Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 2, maio/ago. 2023

Marc Ferrez: a fotografia como experiência | Resenha

A fotografia e o tornar-se contemporâneo de um presente-passado

Photography and becoming contemporary of a present-past / La fotografía y el devenir contemporáneo de un presente-pasado

Marcos de Brum Lopes

Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Historiador do Museu Casa de Benjamin Constant (Ibram/MinC) e pesquisador associado do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF, Brasil.

marcosfblopes@gmail.com

OLIVEIRA, Marcus Vinicius. À sombra do colonialismo: fotografia, circulação e o projeto colonial português (1930-1951). São Paulo: Letra e Voz, 2021.




Qualquer apreciação sobre o estado da arte no campo interdisciplinar da história e da cultura visual, hoje, destacaria a consolidação da fotografia como tema recorrente. Não é para menos. Nas últimas décadas, a abordagem histórica da imagem técnica tem enriquecido o repertório historiográfico através de estudos originais.1 No Brasil são destaque, como poderíamos esperar, as práticas e as experiências fotográficas que marcaram a nossa história. Mas há também os trabalhos que ousam expandir os olhares para outras paragens. É o caso de À sombra do colonialismo: fotografia, circulação e o projeto colonial português (1930-1951), de Marcus Vinicius de Oliveira. O livro, que faz parte da série Estudos em cultura visual, da editora Letra e Voz (SP), é fruto da dissertação de mestrado em história do autor, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (Niterói, RJ).

Marcus Vinicius de Oliveira parte de uma pergunta que chama de “simples”. Uma questão que fez a si mesmo durante intercâmbio acadêmico em Portugal, no ano de 2014, depois de folhear o álbum fotográfico da I Exposição Colonial Portuguesa, de 1934: por que manter viva a lembrança de um evento daquele tipo? Como explica o autor, essa pergunta desdobrou-se em outras várias e, como acontece com todas as pesquisas sérias em arquivos fotográficos, acendeu uma vasta constelação de imagens que se relacionavam, algumas quase imediatamente, por sua origem comum, e outras aparentemente desconexas, mas que passaram a gravitar em torno das questões levantadas pelo pesquisador e acabavam indicando o caminho para as respostas – essas sim, complexas.

A investigação recorta o período do Estado Novo português, quando António de Oliveira Salazar ascendeu ao poder no país ibérico, e elege como marco inicial da discussão o Ato Colonial de 1930, que reorganizou a política colonial de Portugal. Não é, porém, uma história visual do Estado Novo ou exclusivamente das colônias portuguesas em África. A pesquisa se inscreve no marco das abordagens contemporâneas da história e da cultura visual, portanto, leva em consideração a totalidade da dinâmica social das imagens técnicas, um circuito composto por estágios como (porém não somente e não necessariamente nessa ordem): idealização, produção, circulação, visualização/publicação, arquivamento e redescoberta.

O livro conta com três capítulos, cada um dedicado a um aspecto do quadro geral analisado. Marcus Vinicius Oliveira tem dois conjuntos principais de fontes, que nomeou Série Imperial e Série Científica. A proposta é deixar claros os usos e as funções de cada tipo de fotografia. A Série Imperial é formada pelas imagens destinadas a documentar e retratar o império colonial e que tinham o grande público como consumidor principal. Já a Série Científica contempla aquelas produzidas no âmbito específico dos projetos antropológicos portugueses, cujos consumidores seriam, a princípio, os membros da comunidade científica.

Não seria de todo equivocado usar um desses conjuntos exclusivamente, a depender da pergunta a que se quer responder. Porém, na medida em que o autor pretende investigar o que a imagem técnica oferece ao projeto colonial português durante pouco mais de vinte anos, uma das grandes contribuições da pesquisa é colocar essas duas séries em articulação por meio da ideia de circulação.

Uma boa parte das correntes e tradições historiográficas que se articularam – e conflagraram – para que chegássemos ao que Ana Maria Mauad chamou de fortuna crítica da teoria fotográfica está presente no livro (Mauad, 2016, 2018). Algumas podemos identificar por citações diretas e indiretas, outras por meio do procedimento investigativo. É exatamente o que permitiu ao autor produzir um texto original, considerando a imagem técnica, ao mesmo tempo, como artefato e ideia circulantes.

Levando em consideração a historiografia brasileira, destaco a preocupação de Marcus Vinicius de Oliveira com as trajetórias dos fotógrafos, tomando-os como produtores, na mesma chave metodológica proposta pelos trabalhos de Ana Maria Mauad, nos quais mediação cultural é um conceito-chave para a compreensão das práticas fotográficas individuais em articulação com os âmbitos institucionais (estatais ou não). Outro marco importante da pesquisa é a noção de fotografia pública, trabalhada pela mesma historiadora, derivada da reflexão sobre mediação cultural no âmbito dos estudos sobre história pública.

Na medida em que a investigação reúne alguns conjuntos de documentação preservados em arquivos distintos e estrangeiros, o autor estabelece um diálogo importante com a historiografia internacional, principalmente a portuguesa e a anglo-saxã, para compreender as camadas de significação depositadas nas imagens pelas instituições de guarda. Para o pesquisador, é preciso entender o papel dos álbuns, das publicações e dos arquivos institucionais como instrumentos da administração do Estado Novo e da validação social dos empreendimentos coloniais portugueses. Trata-se de um bom exemplo dos cuidados metodológicos necessários para o tratamento das fotografias que nasceram para circular e para serem vistas publicamente; das que nasceram para documentar e para serem vistas por um público restrito; de outras que nasceram para circular, mas não circularam; e daquelas que ficaram em arquivos e circulam somente hoje, por meio da investigação histórica – da qual faz parte o livro de Marcus Vinicius de Oliveira.

Há, segundo o autor, e isso é corroborado pelas pesquisas do português Afonso Dias Ramos, uma nuvem de obscuridade sobre a visualidade da presença colonial portuguesa em África (Ramos, 2014). Censura, negação, posicionamentos ideológicos conflagrados, defesas de uma suposta herança de progresso e denúncias de abusos e violências marcam os debates públicos sobre o tema. À luz desses problemas, é interessante que o livro trate de eventos que celebravam não o conflito, por óbvio, mas as “bênçãos” levadas pelos lusitanos ao continente africano. Trata-se das exposições coloniais, espetáculos produzidos em Portugal que contavam com africanos nativos em full display, para o deleite, espanto e cobiça europeia. Como poderíamos prever, imagens fotográficas sobre esses eventos surgiram em profusão.

É preciso destacar a busca do autor pelos olhares e gestos dos fotografados. Mobilizando as proposições teóricas da israelense Ariella Azoulay (2008, 2012), Oliveira deixa-se interpelar pelos fotografados. Não é tarefa simples e tampouco ingênua. Azoulay vem construindo um conjunto de conceitos e noções como “cidadania fotográfica”, “contrato civil da fotografia” e “imaginação civil”, que podem ser muito úteis ao analista da fotografia, sobretudo daquela produzida em contexto colonial, como é o caso do livro em tela.

Sua aplicação, entretanto, requer perspicácia. Como exemplo, destaco a discussão de Oliveira sobre uma fotografia do “doido de Tor”, um homem da Guiné Bissau. De acordo com o autor, ele foi registrado pela câmera no contexto da produção de um conjunto de imagens da Série Científica. O instantâneo, no entanto, não circulou pelos canais tradicionais, mas permaneceu arquivado. O problema da imagem é que o homem, no momento da tomada, não parece ter seguido os protocolos da pose que dele teria sido requerida. Além de sorrir, tem um olhar oblíquo e a mão estendida para uma pessoa que não aparece no quadro da fotografia. O autor chega à seguinte conclusão:

Um registro fotográfico com uma ação do fotografado fora dos padrões estabelecidos para o registro antropológico não servia para figurar no circuito social da Série Científica. Esta, por estar interessada em identificar e catalogar as características das “raças” que compunham o império, dentro de um procedimento de construção da própria etnicidade [...], descartaria essa imagem fotográfica. Afinal, no processo de isolar qualquer sinal de subjetividade dos seus produtores e conferir um efeito de verdade ao que é expresso nas letras das conclusões dos trabalhos antropológicos, ela precisaria de imagens visuais que fossem capazes de reforçar o que foi dito, e não de criar a dúvida. (Oliveira, 2021, p. 186-187)

Marcus Vinicius de Oliveira abre espaço para a dúvida. Essa pergunta, enterrada há décadas, emerge junto com o sorriso e a mão do homem e pode ser feita hoje. Como o arquivo estabiliza o que, de outra maneira, teria desestabilizado os protocolos de visualidade colonial? “Assim, enquadrar e classificar este homem em outro estado psicológico (a loucura) foi a forma usada para dar sentido a essa imagem no arquivo. Identificá-lo como um louco [...] promovia uma estabilidade para a imagem visual que fugia ao padrão científico”, excluindo-a de “um circuito social mais amplo” (Oliveira, 2021, p. 187).

Oferecendo um pensamento decolonial sem descuidar do rigor metodológico da investigação histórica, o autor argumenta que não basta “enquadrar” as imagens naquele tempo e local, por meio de uma teoria pós ou decolonial. “Precisamos pensar como consumimos e produzimos essas imagens visuais [...], convocar os agentes presentes no contrato civil da fotografia [...] sem que essa ação esteja assentada em referenciais coloniais” (Oliveira, 2021, p. 266).

É uma convocação no passado-agora. Uma das lições do livro é o entendimento de que o intelectual público tem uma responsabilidade ética ao vasculhar os arquivos das experiências traumáticas. Ao suspender a estabilidade semântica, fruto do que John Tagg chamou de “violência do significado” (Tagg, 2009), reinserindo a imagem técnica no circuito público da crítica histórica, estamos apresentando nossas credenciais cidadãs que nos permitem ocupar o contrato civil da fotografia. Mais: colocamo-nos em relação aos que deixaram seus vestígios de interação, diálogo, resistência e luta na superfície das imagens técnicas, o que significa que eles mesmos conquistam seu lugar no contrato fotográfico. Tornar-se contemporâneo do tempo presente dos sujeitos históricos é questionar o que ainda podemos fazer com essas fotografias em nosso próprio tempo.

Referência

AZOULAY, Ariella. Civil imagination: a political ontology of photography. London; New York: Verso, 2012.

AZOULAY, Ariella. The civil contract of photography. New York: Zone Books, 2008.

LOPES, Marcos de Brum. História (__) fotografia: uma apreciação historiográfica. Base de dados de livros de fotografia, 27 abr. 2022. Disponível em: https://livrosdefotografia.org/artigos/36473/historia-fotografia-uma-apreciacao-historiografica. Acesso em: 10 maio 2023.

MAUAD, Ana Maria. Imagens em fuga: considerações sobre espaço público visual no tempo presente. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 252-285, jan./mar. 2018.

MAUAD, Ana Maria. Sobre as imagens na história, um balanço de conceitos e perspectivas. Maracanan, Rio de Janeiro, v. 12, n. 14, p. 33-48, jan./jun. 2016.

OLIVEIRA, Marcus Vinicius. À sombra do colonialismo: fotografia, circulação e o projeto colonial português (1930-1951). São Paulo: Letra e Voz, 2021.

RAMOS, Afonso Dias. Angola 1961, o horror das imagens. In: VICENTE, Filipa L. (org.) O império da visão: fotografia no contexto colonial português (1860-1960). Lisboa: Edições 70, 2014. p. 399-434.

TAGG, John. The disciplinary frame: photographic truths and the capture of meaning. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2009.


Recebida em 4/11/2022

Aprovada em 2/5/2023



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