Acervo, Rio de Janeiro, v. 37, n. 1, jan./abr. 2024

Artigos Livres

O salazarismo entre o lusotropicalismo e a defesa dos valores do Ocidente (1941-1954)

Salazarism between Lusotropicalism and the defense of Western values (1941-1954) / El salazarismo entre el lusotropicalismo y la defensa de los valores occidentales (1941-1954)

Felipe Cazetta

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), campus São Francisco, Brasil.

felipecazetta@yahoo.com.br

Resumo

Através da história intelectual e da análise de discurso buscamos realizar exames das alterações impostas ao regime salazarista, através da nova conjuntura decorrente do pós-Segunda Guerra Mundial. Sob atenção nos estatutos referentes às colônias, especificamente os de 1941 e 1954, e das obras de Gilberto Freyre e Ploncard D’Assac, há o objetivo de compreender as estratégias do salazarismo para se perpetuar no poder e preservar suas possessões territoriais.

Palavras-chave: salazarismo; história intelectual; análise de discurso.

Abstract

Through intellectual history and discourse analysis we seek to examine the changes imposed on Salazar’s regime, through the new situation resulting from the period after the Second World War. Under attention in the statutes referring to the colonies, specifically those of 1941 and 1954, and in the works of Gilberto Freyre and Ploncard D’Assac, is the objective of understanding the strategies of Salazarism to perpetuate itself in power and preserve its territorial possessions.

Keywords: salazarism; intellectual history; speech analysis.

Resumen

A través de la historia intelectual y el análisis del discurso buscamos realizar exámenes de las alteraciones impuestas al régimen de Salazar, a través de la nueva coyuntura resultante del período posterior a la Segunda Guerra Mundial. Bajo atención en los estatutos referentes a las colonias, específicamente los de 1941 y 1954, y en los trabajos de Gilberto Freyre y Ploncard D’Assac, está el objetivo de comprender las estrategias del salazarismo para perpetuarse en el poder y preservar sus posesiones territoriales.

Palabras clave: salazarismo; historia intelectual; análisis del discurso.

As democracias liberais se sagraram vitoriosas entre o encerramento do século XIX e a inauguração do XX. Todavia, os projetos derrotados não foram extintos, tampouco o liberalismo político gozou de hegemonia absoluta como modelo. Em alguns países, a vitória do parlamentarismo e do presidencialismo sobre os regimes monárquico-centralizadores foi estabelecida sobre terreno arenoso. Consequentemente, tais regimes tiveram vida curta, e rica de convulsões políticas, em decorrência da crise de legitimidade.

O período entreguerras (1918-1939) potencializou a vulnerabilidade e a carência de estabilidade, através das consequências diretas dos esforços políticos, sociais e econômicos cobrados pela Primeira Guerra Mundial. Os anseios nacionalistas, as tensões motivadas por disputas imperialistas e a permanência das crises econômicas, das quais a mais traumática, porém não única, ocorreu em 1929, foram igualmente motores importantes para a vulnerabilidade do liberalismo. Diante desses quesitos, as bases da democracia liberal foram corroídas em países de adesão recente ao modelo.

Tomando o mundo como um todo, havia talvez 35 ou mais governos constitucionais eleitos em 1920 (dependendo de onde situamos algumas repúblicas latino-americanas). Até 1938 havia talvez dezessete desses Estados, em 1944 talvez 12, de um total global de 65. (Hobsbawm, 1995, p. 115)

Esta conjuntura fez com que projetos ideológicos de direita autoritária originados na segunda metade do século XIX, reativos ao iluminismo e aos desdobramentos da Revolução Francesa, encontrassem terreno fértil para o florescimento. Constituíam esse grupo concepções políticas derivadas do corporativismo católico; fusões entre liberalismo econômico e conservadorismo político; elementos simpáticos ao campo monárquico inconformados ou descontentes com os rumos tomados pela nação através da República; e por fim, uma versão autoritária e modernizadora de direita, que contribuiu ao repertório ideológico antidemocrático (Payne, 1979, p. 16). Em cenário de convulsões reais ou sentimento partilhado de crise (econômica, política, moral), tais antídotos foram lançados com frequência por movimentos e regimes dispostos a aderir a experiências autoritárias que reprimissem ameaças diversas (erosão das bases políticas, instabilidade econômica, a “corrupção semita”, o desvio da identidade nacional ou o “perigo vermelho”).

Surgida em outubro de 1910, a República portuguesa não obteve sucesso em acomodar grupos opositores à sua existência. Estes se posicionavam em diferentes correntes: remanescentes da monarquia; imbuídos de projetos corporativos conservadores; mobilizados pelas novas experiências vindas do fascismo italiano etc. Após resistir a tentativas de golpe e breves interrupções (a curta experiência de Sidónio Pais, entre 1917-18, por exemplo), a República democrática sucumbiu em 1926, dando lugar à ditadura imposta pelo golpe militar de 28 de maio, posteriormente sucedida pelo salazarismo.

Saído do Centro Acadêmico de Democracia Cristã (CADC), Oliveira Salazar inicialmente possuía a função de estabilizar a economia entre os anos 1928-29, ao ocupar a pasta das Finanças. Progressivamente, avançou sobre os postos centrais de poder, até assumir a presidência do Conselho dos Ministros. Desse modo, o Estado Novo foi instituído como instrumento autoritário de integração entre o corporativismo de viés conservador e o capitalismo (Sousa, 2013, p. 8). Dentro desses objetivos, as colônias em África e Ásia assumiam função imprescindível para os projetos de soberania de Portugal, e como meio de reivindicar posição entre as potências imperialistas europeias, e para isso contou como reservatório de apoio político a Igreja católica.

Em retribuição, Salazar restituiu à instituição eclesiástica funções perdidas durante a Primeira República, destaque feito às missões católicas nas colônias africanas. Estas possuíam a incumbência de educar a população nativa para o nacionalismo português, e através dele (Ferreira, 1974, p. 67). No Estatuto Missionário de 1941 ficava destacada a postura civilizadora das missões, e o estágio de barbárie e primitivismo que o documento atribuía à população nativa dos territórios submetidos à condição de colônia na África.

O etnocentrismo, de modo a posicionar o português à condição de superioridade na escala de civilização, foi um componente do nacionalismo salazarista, e plano central na ideologia colonialista (Léonard, 1997, p. 216). Assim, doutrinas que rejeitavam hierarquias e superioridade racial eram rechaçadas pelas elites políticas e intelectuais afinadas com a ditadura, até o encerramento da Segunda Guerra Mundial, fato que dificultou neste contexto a inserção de teorias tais como o lusotropicalismo de Gilberto Freyre. Como norteador das ações do Estado Novo salazarista, sustentava-se a compreensão de que as colônias eram garantia de vantagens econômicas e destaque a Portugal frente a países destituídos de territórios ou com colônias com menor potencial de recursos possíveis de serem convertidos em riqueza.

Através do Estatuto Missionário, a Igreja, apesar de possuir a competência de instrução oficial, ao fundar e dirigir escolas (Portugal, 1941, art. 3º) nas colônias, ficava subordinada “ao ministro das Colónias, por intermédio do governador da colónia, com a indicação das razões que o determinam” (Portugal, 1941, art. 7º). Nesse documento, entre outros anteriores, destacava-se a situação de tutela, posse e domínio desses territórios, destituídos de soberania e submetidos à autoridade de Portugal. Para tanto, a ditadura salazarista, revestida de sua postura enquanto império, atribuía a responsabilidade administrativa e institucional destas áreas a um ministério exclusivo para os assuntos coloniais. Logo, “as missões católicas portuguesas são consideradas instituições de utilidade imperial e sentido eminentemente civilizador” (Portugal, 1941, art. 2º).

O encerramento da Segunda Guerra Mundial, com a derrota das forças do Eixo, e a emergência dos esforços mais concretos de emancipação colonial mobilizaram alteração de legislação perante os territórios além-mar portugueses. O regime salazarista fez alterações em seus estatutos, preocupado em manter a integridade de seu domínio e repelir investidas tanto externas (representadas pelos interesses dos EUA e URSS durante a Guerra Fria) quanto inerentes aos anseios por independência e soberania dos territórios africanos subordinados.

A postura de destaque à posição imperialista e civilizatória perante suas colônias altera-se de modo sensível, quando analisado o Estatuto dos Indígenas (1954). Nesse documento, se percebia a inserção de algumas concepções, se não decorrentes diretamente do lusotropicalismo, preocupadas em desbotar a relação de domínio e civilização e dar ênfase ao reconhecimento da diversidade étnica como característica predominante em Portugal. Todavia, em sua análise, percebe-se que a legislação não se despiu por completo das hierarquias raciais vigentes na primeira metade do século XX.

No artigo 3º do documento de 1954, em oposição ao Estatuto Missionário (1941), há a definição do indígena, salientando as especificidades a partir dos “usos e costumes próprios das respectivas sociedades”, apontando para a atenção em relação a discriminar etnicamente, através de práticas e crenças, os nativos. Nos parágrafos que compõem o artigo há:

1º - A contemporização com os usos e costumes indígenas é limitada pela moral, pelos ditames da humanidade e pelos interesses superiores do livre exercício da soberania portuguesa.

2º - Ao aplicarem os usos e costumes indígenas as autoridade procurarão, sempre que possível, harmonizá-los com os princípios fundamentais, do direito público e privado português, buscando promover a evolução cautelosa das instituições nativas no sentido indicado por esses princípios.

3º - A medida de aplicação dos usos e costumes indígenas será regulada tendo em conta e grau a evolução, as qualidades morais, a aptidão profissional do indígena e o afastamento ou integração deste na sociedade tribal. (Portugal, 1954)

Nesse estatuto percebia-se que os “indígenas” eram portadores de “usos e costumes”, buscando respeitar, mesmo que teoricamente – mas não na prática –, a autoridade política tribal ou local, apesar de submetê-la administrativamente às instituições portuguesas. Logo, a mobilidade e autonomia continuavam condicionadas aos interesses de Portugal. Deve-se sublinhar a inclinação para a “harmonização” dos costumes indígenas – sempre subordinados aos interesses portugueses, evidentemente –, algo consonante com o lusotropicalismo de Gilberto Freyre.

Outro aspecto, destacado por Helena Wakin Moreno (2022), era a permanência, mesmo que velada, da hierarquização entre as “províncias além-mar” e Portugal, com a manutenção da superioridade deste. Apesar do reconhecimento das especificidades dos “indígenas” em seus costumes, o estatuto de portadores de cultura era usurpado desses povos. Se procedesse de forma contrária, a ditadura salazarista obrigatoriamente teria de reconhecer a civilidade destes grupos dominados, tornando a permanência portuguesa ilegítima nestes territórios. Além disso, o Estatuto do Indigenato (1954) definia critérios para a ascensão dos nativos à cidadania portuguesa (conforme será visto à frente), submetendo os que a pleiteavam à condição vexatória (Moreno, 2022, p. 160).

As reformas, percebidas pela transição da denominação das possessões territoriais de “colônia” para “província”, foram ampliadas com o decreto-lei n. 45.908, de 10 de setembro de 1964, em que, logo no artigo 1º, enunciava a abolição da distinção entre os sistemas de ensino primário elementar aplicados na metrópole e nas demais “províncias ultramarinas”. Todavia, as modificações foram reação à organização e intensificação da luta armada por independência, notadamente em Angola. Desse modo, não tiveram efeito prático nas estruturas de exploração colonial (Ferreira, 1974, p. 119).

Em termos legislativos, as alterações iniciadas a partir de 1954 modificavam a maneira como o salazarismo buscava apresentar Portugal e suas possessões, não mais como um império que impunha sua vontade de forma arbitrária e centralizada. “Na constituição revista, Portugal proclamava-se um Estado ‘pluricontinental’, único no mundo, contendo uma diversidade de povos trabalhando juntos para um objetivo comum” (Meneses, 2011, p. 406).

Este movimento de migrar do status de potência imperialista para “Estado pluricontinental” foi resultado da alteração do contexto pós-Segunda Guerra Mundial, em um esforço da ditadura de Salazar de descolar-se de associações com o fascismo, recorrentes desde os anos 1930. Em entrevista a António Ferro, em 1932, Salazar não rejeitava similaridades, mas demarcava as fronteiras entre o regime português e os fascismos, estabelecendo distância confortável para não se tornar país satélite da Itália:

A nossa ditadura aproxima-se, evidentemente, da ditadura fascista no reforço da autoridade, na guerra declarada a certos princípios da democracia, no seu caráter acentuadamente nacionalista, nas suas preocupações de ordem social. Afasta-se, porém, nos seus processos de renovação. (Ferro, 1932, p. 1)

A derrota das forças do Eixo marcou alteração de comportamento de Salazar, em relação à exploração de territórios na África, como também em suas estratégias diplomáticas e geopolíticas. Empenhou-se em se aproximar progressivamente das potências ocidentais, apesar de não abdicar de sua desconfiança em relação ao imperialismo anglo-saxão e, destacadamente, ao estadunidense. Desse modo, Portugal ingressou como membro fundador em diversas organizações de finalidades variadas, como a Organização Europeia de Cooperação Econômica (Oece, 1948) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan, 1949). Havia o esforço de tornar o regime menos atípico e mais próximo do que representava o bloco ocidental (Léonard, 2017, p. 193), sem descaracterizar a identidade nacionalista que sustentava o apoio interno à ditadura.

Tal cuidado e preocupação do regime salazarista era decorrente das pressões das Organizações das Nações Unidas (ONU), pelo processo de emancipação colonial e encerramento dos impérios. As possessões territoriais de Portugal se viam em risco, igualmente, em vista da configuração que a Guerra Fria tomava, de calibração de poder das superpotências em virtude do número de países satélites. Logo, as investidas de Estados Unidos e União Soviética no intuito de municiar e fomentar grupos interessados na emancipação colonial foram preocupação para a integridade do império português entre os anos 1940 e 1970.

Desse modo, Salazar acionou estratégia em curso pela Secretaria de Propaganda Nacional, ocupada por António Ferro (1933-1944), que consistia em organizar audiências de intelectuais estrangeiros com Salazar e visitas a Portugal, em grupos ou individualmente. O objetivo era despertar simpatia destes ao regime, e através da produção de manuscritos (manchetes em jornais, livros, artigos em revistas) decorrentes das experiências positivas, realizar a propaganda do salazarismo em diferentes países, habilitada pela credibilidade intelectual de seus autores (Santos, 2018, p. 199). Gilberto Freyre e Jacques Ploncard D’Assac foram inseridos nessa estratégia. Utilizaram e foram utilizados pelo regime.


As obras de Freyre e D’Assac para o salazarismo: funções distintas

Gilberto Freyre possuiu intensa produção intelectual, com obras de relevo e importância para o campo científico em diversas áreas das ciências humanas, principalmente na década de 1930. Seus méritos se fazem ao destacar papel ativo do negro na composição da identidade nacional em obras como Casa grande & senzala e Sobrados e mocambos. Com o intuito de compreender o tipo de sociedade que ocorreu no Brasil, de forma abrangente, buscou analisar as faixas climáticas e territoriais similares do globo, de colonização portuguesa.

Ao estabelecer que dessas interações surge a síntese de sociedades similares, elaborou o conceito de lusotropicalismo, onde esboçava que mais que uma posição geográfica e climática, a faixa tropical de colonização portuguesa desenvolveu um tipo de sociedade sui generis, em que a gama comportamental e de interação identificava um conjunto ampliado de práticas culturais, relações sociais e do homem com o ambiente que traziam crédito a Portugal como nação fundadora de uma civilização específica.

Segundo Candeas (2010, p. 161), o conceito de lusotropicalismo foi articulado conscientemente nos anos 1940, a partir da percepção por Freyre de que o patrimônio imaterial das bases construídas pelos portugueses no mundo estava em risco diante do imperialismo alemão e anglo-saxão. Até o encerramento da Segunda Guerra Mundial, qualquer teoria que buscasse explicação do patrimônio português através de uma sociedade resultante da interação cultural, identitária, política e sexual de caráter multiétnico, gerava baixa simpatia por parte da ditadura salazarista. No entanto, como resultado das pressões internacionais sofridas a partir da década de 1950, Salazar tornou-se receptivo aos estudos do lusotropicalismo, por fornecerem legitimidade à permanência da integridade territorial de Portugal, mesmo fora da Europa.

Diante disso, apesar das bases do lusotropicalismo estarem esboçadas em estudos dos anos 1930, foi somente em 1951, a partir do convite feito pelo ministro do Ultramar Sarmento Rodrigues, que Freyre aceitou visitar parte das colônias portuguesas na África (Castelo, 1999, p. 25). Entretanto, antes deste, foram recusadas outras duas tentativas de aproximação, uma delas feita pelo próprio António Ferro, então secretário nacional da Informação. A justificativa para os declínios anteriores estava no caráter comprometedor, por parte de Gilberto Freyre, por tal financiamento se parecer com interesses de propaganda de Estado (Freyre, 1953, p. 23). Assim como Adriano Moreira (que foi membro da Junta de Investigação do Ultramar e ministro do Ultramar), Sarmento Rodrigues buscou redefinir o papel de Portugal no mundo pós-guerra (Pinto, 2009, p. 147), sendo estes os articuladores do terceiro convite e da viagem. Freyre encontrou no convite a oportunidade de atestar materialmente seus estudos do lusotropicalismo diante da excursão em Portugal e por algumas de suas “províncias”.

Em termos práticos, Freyre utilizou-se da viagem para examinar as formas de atuação dos portugueses nos trópicos. Seus escritos tratam com indiferença a interação do africano com o português, com o intuito de perceber novas formas de comportamento, cultura e identidade (Schneider, 2012, p. 255). Isso fica posto diante das analogias e comparações que miram o português como elemento central de análises, ou remetem ao Brasil como parâmetro de medição de estágios.

A viagem iniciou-se em agosto de 1951 e estendeu-se até fevereiro do ano seguinte, fornecendo material para escrever Aventura e rotina. Desse modo, Freyre utilizou os serviços do salazarismo, e produziu ferramentas para a legitimação da soberania portuguesa sobre os territórios em África e Ásia, diante da comunidade internacional.

Internamente, Salazar buscou apoio intelectual de outro manancial, para abastecer o nacionalismo exigido pelo Estado Novo, em vista da base do lusotropicalismo envolver a concepção transnacional de formação de sociedades. Portanto, entre outros intelectuais, Jacques Ploncard D’Assac ofereceu os instrumentos para alcançar este objetivo. Ploncard D’Assac participou da Ação Francesa e, portanto, nutriu concepção de nacionalismo vinculada ao tradicionalismo e integrismo, associando o discurso religioso ao político como forma de construir um modelo de nação. Em vista de seu comprometimento com a república de Vichy, foi acusado de colaboracionismo, condenado a pena de morte (1947), posteriormente convertida a trabalhos forçados em 1949.

Desse modo, D’Assac se exilou em Portugal, associando-se aos círculos políticos conservadores (Desvignes, 2021, p. 51), buscando como estratégia a aproximação de Salazar. Portanto, o então exilado francês tornou-se colaborador do Diário da Manhã, órgão oficial do regime, e cumpriu a função de levar os pensamentos de Salazar para a França através de escritos (Desvignes, 2021, p. 56), inicialmente sob pseudônimo.

Apesar de possuírem correntes doutrinárias e concepções distintas, Freyre e D’Assac estiveram comprometidos de alguma forma com o regime salazarista, através da função de intelectuais, e seus respectivos engajamentos. Tal associação dos intelectuais e o poder não se restringiu aos casos de Gilberto Freyre e Ploncard D’Assac, mas é no próprio percurso de formação dos intelectuais que estabelece contato com a política, seja como apoio ou contestação do status quo.

Tanto para a história intelectual quanto para a história política, as ideologias, as culturas políticas e os sistemas de representação e de valores (Sirinelli, 1990, p. 17) são fundamentais para a composição de análises de trajetórias e formação dos espaços de sociabilidade, movimentos e visões de mundo. O ambiente intelectual possui fronteiras tênues com a política, sendo, portanto, influenciado por fatores similares. Diante desses aspectos, percebe-se que a história intelectual se constitui polimorfa e polifônica, conforme a trajetória destes personagens nela contemplados, tal como suas experiências e espaços de sociabilidade estabelecidos. Por se apresentarem em vários movimentos, revistas e grupos demonstram caminhos por vezes dissonantes e contraditórios para a composição de um arcabouço intelectual capaz de elaborar doutrinas, teorias e visões de mundo. Inevitavelmente, a acepção de intelectual está interligada a fatores socioculturais envolvendo criadores e mediadores culturais (Gomes; Hansen, 2016, p. 28).

Desse modo, a imagem do sujeito trancado em seu gabinete e envolto em livros, ou em uma “torre de marfim”, não é coerente com a definição de intelectual, sendo este revestido por atores sociais, organizações e associações intelectuais ou não, para sua formação. Estas experiências e redes contribuem para a formação, expressão e difusão de intenções e projetos, decorrentes desses laços culturais e políticos estabelecidos (Gomes; Hansen, 2016, p. 12). Assim, Helenice Silva é cirúrgica ao afirmar que “em síntese a história intelectual parece ter por função a restituição das ideias. Elucidando os contextos de produção e de recepção de uma obra, ela possibilita uma melhor apreensão dos universos intelectuais” (Silva, 2002, p. 13).

Com estes enunciados, percebe-se que a ação política é indissociável do conceito de intelectual. Destacamos a importância de se vincular a intenção, interesses e lugar de enunciação de Freyre e D’Assac especificamente, para a compreensão das formas distintas que o salazarismo operou diante de suas obras.

Ao lançar mão das categorias de ideólogos e expertos, estes lugares reservados a cada um ficam sublinhados. Por meio de associação entre as reflexões de Gramsci e Weber, Norberto Bobbio elabora distinção entre os ideólogos (criadores de ideias, sob o esforço de gerar consenso) e expertos – interessados nos conhecimentos-meio, ao posicionarem-se como “conselheiros do príncipe” (Bobbio, 1997, p. 72-73). Portanto, para a realização dos exames acerca dos aspectos de produção e reprodução das ideias, ou das recomendações técnicas criadas pelos intelectuais, antes é necessário detectar o caminho, as ambições e os interesses dos atores envolvidos.

Para a apreensão do contexto, análise do espaço de experiência e suas projeções políticas, para assumir estratégias de vinculação ou oposição ideológica, apoio ou combate a regimes e movimentos, um dos elementos de investigação destes rastros de motivação é posto através do fenômeno geracional. Todavia, o conceito de geração não está associado somente ao quesito biológico/cronológico, mas ligado por experiências traumáticas semelhantes que conduziram ao desenvolvimento de alternativas conjuntas ou similares (Dosse, 2007, p. 47).

Dez anos mais velho que Ploncard D’Assac (1910-2005), Gilberto Freyre (1900-1987) foi um dos representantes do pessimismo e oposição à modernidade, concebendo, ao seu modo, noção de progresso alternativa aos desdobramentos do iluminismo e da Revolução Francesa (Lima, 2011, p. 144). Dessa maneira, o patriarcalismo foi habilitado em sua formação de civilização lusotropical, e a escravidão, em suas obras relacionadas, foi vista como uma etapa, que apesar de cruel, teve como desdobramento a promoção do intercâmbio cultural, e a miscigenação sexual gerando novas identidades.

Esse pessimismo partilhado por Freyre era sentido nos finais do século XIX por parte do mundo latino, notadamente a península Ibérica (Schneider, 2012, p. 78). Desse modo, alguns intelectuais como Miguel de Unamuno e Angel Ganivet (1912) alimentaram debates acerca do não pertencimento da península Ibérica à Europa, ou ao menos sua posição de fronteira, proporcionando uma civilização específica em relação ao restante do continente.

O aspecto negativo como Freyre percebia a modernidade, acompanhado do pessimismo caso a civilização lusotropical abdicasse da herança humanista ibérica, era visto na avaliação feita acerca da Revolução Francesa, e pela expansão do capitalismo liberal dos países anglo-saxões (Inglaterra e EUA). Essas críticas à modernidade e ao legado do iluminismo encontraram ressonância quando Freyre abordou a exploração dos operários em decorrência da Revolução Industrial. Apesar de não negar os efeitos perversos da escravidão, Freyre atenuava-os, ao compará-los ao contexto de exploração capitalista posta em curso nos países da Europa ocidental.

visto em conjunto, o regime de escravidão nos engenhos e nas fazendas brasileiras no século XIX parece ter sido menos despótico do que a escravidão em outras regiões das América; e menos cruel – se se pode admitir grau à crueldade – do que o regime de trabalho na Europa industrial durante os terríveis cinquenta primeiros anos do laissez faire econômico que veio depois da Revolução Industrial. (Freyre, 2001, p. 126)

Ao criar um espaço comparativo através da categoria “crueldade”, abria-se campo de análise entre as civilizações em questão, ou seja, aquela inaugurada pela modernidade e herdeira do iluminismo, e a lusotropical. Assim, Freyre defendia o caráter genuíno e peculiar do patrimônio derivado da colonização portuguesa no mundo, como projeto de progresso alternativo à modernidade capitaneada pelos países anglo-saxões e, de certo modo, pela França. Em decorrência de possuir trajetória distinta, de adesão ao patriarcalismo em detrimento do individualismo liberal, Freyre sustentava que se desenvolveu de fato um modelo democrático no Brasil e nos países inscritos no lusotropicalismo, porém distinto da democracia liberal.

Esse tipo específico de democracia, social/racial e não política, era derivado das formas de organização do sistema de plantação nos engenhos, de maneira a potencializar o contato e a miscigenação. Sempre segundo Freyre, a democracia nessas situações não necessitaria de parâmetros formais e institucionais, mas estaria posta de maneira orgânica na própria dinâmica social. Nesse desenho de desenvolvimento das democracias, a proposta de Freyre revelava-se contraditória e inconciliável com a democracia liberal, dado o caráter patriarcal e clientelista intrínseco às suas bases de formação.

Nesses termos, Freyre apresentou em circuito de palestras lidas no King’s College e nas três principais universidades de Portugal (Porto, Coimbra e Lisboa), em 1937, as consequências positivas do legado português no ato da colonização:

Independente de cor, de posição, de sucesso econômico; pela igualdade – tanto quanto possível – de oportunidades sociais e de cultura para os homens de origens diversas, as áreas de formação portuguesa – formação por meio de mestiçagem – constituem hoje uma antecipação ou, mais do que isso, uma apropriação daquela democracia social de que se acham distantes os povos atualmente mais avançados na prática da tantas vezes ineficiente e injusta democracia política, simplesmente política. (Freyre, 2010, p. 33)

Vale destacar dois pontos externos ao trecho: 1) este foi lido em Portugal por Manuel Múrias, então diretor do Arquivo Histórico Colonial de Lisboa, e integralista de segunda geração; 2) no ano de leitura do texto original, o Estado Novo salazarista já estava em curso. Apesar de não gozar de simpatia imediata do salazarismo, o lusotropicalismo acomodava, como algo natural e típico, o baixo índice de instrução formal, alfabetização e capacitação do indivíduo para a política. Tal discurso, posterior à Segunda Guerra Mundial, foi um dos recursos lançados por Salazar para legitimar a integridade do império português.

Dentro das categorias propostas por Bobbio (1997, p. 74), Freyre comportava-se como um ideólogo. Com o intuito de acomodar o consenso entre as partes, ou seja, o império português, que apresentava entre outros serviços a instrução escolar com índices negativos, e os nativos das colônias, afetados diretamente por tal deficiência, Freyre afirmava a oralidade como elemento formador da civilização lusotropical. O sociólogo pernambucano inclinava-se a ler a realidade perversa de exclusão e analfabetismo através das lentes dos princípios de respeito aos traços que identificavam formas típicas de transmissão de conhecimentos.

Ao longo da faixa lusotropical, tais sociedades não se adaptavam, segundo Freyre, à objetividade e às técnicas de alfabetização, pois transmitiam seus conhecimentos e tradições vitais através de um reservatório de imaginação, vivo e dinâmico, a partir da oralidade (Pallares-Burke, 2005, p. 238-239). Assim, para Freyre, a instrução básica formal não era elemento necessário para o ingresso à cidadania, visto que essa não estaria associada ao elemento político, mas sim às formas de identidade, relacionamento, contato social e sexual entre os povos inscritos no lusotropicalismo. Portanto,

na verdade, ler e escrever são meios de comunicação muito úteis para civilizações industriais e para formas políticas de organização democrática. [...]. Em países como a China, a Índia, o México e o Brasil, as massas não têm hoje, provavelmente, a mesma necessidade de saber ler e escrever, como meios de se modernizarem, que tiveram as massas na Europa Ocidental e nos Estados Unidos durante o século XIX, e mesmo a Rússia soviética no começo desse século. (Freyre, 1971, p. 48; Freyre, 2001, p. 88-89)

Por outro lado, concluía-se em 1947 que a afinidade dos portugueses aos climas tropicais, para fixar colônias, se dava pela própria situação interna de Portugal, que possuía “um clima mais africano que europeu” (Freyre, 2001, p. 81), destacando assim a situação de região de fronteira entre a Europa e a África. Além disso, o contato interétnico era componente da própria formação de Portugal durante seu processo de centralização (Freyre, 2001, p. 80-81). Portanto, a plasticidade do português no mundo era uma característica situada em sua própria origem. Se por um lado, valorizava-se no lusotropicalismo a fluidez, a dinamicidade do intercâmbio cultural na construção de uma civilização; de outro, o lugar do português, enquanto base formadora e constituinte, nunca foi questionado no conjunto das obras de Freyre ao se inclinar aos estudos lusotropicais.

Tal tensão é incorporada ao Estatuto dos Indígenas Portugueses das províncias de Guiné, Angola e Moçambique (1954). Nesse documento, apresenta-se a definição do que se chama de indígena, atento aos usos e costumes nativos (art. 3º); o respeito, em tese, às instituições de natureza política tradicionais dos indígenas, porém desde que conjugadas administrativamente ao Estado português (art. 7º). Todavia, nos artigos posteriores, ressalta-se a distinção existente entre portugueses e nativos das “províncias”, como são mencionadas no documento, em termos de acesso e gozo de direitos políticos. Portanto, o artigo 23 estabelece, explicitamente: “Não são concedidos aos indígenas direitos políticos em relação a instituições não indígenas” (Portugal, 1954). Traçava-se a linha limite que o lusotropicalismo não deveria passar. Os próprios termos de aquisição da cidadania portuguesa implicava ao nativo a perda de sua condição indígena (art. 56).

Em Freyre e nos documentos referentes às relações de Portugal com suas “províncias”, salientava-se a plasticidade do português ao dispersar civilizações que não são mimetismos europeus, mas que não rejeitam alguns aspectos lusitanos. Por isso mesmo, o salazarismo viu nas obras do sociólogo pernambucano o suporte desejado para justificar-se enquanto país pluricontinental, destacando que esta estrutura seria uma forma de o português se afirmar no mundo. Freyre definia o conceito de civilização lusotropical da seguinte forma:

"Civilização lusotropical" é uma expressão que venho sugerindo para caracterizar aquilo que me parece uma forma particular de comportamento, e também uma forma particular do português vir-se realizando no mundo: sua tendência a preferir os trópicos para a sua expansão extraeuropeia, sua capacidade para permanecer com êxito em espaços e ambientes tropicais e a crescer e multiplicar-se. (Freyre, 1971, p. 138).

Diante do exposto, para Freyre o salazarismo demonstrava-se como afirmação da teoria do lusotropicalismo em todos seus aspectos, desde a gastronomia – onde a canja fartamente consumida em Portugal “foi assimilada da Índia pelo português: não é sopa castiça ou peninsular na sua origem” (Freyre, 1953, p. 108) – até o contato entre a administração metropolitana com os nativos das “províncias”. Assim, o conceito de lusotropicalismo afirmava-se sob a vegetação, o clima e a cultura, encontrando nuances e variações secundárias especificamente locais ou regionais (Freyre, 1953, p. 138). Diante de todo o patrimônio imaterial que Freyre percebia, a civilização lusotropical ascendia o próprio regime salazarista à condição de seu perpetuador e protetor: “Admito a superioridade do regime português, em mais de um ponto, sobre outros regimes políticos, aparentemente mais democráticos” (Freyre, 1953, p. 199). O sociólogo pernambucano não via constrangimento em tal afirmação, mesmo com a viagem que resultou no seu Aventura e rotina sendo financiada pelo regime que se punha a elogiar.

A plasticidade do patrimônio lusitano em terras distantes da Europa, e a forma como tal assimilação de diferentes aspectos culturais se acomodava para a composição do lusotropicalismo, segundo Freyre, fez de Portugal um criador de nações, sem, no entanto, perder seus valores europeus, mas acima de tudo lusitanos (Freyre, 1954, p. 5). Apesar de carregar em si valores ocidentais, Freyre entendia que o contato com as regiões e sociedades tropicais transformava e atribuía originalidade à sociedade lusotropical. Segundo Bobbio (1997, p. 73), “os ideólogos são aqueles que elaboram os princípios com base nos quais uma ação é justificada e, portanto, aceita”. Não cabe aqui analisar se havia uma forma cínica ou interessada por parte de Gilberto Freyre, todavia o lusotropicalismo funcionou como instrumento hábil para que o salazarismo pudesse operar dentro do discurso idealizado de harmonia e consenso entre os povos de um país pluricontinental.

Um elemento estratégico afirmado por Gilberto Freyre, para a promoção da miscigenação física e cultural – além do contato com povos distintos ainda na península Ibérica –, esteve na manifestação da religiosidade, a partir de um esforço não etnocêntrico, mas “cristocêntrico”. Portanto, a expansão de Portugal difundia valores cristãos, porém não exclusivamente europeus, distinguindo-se da prática imperialista de outras potências (Freyre, 1961, p. 14). O elemento religioso e a transmissão de valores para regiões distantes da Europa, e não ocidentais, foi ponto ressaltado de maneira distinta para enaltecimento do salazarismo, por Jacques Ploncard D’Assac.

O encerramento da Segunda Guerra Mundial e, principalmente, as décadas seguintes acompanharam superficialmente o processo de desfascistização, com julgamentos em tribunais internacionais. No entanto, nesse período abriu-se espaço para o desenvolvimento de minorias radicais e nacionalistas incitadas pela ameaça de desintegração dos territórios além-mar, componentes do império português (Sardinha, 2013, p. 139). Apesar da fixação no país anterior a este recorte temporal, Jacques Ploncard D’Assac esteve integrado nessas redes estabelecidas pela nova extrema-direita, ao partilhar e construir vocabulário comum que trouxesse significado ao sentimento de nacionalismo extremado, e portador da mensagem onde Portugal representaria o bastião de defesa dos valores do Ocidente (D’Assac, 1958, p. 200).

Intrinsecamente, a religião cristã era componente deste conjunto de significados que codificavam a representação de civilização, e por isso Salazar era posicionado como defensor incondicional da Igreja, diante das diversas ameaças vindas da maçonaria ao comunismo. Para além de um traço de personalidade, D’Assac entendia Salazar possuído de um dever, componente de sua essência, quando se abordava a defesa da fé e da instituição católica. Na biografia do ditador, D’Assac afirmou: “Quando se tratava de defender a Igreja, Salazar nunca hesitava. É mesmo o único compromisso que vemos assumir na juventude, quando a política parecia não o atrair” (D’Assac, 1989, p. 20) Organizada de forma linear, onde o destino fosse progressivamente se encaixando sem grandes contradições, D’Assac apresentou um Salazar comprometido com a defesa da instituição católica.

Neste quadro, Ploncard entendia a democracia como elemento inconciliável com a Igreja, de modo a justificar a existência da ditadura como mecanismo de proteção diante da ameaça de violação e corrupção realizadas quando em contato com instituições democráticas. A incompatibilidade se mostrava nas bases formadoras de ambos os sistemas. Se a Igreja pressupunha a moralidade como algo natural e consequência da criação divina, a democracia, por sua vez, respeitaria apenas a “lei do número” e a decisão da maioria (D’Assac, 1989a, p. 165). Dito isso, a democracia negaria a noção de hierarquia.

Por outro lado, seria no salazarismo que o cristianismo não somente estaria protegido como encontraria estrutura orgânica para se desenvolver em campo religioso e fornecer bases políticas para os regimes de governo, após a Segunda Guerra Mundial, como alternativa às forças em confronto durante o conflito. Novamente ao acionar os modelos de Bobbio (1997, p. 72) para os intelectuais, D’Assac buscou estimular aspectos que entendia serem fundamentais para a orientação da ditadura de Salazar, comportando-se como “conselheiro do príncipe” ao sinalizar o conhecimento-meio para, se não a radicalização do regime, sua perpetuação e reprodução. Ao contrário dos usos das obras de Freyre, os escritos de D’Assac pelo salazarismo não tinham objetivo de legitimidade através da criação de ideias, mas sua transmissão e mesmo tradução das representações politicamente relevantes.

Portanto, Salazar mais utilizava-se destes intelectuais (e Freyre não estava excluído) do que se deixava influenciar por eles. As divulgações e vulgarizações do salazarismo ocorriam através dos esforços de D’Assac a partir de, entre outros serviços, emissões de rádio do programa La Voix de l’Occident, transmitidas de Lisboa nos anos 1960, como também dos números da revista Découvertes (1965-1974), conduzida por Jean Haupt, e Sardinha (2013, p. 143) aponta para evidências de financiamento de publicação pela Secretaria Nacional de Informação e pelo Ministério das Corporações.

Na biografia de Salazar, escrita por D’Assac, havia a organização de trajetória linear e maniqueísta, onde o ditador traçava caminho para a harmonia geral e combatia as forças opositoras, ou seja, os judeus, comunistas, franco-maçons, que por se posicionarem contrários à Igreja, afrontavam também o regime de Salazar.

Salazar pensa que uma vez corrigidos, à luz dos princípios cristãos, os excessos do nacional-socialismo e do fascismo, e tendo as democracias abandonado seu arcaico liberalismo, uma espécie de harmonia se imporá em torno dum sistema geral de pensamento que não estará muito afastado do seu. (D’Assac, 1989, p. 161)

Tais projeções e expectativas de futuro, por vezes muito distantes da realização, são representações de projetos políticos dos quais se nutria investimento. A partir da análise de discurso se percebe que tais palavras transcendiam os limites do Estado português, com esforços de irradiação ideológica do modelo de extrema-direita salazarista. Para além da construção de narrativa biográfica, D’Assac utilizava-se da trajetória de Salazar como mecanismo para apresentar seus anseios nas entrelinhas, portanto buscando lançar através de camadas de significação discursos dotados de referenciais políticos afinados com suas propostas.

Diante dessas premissas, a leitura do discurso como documento histórico não pode ocorrer de forma descarnada, mas sim, vinculando o emissor aos seus receptores, e ambos inscritos em um determinado contexto. Desse modo, a composição e o entendimento da mensagem, estruturada em camadas, pressupõe igualmente e inevitavelmente, sua recepção (Charadeau, 2006, p. 268). Portanto, o discurso, interessado em mobilizar determinada ação, está inscrito em uma relação de forças (posições dispostas hierarquicamente de quem fala, sobre quem recebe a mensagem), tal como associado a laços sociais (necessidade de o discurso atingir seus pares para a recepção não conter ruídos de significados) (Charadeau, 2006, p. 255). Tal atenção é fundamental, haja vista o discurso não ser fechado em si, porém referencial a um discurso anterior e direcionado para outros (Orlandi, 2009, p. 62). Assim, longe de ser uma análise objetiva, a detecção das condições e contexto de produção do discurso pelo autor da fonte torna-se crucial para as análises.

Quando se enunciava que desde o início dos anos 1930, portanto do surgimento do Estado Novo, Salazar considerava a formação de um império multirracial e pluricontinental (D’Assac, 1989, p. 76), observa-se o esforço de D’Assac por atualizar suas propostas ideológicas. Situando o texto ao seu contexto de produção, acusa-se esse exercício de modular, adaptar e apropriar a mensagem a uma recepção favorável tanto à imagem criada de Salazar quanto à obra produzida pelo autor. Desse modo, não o salazarismo em si, mas a imagem que se desejava ter do salazarismo passou por alterações, seja através de legislações com baixa efetividade prática (por parte de ministros e deputados), seja por textos e doutrinas construídos em benefício do regime por intelectuais, no esforço de reorientar o papel de Portugal no mundo na segunda metade do século XX.

A apresentação desse projeto multiétnico, por exemplo, que acomodava harmonicamente todas as raças, era decorrente das exigências ditadas pelo contexto de produção, e não do espaço temporal narrado. O Acto Colonial (1930) atestava justamente o caráter etnocêntrico da relação de Portugal com suas colônias, ou seja, o contrário de qualquer proposta multirracial. Esses solavancos, se examinado o período entre o imediato pós-Segunda Guerra Mundial e a publicação da biografia, que se submete à percepção do Estado construído por Salazar, são explicitados quando Ana Isabel Desvignes (2021, p. 74) apresenta os motivos de associação e adesão de Ploncard D’Assac ao salazarismo:

Jacques Ploncard D’Assac não ignorava tampouco o discurso salazarista sobre o império. Quer dizer que d’Assac conhecia perfeitamente o universo mítico do regime, apoiado na retórica produzida em torno das virtudes da ‘raça’, da missão e destino excepcionais de Portugal.

Tal panorama apresentado por Desvignes evidencia o revestimento etnocêntrico inerente ao projeto do Estado Novo referente ao seu império, porém ausente na biografia de Salazar produzida por Ploncard D’Assac. Todavia, esse caráter hierarquizante ressaltado por Ana Isabel e obscurecido em D’Assac, emerge no Estatuto dos Indígenas, de 1954, apesar da proposta do documento ser justamente atribuir maior relevância à diversidade étnica e suas funções políticas, mas nunca administrativas, locais nas regiões de domínio português em África. Nesse aspecto, o artigo 56 do referido documento, entende que o “indígena” pode abdicar de sua origem e vincular-se à cidadania portuguesa, desde que cumpridos alguns critérios:

a) Ter mais de 18 anos;

b) Falar corretamente a língua portuguesa;

c) Exercer profissão, arte ou ofício de que aufira rendimento necessário para o sustento próprio e das pessoas de família a seu cargo, ou possuir bens suficientes para o mesmo fim;

d) Ter bom comportamento e ter adquirido ilustração e os hábitos pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses;

e) Não ter sido notado como refractário ao serviço militar nem dado como desertor. (Portugal, 1954)

Estas demandas comporiam as provas para a emissão de atestado de bons antecedentes do pleiteante à cidadania portuguesa. Desse modo, o “tornar-se português”, conforme apresentado no documento, era um mecanismo de promoção do “indígena” em seu estatuto político e civil. Salientava-se o etnocentrismo da metrópole e da ditadura salazarista em seu delineamento acerca da compreensão do império. Fazendo remissão a textos produzidos por D’Assac, próximos ao contexto do Estatuto dos Indígenas, de 1954, percebe-se que a própria definição de nacionalismo estabelecida constrangia o entendimento plural, em termos étnico-raciais, da configuração de um Estado, inscrito em seus projetos políticos.

Bastante próximo das concepções da Ação Francesa, da qual fez parte, ele entendia o nacionalismo como indissociável das tradições nacionais. Assim, a nação era permeada pela formação de mitos, ideias e concepções históricas para a sua emergência, e o nacionalismo era o seu bastião contra elementos refratários estrangeiros (D’Assac, 1958, p. 67). Logo, a nação nessa definição estava inscrita aos limites do território, portador das tradições construídas em solo europeu, mas antes disso, exaltava a relação do nacional com sua terra, sendo a propriedade fundiária a chancela e o atestado desta nacionalidade. Portanto, nessa premissa, era inacessível a nacionalidade portuguesa por um nativo de território colonial.

Nesse ponto, é crucial retomar os alertas que Pierre Bourdieu (2002, p. 4-5) lançava referente à circulação de textos e discursos, ou seja, infelizmente, os escritos, ao atravessarem fronteiras, não são acompanhados de seus respectivos contextos. Não há um livre intercâmbio intelectual em escala internacional; ao contrário, estas produções são carregadas e indissociáveis de seus espaços sociais inscritos no contexto de produção, isto é, de seu espaço de enunciação. Logo, é importante posicionar o produtor do discurso ou do texto em si para localizar seu espaço de enunciação e situá-lo política e historicamente.

Apesar do exílio em Portugal, D’Assac não se desvinculou dos projetos políticos de extrema-direita, inclusive operando como elemento de trânsito dos discursos de Salazar para a língua francesa. Desse modo, não apenas funcionava como um tradutor, mas como elo transnacional de diversos grupos e células com afinidade ou ligação fascista ou de extrema-direita de outras matrizes ideológicas. Ana Desvignes (2021, p. 76) examina que a proximidade com Salazar era mediada com sua identidade e interesse em que tais projetos pudessem ser de alguma forma revitalizados na França. A associação entre política e religião cristã se amalgamava tanto no regime de Salazar quanto nas concepções de D’Assac, de modo a gerar representações comuns de referentes e projetos associados ao repertório político e cultural. Assim, ao se vincular a Salazar, o que D’Assac defendia era uma representação nacionalista, católico-autoritária, conservadora e etnocêntrica de Ocidente.

Considerações finais

A relação dos intelectuais com o poder não deve ser concebida de forma dicotômica ou maniqueísta. Se por um lado Salazar utilizou-se de arcabouços teóricos e intelectuais, tal como da imagem de seus autores para legitimar posições do Estado Novo, por outro, estes intelectuais posicionavam-se no lugar de conselheiros de Estado, ou ao menos buscavam vantagens dentro e fora de seu campo, em decorrência do trânsito que politicamente desfrutavam.

Além desse aspecto imediato, os intelectuais associam a teoria apresentada ao contexto em que estão inscritos, ora como atestado de coerência e solidez de sua forma de pensamento, ora utilizando estas análises para projetar, de forma interessada, modelos de Estado e regime em que estejam afinados ideologicamente. Em ambos os casos, Gilberto Freyre e Ploncard D’Assac podem ser acomodados.

A contrapelo, a adesão e cooptação de intelectuais por ditaduras torna evidente que um regime por si, ainda que lance mão de repertório autoritário e repressor, não tem capacidade de se perpetuar. Assim, alterada a conjuntura internacional, Salazar necessitou modificar não somente sua legislação perante as colônias, como a própria forma de se relacionar internacionalmente com as potências vitoriosas. Tal alteração não poderia ocorrer em movimentos bruscos e imediatos, sob o risco de proporcionar estranhamento entre os adeptos e simpatizantes da ditadura, em virtude de uma possível descaracterização das propostas sustentadas pelo Estado Novo durante a Segunda Guerra Mundial, e anterior a ela.

Assim, o auxílio das doutrinas do lusotropicalismo de Gilberto Freyre, amortecidas pela compreensão de Portugal como bastião do cristianismo e dos valores ocidentais (sustentados por D’Assac), forneceu as bases para que o salazarismo pudesse se perpetuar, apesar da necessidade de adaptação ao novo contexto. Desse modo, se as ações em relação às colônias foram reativas, em decorrência da organização das lutas por independência do domínio português, no nível do discurso Portugal se enunciava como liderança de um modelo de civilização harmonioso, tolerante e particular.

Dessas mensagens contraditórias, ora como civilização lusotropical, ora como defensor da civilização ocidental, o salazarismo irradiava significados distintos conforme o público-alvo desejado. A partir da contribuição dos intelectuais na política, o salazarismo pôde se equilibrar e negociar sua posição dentro das novas disposições de poder geopolítico do pós-Segunda Guerra Mundial, e em parte da Guerra Fria.


Este artigo faz parte do projeto “Sob o signo da diversidade: o protagonismo latino-americano nos debates da Unesco”, Edital Universal n. 18/202 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Referências

BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo, 1997.

BOURDIEU, Pierre. Les conditions sociales de la circulation international des idées. Actes de la recherche en sciences sociales, v. 145, p. 3-8, dez. 2002.

CANDEAS, Alessandro. Trópico, cultura e desenvolvimento: a reflexão da Unesco e a tropicologia de Gilberto Freyre. Brasília: Unesco; Liber Livro, 2010.

CASTELO, Cláudia. O modo português de estar no mundo: o lusotropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961). Porto: Edições Afrontamento, 1999.

CHARADEAU, Patrick. O discurso político. In: EMEDIATO, Wanderet al (org.). Análise de discurso: gêneros, comunicação e sociedade. Belo Horizonte: Núcleo de Análise de Discurso, Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos, Faculdade de Letras da UFMG, 2006.

D’ASSAC, Jacques Ploncard. Doctrines du nationalisme. Paris: Editions Notre Combat: National – Social – Radical, 1958.

D’ASSAC, Jacques Ploncard. Salazar: a vida e a obra. Lisboa; São Paulo: Editorial Verbo, 1989.

D’ASSAC, Jacques Ploncard. La Iglesia ocupada. Buenos Aires: Ediciones Fundacion San Pio X, 1989a.

DESVIGNES, Ana Isabel Sardinha. Em defesa do Ocidente: cartas de Jacques Ploncard D’Assac a Salazar (1951-1968). In: CAZETTA, Felipe (org.). Direitas ontem e hoje. Rio de Janeiro: Eulim, 2021.

DOSSE, François. La marcha de las ideas: historia de los intelectuales, historia intelectual. Valencia: Univérsitat de València, 2007.

FERREIRA, Eduardo de Sousa. Le colonialism portugais en Afrique: la fin d’une ère – les effets du colonialisme portugais sur l’éducation, la science, la culture et l’information. Paris: Les Presses de l’Unesco, 1974.

FERRO, Antonio. Salazar: o homem e sua obra – III. A ditadura e o seu contacto com a nação. Diário de Notícias, Lisboa, ano 88, n. 24.028, quarta-feira, 21 de dezembro de 1932.

FREYRE, Gilberto. Aventura e rotina: sugestões de uma viagem à procura das constantes portuguesas de caráter e ação. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1953.

FREYRE, Gilberto. Eminências pardas no desenvolvimento português. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 de janeiro de 1954.

FREYRE, Gilberto. O luso e o trópico: sugestões em torno dos métodos dos portugueses de integração dos povos autóctones e de culturas diferentes da Europa num complexo novo de civilização: o lusotropical. Lisboa: Comissão executora da comemoração do V centenário da morte do infante d. Henrique, 1961.

FREYRE, Gilberto. Novo Mundo nos trópicos. São Paulo: Editora Nacional; Editora da USP, 1971.

FREYRE, Gilberto. Interpretação do Brasil: aspectos da formação social brasileira como processo de amalgamento de raças e culturas [1947]. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

FREYRE, Gilberto. O mundo que o português criou. São Paulo: Realizações, 2010.

GOMES, Angela de Castro; HANSEN, Patrícia Santos. Apresentação – Intelectuais, mediação cultural e projetos políticos: uma introdução. In: GOMES, Angela de Castro; HANSEN, Patrícia Santos (org.). Intelectuais mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

LÉONARD, Yves. Salazarisme et lusotropicalisme, histoire d’une appropriation. Lusotopie, p. 211-226, 1997.

LÉONARD, Yves. Salazar visto de fora: viver habitualmente? In: GARCIA, J. L.; ALVES, T.; LÉONARD, Y. (org.). Salazar, o Estado Novo e os media. Lisboa: Edições 70, 2017.

LIMA, Matheus Silveira. Portugal e iberismo na sociologia política brasileira: miscigenação, patriarcalismo e centralização. Tese (Doutoramento em Sociologia) – Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita”, 2011.

MENESES, Filipe Ribeiro de. Salazar: biografia definitiva. São Paulo: Leya, 2011.

MORENO, Helena Wakin. Intelectuais de Angola na casa dos estudantes do Império: itinerâncias, mediações e redes de apoio (Lisboa, 1944-1965). Tese (Doutoramento em História) – Universidade de São Paulo, 2022.

ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2009.

PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Gilberto Freyre; um vitoriano dos trópicos. São Paulo: Editora Unesp, 2005.

PAYNE, Stanley G. Fascismo: un documentado estúdio comparativo de los regímenes y movimentos que han ostentado el nombre fascismo. Madrid: Alianza Editorial, 1979.

PINTO, João Alberto da Costa. Gilberto Freyre e o lusotropicalismo como ideologia do colonialismo português (1951-1974). Revista UFG, ano XI, n. 6, p. 145-160, jun. 2009.

PORTUGAL. Decreto-lei n. 39.666, 20 de maio de 1954. Estatuto dos indígenas portugueses das províncias da Guiné, Angola e Moçambique.

PORTUGAL. Decreto-lei n. 31:207. Diário do Governo, sábado, 5 de abril de 1941. Estatuto Missionário.

SANTOS, José Reis. Retóricas do fascismo: processo de difusão e recepção do Estado Novo no contexto dos processos de transição institucional da Europa da Nova Ordem. Tese (Doutoramento em História Contemporânea) – Universidade Nova de Lisboa, 2018.

SARDINHA, Ana Isabel. Découvertes. La Revue Français de Lisbone (1964-1974): présences du nationalisme radical europeen au Portugal des années 1960 et 1970. In: DARD, Olivier (dir.). Supports et vecteurs des droites radicales au XX siècle (Europe/Amériques). Bern: Peter Lang, 2013.

SCHNEIDER, Alberto Luiz. Iberismo e lusotropicalismo na obra de Gilberto Freyre. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 5, n. 10, p. 75-93, dez. 2012.

SCHNEIDER, Alberto Luiz. Charles Boxer (contra Gilberto Freyre): raça e racismo no Império português ou a erudição histórica contra o regime salazarista. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 26, n. 52, p. 253-273, jul./dez. 2013.

SILVA, Helenice Rodrigues da. Fragmentos da história intelectual: entre questionamentos e perspectivas. Campinas: Papirus, 2002.

SIRINELLI, Jean-François. Intellectuels et passions françaises: manifestes et petitions au XX. Paris: Librarie Arthème Fayard, 1990.

SOUSA, Jorge Pais de. O Estado Novo como um fascismo catedrático: fundamentação teórica de uma categoria política. Intellèctus, v. 12, n. 2, p. 1-30, 2013.

UNAMUNO, Miguel de; GANIVET, Angel. El porvenir de España. Madrid: Renacimiento Sociedad Anonima Editorial, 1912.

Recebido em 22/3/2023

Aprovado em 28/8/2023


Esta obra está licenciada com uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.