a partir da “qualidade” de fornecer um espelho futuro das decisões presentes.

Podendo ser iluminado pelo regime representativo anteriormente elucidado, a investigação acerca da natureza dos acervos arquivísticos provoca a tensão natural entre a “imitação” e sua função originária. Se, por um lado, eles são resquícios “naturais” das ações cotidianas de seus produtores, por outro, indicam a habilidade de refletir a ocorrência de um fato. Nessas duas ocasiões, a ideia de representação implica a referência a algo exterior ao registro, exigindo que não seja o seu representante per se, sob risco de diluir-se no próprio modelo original. Essa qualidade apresenta o jogo oscilante entre a imitação e o exercício que determina sua função, estabelecendo a capacidade de promover a evidência sobre algo que lhe é externo.

É preciso dizer que a ideia de “servir de evidência” coloca, em primeira instância, a análise de seus valores probatórios. Posteriormente, entram em cena os seus potenciais valores culturais. Os primeiros se relacionam ao curso de ocorrência das atividades produtoras e o tratamento desses acervos potencializa sua utilização como matéria-prima evidencial, amparando certa dependência aos eventos que os conceberam. Assim, tais conjuntos documentais seriam instrumentos reveladores das formas investigativas para se reconstituir a “materialidade” dos acontecimentos. Essa perspectiva tem por intuito fornecer substitutos aos eventos que já estão fora de nosso alcance, e é justamente essa capacidade de permanecer para além das circunstâncias imediatas de sua gênese que ganha em Yeo (2007, p. 337, tradução nossa) o atributo da “persistência”. O que significa que, mesmo diante do encerramento das atividades, os registros permitem espelhar seu contexto de origem, concebendo durabilidade temporal ao futuro conhecimento das occurrents: “funções, processos, incidentes, eventos, bem como as atividades” (YEO, 2008a, p. 4, tradução nossa). Naturalmente, se esses instrumentos extrapolam as atividades geradoras, permitem às futuras gerações ter acesso às evidências dos processos de decisão.

Há, portanto, um interesse na relação de causalidade com as circunstâncias de criação e recepção desses registros, bem como o reflexo das atividades e procedimentos que conferem conteúdo, contexto e estrutura ao documento. Naturalmente, a evidência indica o conhecimento das “verdades” que esses registros podem oferecer, condicionando seu rigor representativo à possibilidade de atingir conclusões idênticas sobre um fato, ainda que diante de múltiplos interesses investigativos. Aqui, os critérios que a estabelecem são operados em um sistema de inferências e/ou generalizações que pode ser bem elucidado pelo regime representativo explicado por Rancière. Se os vestígios fazem com que tal presunção sistemática encontre certa necessidade de conformação à linguagem narrativa, a transposição do “desejo” em fixar padrões de estabilidade indica que sua confiabilidade advém da competência em refletir os acontecimentos com precisão. Como tal compromisso se detém na segurança das evidências, a suposição desse caráter reflexivo resulta da força de convencimento desses indícios. Ou seja: a consistência da conexão entre aquilo que se quer provar e a matéria-prima utilizada para tal assenta-se sobre parâmetros de confiabilidade que mobilizam um nível aceitável de certeza dos acontecimentos.

Como a potencialidade evidencial aponta a viabilidade retrospectiva, esse raciocínio focaliza os acervos arquivísticos enquanto signos à espera de uma leitura interpretativa. Assevera a perspectiva intercessora dos fatos com aquilo que é possível verificar a partir de seu exame. A presença dessa “elasticidade” os condiciona ao resultado instrumentalizador de algum objetivo predecessor, seja para desvendar um processo de tomada de decisão ou ainda para enquadrar traços da imagem social. Ambos acabam refletindo sua vinculação com a habilidade do presente se projetar no futuro. Por isso, a noção de evidência assume um caráter distintivo, já que a análise dos valores probatórios, antes mesmo dos culturais, relaciona a representação ao curso das funções desempenhadas pela entidade/sujeito produtor no decorrer de suas ações. Como visto, a relação com o contexto produtor potencializa sua utilização como matéria evidencial. Ou seja: tais acervos não são evidências per se; mas podem provê-las ao se engendrarem certas relações representativas. Esse pensamento possibilita a visão de que a evidência configura uma relação umbilical com algo que lhe é exterior. E de que a proteção de tal status evidencial torna-se primordial ao uso das fontes a posteriori.

Pode-se destacar aqui a operacionalidade do sistema representativo, tal qual apresentado em Rancière, como modelo que preserva as inter-relações instauradoras das fontes confiáveis para retratar os fenômenos sociais. A busca por certa “estabilidade interpretativa”, alçada em pontos comuns da integridade originária, reivindica um sistema de inferências/generalizações típico da tradição representativa. Há nessa ideia a preocupação com a análise dos vestígios detectando um “salto” dos elementos perceptíveis aos fatos “imperceptíveis”. Entretanto, ao intensificar esse potencial informativo das fontes, tais conjuntos precisam ser interpretados e não necessariamente lidos (Menne-Haritz, 2001). Nesse ato de “leitura”, é imprescindível que tais acervos sejam compreendidos por sua capacidade de prover informações em potencial. Por isso, eles nunca possibilitam o acesso à informação em si, posto que sua qualidade interpretativa está em poder ofertar informações sobre a própria informação.

Mas as maneiras de interpretar o ato representativo se deparam com a dificuldade inerente ao representar: a impossibilidade de sua efetividade integral. Tendo em vista certo deslocamento temporal, que sempre cobra um grau de presença dos fatos, essa ação nunca pode ser perfeita. Se o evento já se esgotou, o registro permite o acesso a certa “imagem imperfeita” da ação originária. Isso não ocorre por debilidades inerentes ao objeto, já que é da natureza representativa o desafio de restituir aquilo que já se findou. Contudo, a perda dessa presença imediata, que a faz carregar a mácula da imprecisão, é também a lacuna tensa e contraditória em que Rancière passará a explorar um outro regime de produção de sentido. Desestabilizando a relação entre as “palavras” e as “coisas” e refletido na proliferação material de novos discursos e registros – “o excesso de palavras” (Rancière, 2014, p. 37) –, esse regime desafiará as hierarquias e os ordenamentos que definem quem pode falar, agir e dar sentido ao mundo. Questionará, portanto, as condições viabilizadoras da validade do documento enquanto fonte dos acontecimentos e, consequentemente, da escrita dos fatos.

Afinal, quem tem direito e/ou privilégio de produzir fatos memoráveis? Quem pode produzir fontes confiáveis? Com essas questões, Rancière desafia tanto a ideia de representação que os arquivos presumem quanto a estrutura de visibilidade condicionada à política de enquadramento dos fatos sociais no regime representativo. Como se perceberá na próxima seção, se tudo passa a ser signo – recolhido e mobilizado a falar diante da nova política de escrita – é preciso avaliar o novo espaço de correspondência das palavras com as coisas. Sua composição formata a autonomia do modelo anterior de correspondência, produzindo configurações inéditas ao sentido representativo das fontes documentais.

A revolução estética, o “excesso de palavras” e a nova história

À primeira vista, o que Rancière denominará “regime estético” a partir de seus textos dos anos 2000 pode ser tomado como um operador para compreender – mas também desconstruir – as diversas revoluções associadas à modernidade artística, desde o romance realista até as técnicas da montagem cinematográfica. É verdade que não há nenhuma novidade em dizer que, com a virada dos séculos XVIII e XIX, assistiríamos a uma crise da representação como conceito dominante da arte ocidental e ao surgimento de um novo conceito autônomo de arte, como as sucessões de movimentos e vanguardas posteriormente viriam a confirmar. A literatura, por exemplo, enquanto arte da escrita, seria um fenômeno moderno que nasce desse deslocamento que liberta a linguagem de sua função de meio ou instrumento transparente da representação, para fazer dela o centro mesmo de uma operação criativa que se refere, primeiramente, a si mesma, e não a uma pretensa realidade exterior. Condizente com essa liberdade sem precedentes, observa-se o ocaso da tradição poético-retórica, com suas hierarquias de gêneros que regravam as relações entre conteúdos, formas e destinatários: todo objeto agora é digno de representação e se destina a qualquer público, fazendo da obra um mundo ao mesmo tempo fechado em si, mas aberto à constante ressignificação do seu receptor.

Perderíamos de vista, contudo, o verdadeiro sentido dessa revolução se nos limitássemos às usuais narrativas triunfais da arte moderna que se pautam por alguns desses desdobramentos, como, por exemplo, a recusa da figuração e o caminho à abstração; o pouco interesse que Rancière (2005, p. 29) demonstra pelo conceito de modernidade ou modernismo vem justamente do fato de ver aí uma confusão ou consideração unilateral dos sentidos que se entrelaçam nesse novo regime, que chama propriamente de “estético”. Como vimos no caso do representativo, a identificação das artes no interior de um regime é determinada por uma partilha sensível mais profunda, que condiciona também discursos e políticas.

Nesse sentido, é elucidador recorrer a uma das cenas preferidas de Rancière (2011a; 2005) para descrever a revolução instauradora desse regime: a educação estética proposta por Schiller (2017). Como se sabe, o poeta alemão ensaia no fim do século XVIII uma reformulação crítica do ideal de liberdade da filosofia esclarecida e da Revolução Francesa, pensando sua realização não mediante a mera subjugação do elemento sensível, natural e particular, pelo intelectual e universal, mas sim pela formação e elevação do particular ao universal, da sensibilidade enobrecida. Isso só seria possível pela arte e pela beleza, uma vez que o estético despertaria e cultivaria um estado intermediário no ser humano, entre a atividade do intelecto e a passividade do sensível, entre forma e matéria. Afinal, esse tipo de experiência mobiliza nossos impulsos antagônicos em um novo acordo igualitário, promovendo uma legalidade que é seguida sem constrangimento, uma forma que não pode se dar de maneira abstrata e apenas imposta sobre a matéria inerte, mas brota do que é sentido como vivo e material. Sem se estender em análises muito estruturais do texto schilleriano, Rancière se interessa em realçar o claro entrelaçamento entre política e estética que o pensador alemão instituía com a proposta:

Ela fixou a ideia de que dominação e servitude são antes de tudo distribuições ontológicas (atividade do pensamento versus passividade da matéria sensível) e definiu um estado neutro, um estado de dupla anulação em que atividade de pensamento e receptividade sensível se tornam uma única realidade. (Rancière, 2005, p. 39)

Mais do que uma simples síntese de contrários ou mera solução intermediária, o filósofo procura salientar o sentido de “pura suspensão” (Rancière, 2005, p. 34) efetuado pela experiência estética que revoga, portanto, a usual hierarquia de poder, ou melhor, a própria lógica do poder e do domínio como esquema de produção de sentido: o inteligível deixa de ser privilégio do que é superior ou atuante e a sensibilidade não é só o campo inerte da matéria bruta, os significantes assumem substância e autonomia, a materialidade é por si mesma dotada de forma e significante.

Não é preciso ir longe para notar que com isso se funda uma concepção artística radicalmente nova. O gesto artístico não se identifica mais com o princípio da ficção mimética, de doação de forma e sentido inteligível à matéria bruta, e sim com a exploração sensível da suspensão dessa dualidade. Há arte tanto no “arranjo dos signos da linguagem” (Rancière, 2005, p. 54), como na “leitura dos signos escritos na configuração de um lugar, um grupo, um muro, uma roupa, um rosto” (Rancière, 2005, p. 55). Por meio dessa percepção mais fundamental das revoluções artísticas, explicam-se tendências aparentemente discrepantes do modernismo, como a exploração da autonomia da forma e da linguagem artísticas e, de outra parte, certo prosaísmo que põe em cena pessoas comuns ou recolhe símbolos e vestígios significativos mesmo nos elementos mais banais da vida moderna. É em um contexto assim que, para ficar em exemplos caros a Rancière (2005), passa-se a reconhecer como arte desde as descrições de vestimentas feitas por Balzac até os quadrados pintados por Malevitch. Aquela antiga hierarquia, que fazia Aristóteles (2017) opor a universalidade e necessidade causal à particularidade meramente empírica, dissolve-se em um mesmo plano sensível agora explorado em toda sua amplitude pelo artista.

Essa dissolução das hierarquias representativas sinaliza também no tecido sensível comum uma revolução política: novos atores reivindicam visibilidade, voz e supressão das naturalizadas divisões sociais entre os que pensam e os que trabalham, os que mandam e os que obedecem. Não por acaso, o regime estético da arte se torna dominante na mesma época em que os movimentos igualitários e democráticos passam a dar o tom da política e as próprias massas e classes populares, vindas “de baixo”, começam a ser vistas como agentes da história, um paralelismo explorado pelo autor na ambiguidade do francês, quando afirma que esse regime é caracterizado pela “igualdade de todos os temas [sujets]” (Rancière, 2005, p. 19), ou seja, também pela “igualdade de todos os sujeitos”.

Mas antes de ser a manifestação e a afirmação de qualquer demanda prévia de identidade ou de classe, o que Rancière parece querer insistir com sua leitura conjuntamente estética é que as lutas políticas modernas se alimentam essencialmente do mesmo princípio que o interessara ao tratar de Schiller: a suspensão das hierarquias dadas como reguladoras do sensível e, consequentemente, da atribuição consensual dos lugares e ocupações que cabem a cada um, de modo que junto a essa revolução estética são também projetadas realidades sociais potenciais e experimentadas subjetivações alternativas. Se quisermos ir ao enlace mais profundo entre essas perspectivas estética e política, o que encontramos é justamente a disrupção daquele sistema representacional que sustentava uma circulação estável e uma remissão consensual entre as palavras e as coisas em seus mais variados níveis, como a emissão, a significação e a destinação. Em seu livro mais diretamente político, O desentendimento, o autor deixa clara essa vinculação: “O animal político moderno é antes de tudo um animal literário, preso no circuito de uma literariedade que desfaz as relações entre a ordem das palavras e a ordem dos corpos que determinavam o lugar de cada um” (Rancière, 1996, p. 49).

A partir desse esquema, não surpreende que o filósofo possa transitar tão fluidamente entre estética e política ao falar da modernidade. O filósofo sonda essa desestabilização na circulação de vozes e discursos, que aumenta exponencialmente no período que denominaríamos moderno, produto e produtora de um “excesso de palavras” que não pode mais ser policiado ou administrado completamente, seja do ponto de vista mais óbvio, da disponibilidade e acesso material, seja do ponto de vista mais profundo, do controle estável da produção de sentido e da normatização de seus efeitos. Daí a clássica suspeita platônica contra a palavra escrita, enquanto palavra morta: para Rancière (2010b), isso faz dela órfã, errante, desrespeitando a destinação exclusiva a este ou aquele sujeito, grupo ou povo habilitados. Nisso há um risco duplo: ela pode agora ser apropriada por qualquer um, rompendo um regime de distribuição de corpos e visibilidade, mas por isso mesmo não embute nenhuma origem, nenhuma voz, que autorize e regulamente seu significado, suspendendo a autoevidência e abrindo-a à ressignificação.16 Por essa razão, o excesso de palavras é também um excesso das palavras: o que se cria com a linguagem não se esgota no sentido que é visado, de modo que, assim como as coisas agora reconhecidas como significantes, as palavras estão sempre sujeitas a elaborações e apropriações ulteriores, em um verdadeiro sentido democrático da circulação dos discursos; evidencia-se que “a distribuição e o posicionamento das coisas no espaço social é sempre provisório” (Ross, 2010, p. 136, tradução nossa). Logo, é a potência desse desvio na destinação e na referência das palavras às coisas que possibilita tanto a arte como a política que identificamos usualmente com o período da modernidade.

Evidentemente, essas questões confluem de maneira significativa no tratamento da história que, não por acaso, afirma-se como ciência em seu sentido moderno no mesmo momento em que estão ocorrendo as revoluções estética e política acima descritas. A Rancière importa explorar como a afirmação de um novo discurso historiográfico, que culminará na “nova história”, é dependente do mesmo regime que dissolvera as normas de sustentação da representação clássica, mas, simultaneamente, procura recalcar essa proximidade que faz com que a história compartilhe do mesmo modo de produção de sentido da literatura moderna, o que, quanto àquilo que nos concerne, terá notável importância na discussão da lógica de atestação dos fatos a partir das fontes documentais.

Em seu texto mais central sobre a temática, Os nomes da história,17 Rancière (2014) toma a tradição historiográfica dos Annales como a mais representativa desse esforço de afirmação do caráter científico da escrita da história. Com efeito, a historiografia do século XX parecia vivenciar o afastamento de vez dos limites da crônica que, apesar de tudo, ainda a aprisionavam à narrativa sucessiva de acontecimentos e dos nomes próprios dos reis. Esses elementos eram substituídos pelo enfoque no tempo longo e na vida das massas, possibilitado por “dados fornecidos pelas ciências do espaço, da circulação, da população e dos fatos coletivos, na junção da geografia, da economia, da demografia e da estatística” (Rancière, 2014, p. 24). Para nosso filósofo, esse movimento revelava, por trás do mero empenho cientificista, a participação da história na mesma reconfiguração da partilha do sensível que testemunhava a crise da narrativa direcionada pelos grandes personagens e a visibilidade recém-adquirida de outros sujeitos.

A partir do último capítulo do livro de estreia do historiador Fernand Braudel, publicado em 1949, O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Filipe II, Rancière se aproveita do modo de apresentação da morte do rei espanhol para enfatizar as mudanças no que viria a ser considerado um fato historicamente relevante. Segundo Aguirre Rojas (2013, p. 42), nesta obra Braudel muda seu foco, após sua experiência na Argélia, transformando o mar Mediterrâneo no “centro da história do velho mundo”. Assim como o regime estético permitia a Victor Hugo tornar a catedral de Notre-Dame a personagem significante de sua obra (Rancière, 2010b), o historiador deslocava seu olhar para outros focos de sentido, em uma “história da civilização material, dos espaços de vida, das longas durações e da vida das massas” (Rancière, 1995, p. 207). Em verdade, a pouca ênfase dada à figura antes central do rei reitera que estamos diante de uma importante modificação da historiografia.

Mas mais do que implementar o resultado metodológico dessa mudança de paradigma, a obra de Braudel é, para Rancière (2014, p. 16), a própria metáfora e encenação dessa “morte de certa história, a dos acontecimentos e dos reis” e o luto que lhe é inerente, utilizando, portanto, recursos essencialmente literários, característicos do regime estético. Pois ao lançar a morte para o fim do livro, assumindo não a ter relatado no devido lugar, o historiador revela a suspensão do ordenamento causal e narrativo, ao mesmo tempo que desloca o sentido do que será de agora em diante considerado um acontecimento memorável. Isso significa perceber que a personagem real acaba por figurar no mesmo patamar de outros atores, sendo tão relevante quanto eles no trato historiográfico. Ou melhor: deixando de ter o privilégio da voz eficiente, característica do regime representativo, o rei é tornado mudo como todos os outros testemunhos potenciais que se acumulam como palavra escrita a ser analisada e mobilizada pelo historiador.

Mais uma vez, isso é ficcionado pelo próprio Braudel, ao colocar o historiador em cena no gabinete do rei, em meio à burocracia empilhada sobre a escrivaninha, que pode ser o indício tanto de um abarrotamento dos relatórios dos embaixadores e autoridades estatais quanto da acumulação de informações das camadas mais baixas. Fica nítida aí a passagem, mas também o impasse, de uma nova história. A morte do rei se enreda à sua exclusão e a de outras vozes autorizadas da simbologia real como sujeitos produtores de registros informativos socialmente relevantes, colocando sob desconfiança os materiais antes disponíveis para consulta naquele modelo “real-empírico” da velha história. Esse destronamento, por sua vez, coincide com a dispersão desses atributos em uma massa indeterminada de anônimos, reconhecida como sujeito coletivo da história e refletida na “papelada dos pobres” (Rancière, 2014, p. 28). Atento à dimensão sensível e material da circulação das palavras, uma vez que lhe interessa mais a reconstrução imanente de práticas concretas do que a simples postulação de categorias epistêmicas, Rancière (2014, p. 31) concebe então o que se identifica como a revolução moderna antes como uma “revolução da papelada”,18 que fragmenta e desfaz a legitimidade do rei em uma multiplicidade de discursos que visibilizam novas testemunhas.

No entanto, ao mesmo tempo que chama a atenção do historiador para o sujeito coletivo da história, essa proliferação material de registros é motivo de suspeita. Braudel (apud Rancière, 2014, p. 25-26) atesta nessa “renascença dos pobres”, “dos humildes que teimam em escrever, contar a si mesmos e falar dos outros”, uma papelada “preciosa”, mas também “deformadora”, um mundo “vivo”, mas “cego”, “indiferente às histórias profundas”. O impasse resulta gritante:

Esse excesso de palavras e frases torna os homens da era das massas cegos aos grandes equilíbrios e às grandes regulações que mantêm o corpo social, ao mesmo tempo em que o tornam objeto de ciência. O excesso de palavras que mata os reis rouba ao mesmo tempo dos homens da era democrática o conhecimento das leis que mantêm vivas suas sociedades. (Rancière, 2014, p. 34)

O núcleo das questões – e dificuldades – posteriormente trabalhadas sob a chave do regime estético brotam assim no seio da ocupação do filósofo com a escrita da história: a potência súbita de produção vertiginosa de outras fontes históricas, identificada como um “excesso de palavras”, põe em cena um novo princípio político, ancorado na visibilidade e atuação daqueles que não cabem ou não aceitam as suas atribuições e alocações em um sistema hierárquico tradicional. Eles atuam reivindicando ou inventando nomes que não parecem corresponder ao que seriam segundo as determinações aceitas. Contudo, ao abalar e suspender o sistema que regia a ordem estável entre as palavras e os corpos – o regime representativo –, esse mesmo princípio é visto com suspeita por uma ciência que pretende representar o que de fato ocorreu.

O excesso torna-se para o historiador um “mal das palavras”: “nomes flutuantes, nomes sem corpo, da multiplicidade dos homônimos e das figurações que não se assemelham a nada e encontram um meio de figurar em toda parte” (Rancière, 1995, p. 211). Essa afirmação, que faz pensar nas explorações da arte moderna, revela um perigo eminente à escrita que se quer ciência: se as palavras disponíveis para expressar o que aconteceu são apenas palavras, em uma hiperinflação de significados, a experiência da modernidade parece nos colocar diante de descritores ocos, que já não representam qualquer sentido comum, movimento que Rancière (2014, p. 56) arremata com a fórmula: “não aconteceu nada tal como foi dito”. Note-se que, para o autor (2014, p. 96), isso não é por si mesmo um problema: a história depende dessa “dupla ausência da ‘coisa mesma’”, que não está mais lá porque passou, mas que tampouco é tal como foi dita, já pelo fato de que a desregulação entre as palavras e as coisas anula uma verificação unívoca e condiciona a política em seu sentido moderno.

A questão, entretanto, é que essa crise de referência entre significantes e significados coloca a historiografia numa posição extremamente defensiva que, contra o risco de recair na literatura, agarra-se “às armas e insígnias da cientificidade” (Rancière, 2014, p. 154): a linguagem dos números e gráficos. Se se quiser científica, ela deverá limpar a confusão da “papelada dos pobres”, ensaiando um retorno empírico aos fatos, à “primazia das coisas sobre as palavras” (Rancière, 2014, p. 22), a fim de superar esse excesso produzido pelo acontecimento moderno. Sua reivindicação como uma ciência social procura justamente restabelecer a medida que relaciona os fatos à sua designação objetiva, afastando esse obstáculo que é o excesso de palavras enganadoras dos indivíduos da massa. Pensando especialmente na historiografia da Revolução Francesa – acontecimento prototípico dessa modernidade –, o filósofo vê se revelar um traço inerentemente revisionista de uma tal história: ciência desencantada, do rigor das estatísticas, ela relê esse “não aconteceu nada tal como foi dito” como a inexistência mesma do acontecimento enquanto tal, levando a agência dos indivíduos falantes, aqueles que de fato fazem a história, a ser dissolvida e calada no tempo social longo, nas estruturas, na luta de classes, nas mentalidades e outros mecanismos que tentam restituir de maneira positivista o nome “correto” das coisas e a harmonia do tempo. “Sobrecontextualizado”, o acontecimento dos relatos se torna um não acontecimento.19 Afastando-se efetivamente do paradigma narrativo dos grandes acontecimentos da crônica real, a nova história, no entanto, aplaina e dissipa de um só golpe os novos sujeitos que perfazem seu objeto próprio e a historicidade que a impulsiona, terminando por calá-los.20

Considerações finais: os documentos como acontecimentos

Assim, se a história não pode abandonar seu objetivo central de contar algo, sempre relacionado “a esse mínimo: que alguma coisa às vezes aconteça” (Rancière, 1995, p. 212), seu desafio é encarar sem mascaramentos as contradições, compartilhadas com o regime estético, que condicionam seu nascimento e a visibilidade de seus objetos, assumindo esse jogo que determina a própria ambivalência da noção de história, entre o testemunho dos fatos e sua atestação, entre os acontecimentos e sua interpretação. Para recordar essa origem que a atrela aos rastros de uma revolução estética, Rancière evoca Jules Michelet, que se tornara para a nova história contemporânea uma espécie de pai escandaloso: por um lado, sua atenção às classes populares e a temas antes desprezados estabelecia um enfoque moderno que antecipa a tradição; por outro, o estilo considerado demasiadamente poético trairia as pretensões objetivas hodiernas. Ora, para Rancière (2014, p. 66), o paradigma “republicano-romântico” de Michelet – portanto oposto àquele “real-empírico” – não constituía um desvio acientífico, e sim uma ruptura em relação à poética do saber do sistema representativo, correspondendo então à partilha sensível propagada pelos movimentos como a Revolução Francesa.

Ao falar da Festa da Federação, comemorada um ano após a Bastilha, o historiador francês recorre a documentos escritos então pelas pessoas comuns, cartas de amor que expressavam a paixão pela nação nascente. Michelet, no entanto, não as evoca como relatos de fatos a serem atestados e interpretados pelo cientista. Em vez disso, em um recurso literário que ressoa em Braudel, ele coloca a si mesmo em cena, narrando efusivamente seu próprio manejo desses escritos e a força que exprimem, trazendo-os para o mesmo plano temporal de sua explicação.

Não se trata de mero estilo ou sentimentalismo; como comenta White (1994, p. xvi, tradução nossa), inaugura-se aí também uma nova atitude diante dos arquivos: “Michelet vai aos arquivos não para ler os documentos como indícios mortos de eventos agora passados, mas para imergir-se nesses documentos como fragmentos do passado que continuam a viver no presente”. Se o princípio político moderno é a aparição das novas vozes, tais registros se tornam eles mesmos o lugar desse acontecimento: “o documento é idêntico ao próprio acontecimento. Os escritos são por si mesmos o acontecimento do aparecimento da pátria, a constituição de uma memorialidade e de uma historicidade novas” (Rancière, 2014, p. 68).

Borrando a distinção entre o que esses registros relatam e o que significam, a estratégia por assim dizer “literária” de Michelet suspende uma dupla vigência do sistema anterior: essas cartas deixam de ser a representação mais ou menos confiável de fatos históricos, e tornam-se elas mesmas um evento significativo, cuja força é colhida e narrada; simultaneamente, tira-se delas a condição de um mediador que fixa à distância o passado, para torná-las audíveis e transportar sua força para o tempo presente. Para lidar com “o excesso de palavras”, mais do que falar dos documentos, em termos de confiabilidade de sua capacidade representacional, abre-se a possibilidade de fazer os documentos falarem, brecha em que surgem novas vozes, não propriamente de grupos preexistentes – lugares já definidos ou naturalizados que ganhariam então visibilidade ou protagonismo –, e sim de subjetivações que só se dão nesse processo de disputa do sensível, e portanto na própria desestabilização do que se assumira previamente como lugar de visibilidade.

Isso não quer dizer, no entanto, que Michelet esteja resguardado das contradições da nova história – o que só vem a confirmar seu papel de precursor. Como se observa na ambiguidade da expressão “fazer os documentos falarem”, ao contar o sentido e a força das cartas, e não propriamente seu conteúdo, inaugura-se “a arte de fazer os pobres falarem silenciando-os, de fazê-los falar como mudos” (Rancière, 2014, p. 71), isto é, “fazer” falar por meio deles o sentido dado – sobre um grupo ou cultura – é também “impedi-los” de falar, emudecendo-os.21 Esse é o modo como o historiador responde ao que há de ameaçador no “excesso de palavras”, a ameaça da literatura, com suas palavras vãs e sem corpo apropriadas por aqueles que falam de um lugar que não existe. E nessa solução perdura o risco, que se mostrará com clareza na tradição dos Annales, de reprimir ou mesmo omitir as subjetivações que surgem nesse mesmo excesso.22 Por outro lado, Rancière parece querer insistir, com o exemplo do historiador francês, que são precisamente com recursos literários, de sua poética “republicano-romântica”, que o programa científico da história moderna procura se subtrair à literatura em geral: “a literatura dá status de verdade à papelada dos pobres” (Rancière, 2014, p. 80). É também o mascaramento ou esquecimento desse gesto poético que faz a história moderna recair por vezes no apelo positivista aos fatos puros e é a esse modelo que deve recorrer se quiser ser “uma história e não uma sociologia comparada ou um anexo da ciência econômica ou política” (Rancière, 2014, p. 66).23

Com isso se percebe o entrelaçamento da historiografia moderna, como certa tentativa de explicação das novas realidades sociopolíticas, e as consequências mais profundas das mudanças do regime estético das artes em relação ao sistema representativo anterior. Como escreve Rancière na Partilha do sensível (2005, p. 54): “A revolução estética redistribui o jogo tornando solidárias duas coisas: a indefinição das fronteiras entre a razão dos fatos e a razão das ficções e o novo modo de racionalidade da ciência histórica”. A era estética, como vimos, desloca a criação poética da criação de enredos, entendidos como fórmula geral de uma ordenação causal que imprime razão ao mundo segundo um regime hierárquico de sentido, para o reconhecimento de uma verdade que se mostra na tessitura sensível das coisas banais, explorada como significante pelo artista junto a uma linguagem supersignificante que não aceita mais um regramento unívoco em seu poder referencial e como mecanismo de atribuição das coisas a uma posição inteiramente determinada. Assim, a antiga oposição que fazia Aristóteles rebaixar a história se desfaz:

De um lado, o “empírico” traz as marcas do verdadeiro sob a forma de rastros e vestígios. “O que sucedeu” remete pois diretamente a um regime de verdade, um regime de mostração de sua própria necessidade. Do outro, “o que poderia suceder” não tem mais a forma autônoma e linear da ordenação de ações. (Rancière, 2005, p. 57)

Se as consequências dessa reconfiguração entre o sensível e o pensável são evidentes nas experimentações artísticas modernas, compreendemos que Rancière já se ocupava desde muito antes do modo como essas perturbações adentravam, e mesmo exigiam, uma nova feitura da história. Igualmente filha dessa revolução estética, a historiografia em sua figura moderna – não por acaso, surgida na mesma época da literatura, em fins do século XVIII – movimenta-se também nesse plano em que se tornam fluidas as fronteiras entre as razões dos fatos e as razões das “ficções”, como demonstra sua análise de Michelet. O filósofo, todavia, é cuidadoso em diferenciar aqui sua interpretação de qualquer redução desconstrucionista do real a um texto ou narrativa. Longe disso, e revelando como sua crítica à representação se afasta dos motivos mais gerais do pós-modernismo, o autor reconhece nesta postura, que curiosamente esbarra com a do positivista em sinal oposto, uma compreensão simplista que opõe o artifício da narrativa a uma suposta realidade objetiva pura.

Com sua noção de regime, e especialmente com os deslocamentos do regime estético em relação à compreensão anterior da ficção, Rancière pode insistir que o que ocorre, de fato, é um realinhamento dos modos de apresentação dos fatos e o reconhecimento de sua inteligibilidade. E é nesse realinhamento que se desdobram tanto a escrita literária quanto a histórica. Suspendidas as hierarquias anteriores que definiam um sistema de coordenadas estáveis entre o sensível e o pensável, a questão é que, no interior desse regime, “o real precisa ser ficcionado para ser pensado” (Rancière, 2005, p. 58), como resume uma importante formulação da obra A partilha do sensível. Em uma tal operação, combinam-se a coleta de diferentes rastros empíricos e a potencialização de novas estratégias narrativas. Invertidas as regras de apresentação da realidade, tornam-se mais diversas as possíveis relações entre sujeitos e materialidades.

Isso tem notáveis consequências para o modo como podemos pensar o trabalho com os arquivos e aquilo mesmo que representam. A disjunção entre as palavras e as coisas que caracteriza a derrocada do sistema representativo é acompanhada da fragmentação da antiga legitimidade real em uma multiplicidade de vozes surgidas com a proliferação de discursos e registros que caracteriza a virada estética. Excesso ao mesmo tempo das palavras, que passam a resistir e desafiar um sistema de designação unívoco e hierárquico, tal ideia sintetiza o enlace material, político e epistemológico das mudanças envolvidas nesse desarranjo do paradigma representacional que dominara boa parte da história do Ocidente. Por não se submeter à codificação que localiza subjetivações, ocupações e formas de agência apropriadas, essa sobrecarga de significantes, reunida na “papelada dos pobres”, é vista com suspeita pelo pesquisador que se debruça sobre esses documentos em busca do que “representam”.

Como vozes que, antes de mais nada, desestabilizam esse regime de codificação do sensível e recusam a determinação previamente acordada dos lugares que cabem a cada um, esses documentos não parecem propriamente representar algo já dado, rompendo uma “lógica do testemunho enquanto palavra privilegiada que atesta a coisa, que a transmite em sua verdade” (Rancière, 2006, p. 177). Consequentemente, nosso percurso testa a lógica do testemunho em sua correspondência com a ideia positivista da “palavra” que possui o privilégio na declaração da ocorrência dos fatos, central para uma concepção representacional dos arquivos – postura crítica que parece se colocar na esteira das propostas pós-modernistas para avaliação dos movimentos epistemológicos arquivísticos: a ruína do mito da nação (Silva, 2002), emoldurada pelo embate “universais-particulares”, a diversidade como propulsora de paradigmas alternativos (Jimerson, 2007; Harris, 2007), bem como a inquirição dos fundamentos de imparcialidade e/ou objetividade que sempre ampararam o campo (Cook, 1998).

Rancière, no entanto, não depreende desse cenário a irrepresentabilidade radical dessas vozes em sua singularidade e alteridade. Em provocação ao posicionamento de matiz pós-moderno, ele afirma que, pelo contrário, a noção do irrepresentável só faz sentido em um regime como o representativo, “que define compatibilidades e incompatibilidades de princípio, condições de recepção e critérios de não recepção” (Rancière, 2012, p. 127). Mediante o regime estético e seus desdobramentos, o filósofo oferece, em vista do problema que nos interessa, uma formulação que foge à simples oposição entre a representação e o irrepresentável na relação documental. Trata-se, antes, de tomar esses documentos como acontecimentos, cena na qual se delineiam outras visibilidades e se lançam novos mundos, unindo os aspectos estético e político que determinarão também o trabalho de interpretação dessas fontes, como mostraram o tratamento do filósofo com a poética própria à nova história. Produzem-se, consequentemente, novas configurações do sentido representativo das fontes documentais.

Por fim, ao questionar com o pensamento estético de Jacques Rancière os sentidos que os conjuntos arquivísticos apresentam enquanto matéria-prima da escrita dos fatos, é curioso que nos vejamos remetidos a seus próprios trabalhos iniciais. Com efeito, partir de suas discussões sobre os regimes de identificação das artes para chegar, retrospectivamente, à sua análise da historiografia é também ressaltar um traço profundamente estético que percorre toda sua produção24 e ressignifica a dimensão política de seu manejo das fontes em projetos desde as décadas de 1970 e 1980, como o coletivo em torno da revista Les Révoltes Logiques ou seu trabalho A noite dos proletários.

No intenso trabalho com os arquivos e no esforço de publicação de documentos esquecidos, revelava-se a tentativa de restaurar a memória do povo, dos movimentos de luta, mas desviando das historiografias oficiais e buscando a singularidade de vozes que haviam sido roubadas pelos especialistas e intelectuais. Suspendendo essa divisão entre o intérprete e as fontes mudas, a própria palavra desse novos sujeitos que se apropriavam do que não lhes pertencia, discurso de onde se presumia não haver voz, torna-se momento de reconfiguração do sensível.25

Como explica Suter (2012, p. 69, tradução nossa), nesse trabalho com os arquivos, “o enunciado não deveria ser tomado como o extravasamento de circunstâncias sociais que poderiam ser completamente reconstruídas, mas antes como formadoras de uma quebra política”. Ao mesmo tempo, esta quebra insere-se no tecido de uma revolução sensível mais ampla que, assim, coloca também o manejo dos arquivos no mesmo plano de operações artísticas, de potencializações de “ficções”. Estas, afinal, não se confundem com artifícios fantasiosos, mas operam rearranjos das matérias dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode ou não fazer. Com isso, retornar ao “excesso de palavras” dos arquivos com essa compreensão estética é mais do que reconstituir representativamente contextos do passado ou recensear as massas, mas figurá-los como poderosos lugares de reinvenção e reapropriação do presente, restituindo aquilo que Rancière viu como o mais essencial da era democrática e social em sua reconfiguração da representação: “é a era da subjetivação arriscada, gerada por uma pura abertura do ilimitado e constituída a partir de lugares de palavra que não são localidades designáveis, que são articulações singulares entre a ordem da palavra e a das classificações” (Rancière, 2014, p. 142).

Em última instância, interessa não restringir o arquivo em sua visão de encapsulamento procedimental. Isso porque o sentido da produção histórica se expressa na junção dessa matéria-prima com a escrita, tomada como ferramenta de expressão criativa. Mas a junção desses elementos só pode ocorrer pela habilidade de inquirir tal acervo. E essa inquirição não tem outro propósito senão restringir os infinitos mundos possíveis de seu significado existencial. Como diz Arlette Farge (2009, p. 22): lê-lo “é uma coisa; encontrar o meio de retê-lo é outra”. Ou, como Salomon (2011, p. 34) critica, vê-lo unicamente desde sua mirada íntima “da preservação e da conservação”. Esse olhar também define a representação de sua gênese funcional, recorrentemente convocada pela historiografia.

De modo diverso, o que a abordagem a partir de Rancière propõe é que os arquivos possam ser pensados para além dessa lógica, sendo vistos também sobre “a dobra que deve ser desdobrada no fluxo do pensamento pelo historiador” (Salomon, 2011, p. 34). Assim, ao contrário do estatuto representativo tradicional, o que se produz em seu íntimo é a novidade. Seria como assentir que, mesmo diante de sua cotidianidade enfadonha, o inédito se rebele a partir das entranhas do tédio repetitivo desses acervos. Arquivo é disruptivo. Por esse jogo complexo, seu infortúnio primordial provém de um local comum: o da própria noção de história que se está mobilizando ao tê-los enquanto fonte informativa. Em outros termos, há uma maneira específica de leitura das fontes, evocada por determinado tipo de articulação.

Nesse sentido, o arquivo está mais para um mecanismo que pode associar o passado ao agora, passando a ameaçar a estabilidade desse tempo pretérito. Por isso, conforme elucidado neste texto, é imprescindível convocar uma espécie de filosofia que não reitere apenas sua perspectiva conservadora: é preciso também desdobrar seu sentido epistemológico. Tal movimento permitirá observar que as marcas ritualizadas da monotonia cotidiana de produção desses acervos passam a ser agora “estranhamento”; jamais acomodação. Sua função não estaria mais em reforçar certa coesão unitária dos elementos constitutivos de determinada representatividade. A sua questão primordial não seria o passado, e sim uma “promessa e [...] uma responsabilidade para amanhã” (Derrida, 2001, p. 50).

Desse modo, o espaço performativo dos conjuntos arquivísticos estaria no oferecimento da incerteza ou até mesmo da impossibilidade. É a superabundância de sentido que interessa às artimanhas de sua irresolução. Pode-se dizer que “novidade significa desvio” (Salomon, 2011, p. 38-39), pois o arquivo estará sempre disponível a atualizações imprevistas, rompendo seu tecido de acomodação e se colocando diante de recorrentes incidentes que fraturam a lógica representativa de um regime que tinha o desejo expresso de “congelar” determinados traços de manutenção dos fluxos identitários. O que surge, então, é a possibilidade de perturbá-los.

Assim, o desafio da representação arquivística se movimenta constantemente entre a tensão da diversidade das vozes dos atores sociais – o “excesso de palavras” – que irrompem e reconfiguram as partilhas sensíveis, bem como certa visão operacional e estabilizadora que a restringe ao sistema hierárquico do regime representativo. Um pensamento arquivístico aberto às brechas das possibilidades do porvir deve envolver uma reflexão sobre seu processo de constituição e ruptura. Mas não só isso: deve também tornar necessária uma teoria “vacilante”, que não se esqueça da incompletude natural de seu futuro indeterminado.

Notas


1 “Valor que o documento pode possuir depois de esgotada sua utilização pela entidade que o produziu” (Cunha; Cavalcanti, 2008, p. 375).

2 “O valor esclarecedor dos documentos/arquivos sobre a natureza de seu criador pela providência de evidência da origem, funções e atividades do criador. É distinto do valor informativo, mas pode ser confundido com o valor probatório” (Cunha; Cavalcanti, 2008, p. 374).

3 O valor probatório envolve “a utilidade e qualidades dos documentos, relativas à sua importância para provar a existência ou veracidade de um fato” (Cunha; Cavalcanti, 2008, p. 374). Ou ainda a “importância (valor) e qualidade de um documento que asseguram o conhecimento da origem, estrutura e funcionamento, característicos da instituição criadora do referido documento” (Cunha; Cavalcanti, 2008, p. 375).

4 “Utilidade e qualidade dos documentos, decorrentes do tipo de informação que podem fornecer, independentemente de seu valor probatório” (Cunha; Cavalcanti, 2008, p. 374).

5 É possível observar essa perspectiva em Richard Cox (2004), Terry Cook com J. M. Schwartz (2002) e em Randall Jimerson (2007).

6 Dentre outros textos, o cuidado para com esse olhar é apresentado por Cook (2012; 2009), Farge (2009) e Verne Harris (2007).

7 Todas essas perspectivas críticas são discutidas com mais profundidade por Geoffrey Yeo (2008b).

8 Em concordância com o pensamento filosófico que será abordado, preferimos utilizar o termo com letra minúscula, uma vez que o ponto de vista “estético” suspenderá em alguma medida a diferença entre História e história, revelando certo teor inovativo nesse percurso histórico “cientificizado”.

9 Há ainda um terceiro, o “regime ético das imagens” (Rancière, 2005, p. 28), sobretudo identificado com a discussão platônica dos simulacros e as interdições religiosas de representação das divindades. Além de ser o regime menos discutido por Rancière, ele não está diretamente implicado nas discussões deste artigo, por isso não será tratado aqui.

10 Cabe, portanto, diferenciar entre o uso do termo “estética” nesse sentido mais amplo, e a designação do “regime estético” com seu escopo mais específico, para dar conta de mudanças artísticas e também políticas que usualmente associaríamos à modernidade.

11 Ainda que haja uma preponderância de cada um dos regimes em determinadas épocas históricas – o ético na Antiguidade, o representativo até o período moderno, e o estético na modernidade –, eles não são, todavia, sistemas que simplesmente se sucedem em um tempo linear, mas que estão em disputa e copresentes.

12 “Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha” (Rancière, 2005, p. 15).

13 Conquanto o recuo da noção de representação ao conceito antigo de mímesis não seja uma exclusividade de Rancière, é preciso reconhecer que sua interpretação de Aristóteles pode ser contestada pelas leituras mais usuais (Panagia, 2018); mesmo a identificação dos procedimentos da Poética com os da Retórica seria um motivo de questionamento (Frede, 1992). Ainda assim, a recepção cruzada das obras teve sua tradição e tem aqui um uso estratégico que não se propõe à leitura estrutural, e sim à compreensão de fenômenos mais amplos.

14 Ao justificar a escolha do termo “poética”, Rancière (2010a, p. 34) o contrasta com as noções científicas tradicionais de “metodologia” e “epistemologia”, considerando-os como termos que operam “uma denegação a respeito das formas reais da constituição de um conhecimento”. Para o autor (2014, p. 12), mesmo quando um discurso procura se subtrair e diferenciar da “literatura”, é por meio de “procedimentos literários” que ele “dá a si mesmo um status de ciência e significa-o” – justamente o que denomina “poética do saber”.

15 “Real” [royal], no caso, se refere à realeza e ao rei.

16 É por conta disso que Rancière fala tanto da Palavra muda (2010b), título de sua obra de 1998, como das “coisas mudas” (Rancière, 2005, p. 55): fora da primazia representativa do logos, da voz intelectual que doa e autoriza o significado, as palavras excedem o que designam ao mesmo tempo que as coisas carregam mais significado do que aquele previamente designado.

17 A conferência “As palavras da história” (Rancière, 1995) coincide parcialmente com um dos capítulos de Os nomes da história e será também utilizada como referência nessa análise.

18 Segundo Panagia (2018, p. 52, tradução nossa), com a noção de papelada, Rancière “registra uma certa proliferação dos atos de escrita, transcrição e registro que ocorre quando, subitamente, e do nada, muito mais pessoas começam a contar como agentes cujas tarefas e capacidades e feitos demandam documentação”; portanto, indica a compreensão da “documentação como uma epistémê política”. Isso não quer dizer, naturalmente, que o filósofo deduza a mudança de visibilidade de atores sociais a partir do progresso de condições técnicas e materiais, uma vez que, com sua leitura estética da partilha do sensível, o que se propõe é precisamente o inverso: é uma desestabilização no quadro hierárquico da representação que faz com que esses novos meios se tornem espaço concreto do novo fenômeno de visibilidade e voz de qualquer um.

19 Davis (2010, p. 47, tradução nossa) indica na crítica à “sobrecontextualização”, identificada como prática comum na história social, um dos traços característicos desde os primeiros trabalhos de Rancière com os arquivos. Para o comentador (ibidem, p. 73), se essa característica o torna vulnerável à crítica contrária, de dar excessivo peso à singularidade dos relatos, ela só pode ser bem compreendida a partir do viés estético de suas leituras.

20 O excesso das palavras como condição dessa historicidade moderna, daqueles que agem por reivindicarem ou inventarem outros nomes, é associada intimamente por Rancière (2011b, p. 47) ao tema do “anacronismo”: “Há história à medida que os homens não se ‘assemelham’ ao seu tempo, à medida que eles agem em ruptura com o ‘seu’ tempo, com a linha de temporalidade que os coloca em seus lugares impondo-lhes fazer de seu tempo este ou aquele ‘emprego’”.

21 Além disso, é preciso lembrar o potente e ambivalente significado que a noção de “mudez” adquire no regime estético, enquanto reserva de sentido que excede toda designação de uma autoridade intelectual (cf. supra, nota 16): a voz das coisas mudas contrasta com a eloquência retórica do logos representativo, portanto permanece resistente e potente mesmo nesse quadro.

22 Marlon Salomon (2019), que chega a mencionar Rancière, ressalta em Foucault uma crítica ferrenha a essa tradição historiográfica, que uniria de Marc Bloch e Lucien Febvre a Ernst Cassirer, de “fazer falar” os documentos, ao que opõe o procedimento de deixá-los “falar por si mesmos”, “dar voz”.

23 Há, portanto, uma certa ambivalência no modo como Michelet é posicionado no interior da argumentação do filósofo. Sem dúvida, a posição mais saliente indica como a entrada em cena dos novos sujeitos não é levada às últimas consequências ou mesmo sabotada, com o que se frisa a proximidade do historiador francês com a tradição posterior dos Annales (Davis, 2010), que acaba por reduzir o excesso a mera estatística; por outro lado, é possível reforçar seu papel de ruptura poética, que guarda outras possibilidades, mesmo que como prática criticada pela historiografia moderna (White, 1994).

24 Este argumento é reforçado pela seguinte ideia sobre a cronologia do pensamento do filósofo: “A origem das reflexões estéticas de Rancière pode ser remetida a seus primeiros trabalhos, pois foi nos estudos sobre a emancipação operária que ele descobriu a centralidade da estética, especialmente da escrita. Contudo, a partir das reflexões sobre as políticas da escrita, o filósofo se envereda pela própria teoria estética, com a discussão sobre os regimes da arte” (Waks; Carvalho; Valle; Greco, 2021, p. 4).

25 Em ensaio sobre Foucault, cuja afinidade com o trabalho arquivístico de Rancière nesse ponto é notável, Salomon (2019, p. 247-248) defende que com esse novo interesse pela história das palavras e das falas no período, “não se tratava de uma simples crítica do porta-voz ou da figura do crítico social autorizado. Não se tratava tampouco de simplesmente dar voz aos criminosos e presos que até então não falavam. Creio que o que realmente estava em jogo aí era mostrar que havia um pensamento na fala dos que passavam a falar por si mesmos”.

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Recebido em 28/2/2023

Aprovado em 18/5/2023



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