Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 3, set./dez. 2023

Artigos Livres

Os arquivos digitais e a escrita da história a partir das fontes on-line

Digital archives and the writing of history from on-line sources / Archivos digitales y escritura de la historia a partir de fuentes en línea

Caroline Garcia Mendes

Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professora adjunta no curso de História do Instituto de Geografia, História e Documentação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil.

caroline.mendes@ufmt.br

Resumo

Este artigo procura discutir o acesso às fontes históricas para a escrita da história tendo em vista a digitalização dos acervos em todo o mundo. Assim, discorre-se sobre a disponibilidade da documentação através da internet e os limites inerentes à mediação da tecnologia digital. É necessária a reflexão sobre o trabalho com as fontes históricas digitalizadas, em razão de sua imaterialidade.

Palavras-chave: humanidades digitais; pesquisa histórica; arquivos digitais.

Abstract

This article aims to discuss the access to primary sources in the writing of history, taking into account the digitalization of archives catalogues around the world. Thus, it discusses the availability of documentation on the internet and the inherent limitations behind the mediation exercised by the digital technology. Reflection on working with digitized historical sources is necessary, given their immateriality.

Keywords: digital humanities; historical research; digital archives.

Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir el acceso a fuentes históricas para la escritura de la historia teniendo en cuenta la digitalización de las colecciones en todo el mundo. Por lo tanto, se aborda la disponibilidad de la documentación a través de internet y los límites inherentes a la mediación de la tecnología digital. Es necesaria la reflexión sobre el trabajo con las fuentes históricas digitalizadas, dado su carácter inmaterial.

Palabras clave: humanidades digitales; investigación histórica; archivos digitales.

A tecnologia não é boa, nem má, e também não é neutra

Kranzberg apud Lucchesi (2014)


Quando comecei minha iniciação científica na Universidade Federal de Viçosa (UFV), descobri os documentos do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa através do Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Eram dezenas de CD-ROMs divididos por capitanias, onde podíamos ter acesso à troca de cartas entre a Coroa portuguesa e os oficiais em terras brasílicas.1 A partir desses documentos, aprendi paleografia, transcrevi as cartas dos governadores-gerais – tema da pesquisa do professor Francisco Cosentino, orientador da minha pesquisa na UFV – e um mundo de possibilidades se abriu dali em diante. Foi a partir daquelas cartas que escrevi meu projeto de mestrado, desenvolvido na Unicamp, e foi Francisco Barreto, o governador-geral tema da minha dissertação, quem me fez descobrir a existência do Mercurio Portuguez e deu origem ao meu interesse pelas notícias ibéricas – tema de minha tese de doutorado.

Menos de duas décadas depois, a situação do acesso aos acervos internacionais no Brasil mudou completamente. Como explica o filósofo Stefano Quintarelli, ainda que o progresso seja compreendido normalmente enquanto um processo linear, na tecnologia ele se dá de maneira exponencial: “no primeiro período, o desempenho dobra, no segundo quadriplica, no terceiro octuplica e assim por diante” (Quintarelli, 2019, p. 53). Os avanços tecnológicos se sobrepõem e não só os equipamentos para a leitura de CD-ROMs já caíram em desuso como os principais arquivos e bibliotecas do mundo possuem seus catálogos on-line e parte de seus acervos disponíveis para consulta pela internet. Se um pesquisador da década de noventa do século XX estivesse escrevendo este trabalho, ele poderia lembrar ainda o deslocamento físico até os documentos necessários à sua análise, bem como a consulta a fichas catalográficas guardadas em armários e escritas à mão por bibliotecários. Por fim, a pandemia de covid-19, que modificou os hábitos de todo o planeta a partir de 2020 – digo “a partir” e não apenas naquele ano já que após o isolamento social mantivemos parte dos cuidados e práticas adquiridos naquele momento –, fez com que nos adaptássemos “na marra” às tecnologias que muitas vezes ignorávamos, como as reuniões on-line, a escrita em conjunto através dos documentos compartilhados e a utilização da nuvem como maneira de guardar e acessar fontes históricas e bibliográficas.

Penso as questões que serão aqui apresentadas partindo da perspectiva das humanidades digitais e das mudanças pelas quais o ofício dos historiadores e historiadoras vem passando com a utilização das tecnologias digitais e da internet. As humanidades digitais tratam dos “novos modos de produção acadêmica e de unidades institucionais para a pesquisa, ensino e publicações colaborativas, transdisciplinares e permeadas pelas tecnologias computacionais”, explorando um mundo onde a mídia impressa “não é mais o meio primário no qual o conhecimento é produzido e disseminado” (Burdick et al., 2020, p. 71). Essas mudanças estruturais e também de práticas de pesquisa serão o tema deste artigo, que pretende discutir as transformações tecnológicas e seus impactos na pesquisa histórica no século XXI.

A “virada digital” na pesquisa historiográfica

Enquanto nos anos 2000, como mencionei no início deste trabalho, os estudantes de graduação em sua maioria – e sobretudo em cursos de história do interior do país – dependiam de CDs, microfilmes e de documentação presente em acervos locais, nos dias de hoje é possível encontrar trabalhos de conclusão de curso e monografias de história sendo desenvolvidas a partir de documentos digitalizados da Fundação Biblioteca Nacional,2 assim como da própria Biblioteca Nacional de Portugal3 e do Arquivo Nacional da Torre do Tombo,4 para citar apenas as maiores instituições em língua portuguesa. Não só em história, mas em todas as áreas, é inegável o aumento da mediação da tecnologia digital nas pesquisas. Como explicam Alexandre Fortes e Leandro Guimarães Marques Alvim,

em geral, a incorporação da tecnologia digital ao trabalho dos pesquisadores ocorre de maneira mais ou menos casual, à medida que os equipamentos eletrônicos se tornam mais acessíveis, os softwares se tornam mais conhecidos e amigáveis e as plataformas se tornam componentes obrigatórios das mais diversas atividades inerentes à vida acadêmica. (Fortes; Alvim, 2020, p. 209)

O uso da tecnologia digital pelos historiadores, contudo, não se iniciou com a era da internet. Já na década de setenta do século XX, Michel de Certeau chamava a atenção para a profunda mudança no fazer historiográfico a partir do uso do computador e das pesquisas baseadas em fontes seriadas – cujos inventários só eram possíveis com a utilização de programas informáticos para a construção dos bancos de dados (Thompson Flores, 2015).

Nos últimos anos, historiadores de todo o mundo se deparam com uma mudança fundamental de paradigmas: a saída de uma cultura da escassez para uma cultura da abundância (Rosenzweig, 2011). As tecnologias digitais removeram da vida universitária inúmeros limites antes enfrentados pelos pesquisadores “analógicos”, como o acesso a trabalhos acadêmicos de diferentes partes do mundo e fontes primárias cuja análise dependia sobretudo do deslocamento físico até seus acervos. A digitalização, realizada por instituições de pesquisa e ensino ou por empresas,5 vem redefinindo as possibilidades de investigação acerca de temas muito distantes do cotidiano universitário brasileiro – mesmo que o idioma ainda seja um empecilho importante a ser considerado.

A digitalização de fontes históricas e sua disponibilização de acesso on-line vem significando, dessa forma, a expansão das pesquisas e o trabalho coletivo entre instituições ao redor do mundo.6 A pesquisadora Anita Lucchesi, contudo, é categórica em afirmar que passamos por uma revolução dos meios digitais, mas não temos “as competências necessárias para navegar criticamente e efetivamente avaliar e criar informações utilizando as tecnologias hoje disponíveis” (Lucchesi, 2014, p. 49). Essa “virada digital” que modificou os métodos da historiografia, dessa forma, não veio acompanhada de suficiente reflexão sobre o tema. André Pereira Leme Lopes conclui:

Trabalhar em dispositivos digitais acessando um espaço de informação igualmente digital não é análogo a trabalhar com papel e lápis em uma biblioteca/arquivo incomensurável. A maneira como a informação é encontrada é diferente, o modo como a examinamos é distinto, o jeito como a compilamos e separamos é outro. Ou seja, a pesquisa histórica realizada em meio digital é diversa da pesquisa histórica realizada em arquivos tradicionais. (Leme Lopes, 2018, p. 161-162)

O historiador chama a atenção para o que denomina de “remidiatização”, ou seja, o processo de reprodução de um conteúdo em uma mídia diferente, ação cuja intenção é passar despercebida e invisível, mas que obviamente interfere na experiência comunicacional. Um texto impresso da Época Moderna ou um jornal do início do século XX não é o mesmo ao ser visualizado através da tela do computador: seu conteúdo pode ser acessado e talvez isso seja suficiente, mas importa pensar os limites dessas versões dos documentos para a ação historiográfica.

Digitalização das fontes históricas: possibilidades e limites

A abundância de fontes de pesquisa para o trabalho dos historiadores – para permanecer no termo utilizado por Roy Rosenzweig (2011) – é inversamente proporcional à preocupação com relação às mudanças necessárias nos processos de escrita da história e nos questionamentos relacionados aos acessos (ou não) a determinadas fontes de investigação. Assim, é necessário trazer duas definições complementares sobre o que é um arquivo. A primeira delas o entende enquanto uma instituição de preservação de materiais para usos futuros. A segunda compreende o arquivo enquanto prática, enfatizando que “arquivar é deliberar sobre o lembrar e o esquecer, é a manifestação da autoridade sobre o legado da experiência humana”, ou seja, é um dispositivo de poder (Marino et al., 2020).

Desse modo, da mesma forma que existem milhões de fontes de pesquisa disponíveis em diferentes acervos on-line, certamente há milhões delas que talvez nunca apareçam nas tecnologias digitais. Sua digitalização ou a falta dela direciona as pesquisas que podem ser realizadas em todo o mundo e as perspectivas adotadas a partir desse acesso. O arquivo digital deve aparecer enquanto objeto das pesquisas na medida em que permite ou impede que diferentes investigações sejam realizadas. Se o ciberespaço7 encurta as distâncias, como afirma Pierre Levy, ele aproxima determinadas pessoas de objetos escolhidos para constarem nesse mundo imaterial (2010).

A fonte de pesquisa digitalizada e disponível nesses arquivos, dessa forma, “se integra no universo dos usos eletrônicos do passado que demarcam a atualidade e ratificam a inserção dos arquivos na era da reprodutibilidade técnica” (Freitas; Knauss, 2009, p. 6). O acesso a esses documentos digitalizados se dá sobretudo a partir de bancos de dados confeccionados pelas próprias instituições de guarda, como bibliotecas e arquivos, preocupadas com a acessibilidade de seus acervos. Ainda que parte dessa documentação não esteja digitalizada – e provavelmente isso nunca ocorra por completo – os bancos de dados são o primeiro passo para que pesquisadores de todo o mundo saibam onde encontrar as fontes para seus trabalhos, mesmo que tenham de ir pessoalmente até o acervo, ou pedir (e na maioria das vezes, pagar) pela digitalização de algum documento.

É bastante comum que tudo o que envolve recursos computacionais seja visto como objetivo e imparcial; programas, algoritmos e aplicativos não estariam, assim, sujeitos à subjetividade humana e a erros de julgamento advindos dessa subjetividade. Diversos pesquisadores da área vêm alertando que esse senso comum sobre o mundo da informática não é verdadeiro, tendo em vista que esses recursos são construídos por seres humanos e acabam trazendo em seus códigos questões nas quais esses mesmos humanos estão inseridos em suas vidas – a título de exemplo, há pouco tempo um amplo debate sobre o racismo e o machismo presente nos algoritmos de diferentes redes sociais tomou forma, enfatizando que temas complexos não podem ser deixados a cargo de inteligências artificiais (Cruz, 2021; Araújo, s.d.).

Os sistemas de busca a partir de bancos de dados virtuais, assim, são a porta de entrada dos historiadores em diferentes acervos de todo o mundo. Porém, como explica o pesquisador Nelson Bondioli, os bancos de dados costumam ser entendidos “como meros meios de se acessar fontes, como se fossem ferramentas transparentes desprovidas de aspectos subjetivos, fora de um campo discursivo” (2021, p. 126). Esses sistemas de busca podem auxiliar, mas também colocar empecilhos, além de limitar de diferentes maneiras a partir de como e com quais intenções foram construídos. Bondioli chama a atenção para a opacidade das diferentes decisões tomadas previamente e que direcionam a utilização dos bancos de dados pelos interessados em acessar as informações. Mais uma vez, para exemplificar situações cotidianas na pesquisa histórica, não é incomum que a busca no catálogo virtual da Biblioteca Nacional de Portugal seja infrutífera a partir da maneira como escrevemos o título do documento procurado: se atualizado à ortografia atual, ou conforme consta em seu original; a troca da letra U pela V, por exemplo, pode invalidar a busca, ainda que o documento sabidamente esteja presente no catálogo. Entradas incorretas também não são difíceis de serem encontradas em bancos de dados de arquivos, já que seria impossível seus organizadores serem especialistas nos mais diversos documentos catalogados.8

Além do catálogo dos documentos encontrados no acervo, muitos sistemas de busca permitem localizar termos no interior de um conjunto de fontes históricas, dinamizando a pesquisa e fazendo com que o investigador vá direto às palavras-chave. Essa dependência do sistema de busca, porém, pode simplesmente descontextualizar a informação ou deixar passar outras menções apenas pela troca de uma letra ou a utilização de outro termo (que o próprio pesquisador pode desconhecer), o que não aconteceria se o pesquisador estivesse lendo todo o material. A simples “extração da informação”, assim, é rápida na medida em que leva o historiador diretamente para o termo pesquisado, mas o distancia da essência do documento em análise, podendo fazer com que relações importantes se percam ao apenas “retirar” trechos específicos das fontes históricas.

É claro que, para uma grande quantidade de documentação em que se faz necessário um levantamento inicial de termos para a formulação de categorias específicas, a “extração da informação” pode ser muito útil, como demonstram Alexandre Fortes e Leandro Alvim ao discorrerem sobre a Information Extraction in Historical Handwritten Records, experiência onde foi possível a extração da informação em 125 páginas contendo 1.121 registros manuscritos de casamento (39.527 imagens de palavras) dos arquivos da Catedral de Barcelona entre os anos de 1617 e 1619 (2020, p. 221). Ao retirar informações específicas de uma grande quantidade de fontes, porém, corre-se o risco de uma “descaracterização do dado que, retirado do seu contexto original e inserido no banco de dados em alguma categoria de análise criada e a ele atribuída pelo historiador, reforça a dificuldade de promover a conexão entre as diversas pesquisas empíricas” (Thompson Flores, 2015, p. 243).

Em recente fala realizada no III Seminário Internacional Materialidade e Interpretação de Manuscritos e Impressos na Época Moderna,9 o historiador Fernando Bouza chamou a atenção para os benefícios e problemas acerca da digitalização e da pesquisa nos acervos digitais. A ampliação do público que pode acessar as fontes sem dúvida é a principal vantagem da digitalização dos acervos, além da preservação de documentos que estejam em mau estado de conservação. Por outro lado, Bouza discorre sobre o efeito empobrecedor dos estudos históricos feitos apenas a partir das fontes digitalizadas e as consultas voltadas apenas para a “extração” da informação. O pesquisador ressalta a importância de se pensar a materialidade das fontes e da busca por recriar as práticas de uma época – ações prejudicadas sem o contato direto com os documentos. Apesar das facilidades advindas com a tecnologia – como a ampliação de tamanho das letras para a leitura, recortes e programas que chegam a fazer a transcrição do material –, “as formas criam sentido”, como bem explicou Bouza.

Ler a partir das telas cria um sentido diferente do que acessar o documento original e, por melhor que seja a digitalização realizada pelas instituições de guarda, práticas de leitura e técnicas de produção coevas não são possíveis de serem analisadas em sua totalidade a partir das fontes digitalizadas. Entendo que essa “leitura descontínua, segmentada, ligada mais ao fragmento do que à totalidade” (Chartier, 2019, p. 13), característica do mundo digital e bastante familiar aos nossos olhos, deve ser questionada para lidar com as fontes históricas digitalizadas na medida em que muitas vezes “desloca” a informação do restante do documento.

Ao lidar com as fontes de pesquisa, o historiador Roger Chartier enfatiza que “a produção, não apenas de livros, mas dos próprios textos, é um processo que implica, além do gesto da escrita, diversos momentos, técnicas e intervenções”, e conclui: “as transações entre as obras e o mundo social [...] concernem mais fundamentalmente às relações múltiplas, móveis e instáveis, estabelecidas entre o texto e suas materialidades, entre a obra e suas inscrições” (Chartier, 2007, p. 12-13). É devido a esta preocupação da história da cultura escrita que enfatizo aqui os cuidados necessários para que se utilizem as fontes de pesquisa atualmente digitalizadas, tendo em vista, senão sua materialidade – que pode não convir à análise –, ao menos seu local no mundo, ou seja, onde aquele documento foi produzido, de que maneira, por quem e quais intenções moveram sua produção.

Essa proposta de análise já é discutida também no campo da diplomática, cuja ocupação é, segundo Heloísa Bellotto, analisar a “estrutura formal dos atos escritos de origem governamental e/ou notarial” (2008, p. 1). De acordo com a autora, o campo se preocupa em analisar os seguintes princípios:

o da proveniência (documentos emanam do cumprimento das funções/atividades do produtor); o da organicidade (documentos mantêm relações orgânicas internas que refletem aquelas atividades); o da unicidade (o documento será único dentro de determinado conjunto orgânico em determinado momento, independente de haver cópias ou não); e o da indivisibilidade ou da integridade arquivística (solidamente assegurado pelos princípios anteriores, interdita a dispersão dos componentes dos conjuntos arquivísticos). (Bellotto, 2015, p. 5)

A autora argumenta que, depois de criado, o documento possui elementos externos, intermediários e internos, sendo os primeiros os relativos à estrutura física como espaço, quantidade, volume, suporte, formato, forma e gênero. Já os elementos intermediários seriam o idioma, o modo da escrita, a espécie e o tipo documental. Por fim, os elementos internos se relacionam com a própria substância do documento, como sua origem e razão de ser. Bellotto entende os elementos internos como todos os sinais de validade e legitimação: “a proveniência, as funções/atividades explicitadas no documento, o conteúdo substantivo (isto é, o assunto propriamente, a razão de ser pontual daquele documento), a data tópica e a data cronológica” (2015, p. 10). Ainda que a autora entenda que o historiador se preocupe apenas com o contexto histórico e não com a produção do documento e suas circunstâncias, enfatizo que a análise histórica tem de se debruçar também sobre esses elementos, se quiser compreender sua fonte por completo – e o mundo imaterial vem nos afastando ainda mais dessa discussão.

Trabalho aqui com a ideia de imaterial e não virtual partindo da proposta do filósofo Stefano Quintarelli, que discorre sobre a insuficiência do segundo termo para tratar da internet e tudo o que é possível acessar a partir dela. Segundo o autor, o termo virtual refere-se ao que existe apenas em potência, mas não como realidade. O dinheiro em nossa conta bancária, contudo, “não existe apenas potencialmente. Ele é totalmente real, apesar de não ser material – logo, imaterial” (2019, p. 30).

A digitalização do documento tradicional transforma-o em um dado binário cujo conteúdo pode ser acessado pela internet – ou baixado da rede e transformado em arquivos em formatos como pdf –, mas não suas especificidades materiais. Um trabalho minucioso como o realizado por Márcia Almada e Rodrigo Bentes Monteiro (2019) acerca de dois manuscritos do século XVIII jamais seria possível contando apenas com a versão digitalizada desses documentos. Sem o contato com a fonte, incontáveis informações sobre ela não seriam acessadas. Não teriam sido feitas, por exemplo, análises em laboratório para a descoberta da técnica utilizada nas correções do documento, realizada com cera e pigmento branco de chumbo – o que, segundo os autores, denotaria uma revisão feita pelos possíveis autores após a finalização da cópia (Almada; Monteiro, 2019). Mesmo a encadernação e o formato do documento podem significar as intenções de uma circulação oficial ou restrita, bem como seu estado atual pode indicar maior ou menor manuseio.

Em trabalho ainda mais recente, Monteiro enfatiza como o “artefato gráfico” não pode ser apreendido em sua totalidade apenas a partir da digitalização, discorrendo sobre a impossibilidade de acessar “sulcos característicos em diversas técnicas de gravação; ou identificar as camadas de tinta, raspagens e correções operadas num manuscrito” apenas através da cópia digital. O documento – o pesquisador conclui – não é a sua imagem (Monteiro, 2022, p. 24). É claro que se o conteúdo do documento é suficiente para a pesquisa proposta, basta o acesso ao documento digitalizado. Seu local no mundo, porém, deve fazer parte da análise mesmo que as questões materiais não sejam o foco da pesquisa, já que sua produção é parte da existência daquele documento.

Assim, para além dos avanços inegáveis relacionados ao acesso e mesmo à análise dos documentos digitalizados, é necessário ter em mente os limites estabelecidos pela pesquisa realizada somente a partir de versões do documento original – sejam elas transcrições em edições atuais, fotografias, microfilmes ou digitalizações acessadas via sites de instituições de guarda.

Considerações finais

Quem já esteve em um arquivo certamente se identifica com a descrição da historiadora Arlette Farge:

Verão ou inverno, é sempre gelado; os dedos se entorpecem ao decifrá-lo ao mesmo tempo em que se tingem de poeira fria no contato com seu papel pergaminho ou chiffon. É pouco legível a olhos mal exercitados ainda que às vezes venha revestido de uma escrita minuciosa e regular. Encontra-se sobre a mesa de leitura, geralmente em pilha, amarrado ou cintado, em suma, em forma de feixe, os cantos carcomidos pelo tempo ou pelos roedores; precioso (infinitamente) e danificado, manipula-se com toda delicadeza por medo de que um anódino princípio de deterioração se torne definitivo. (Farge, 2009, p. 9)

Ainda que a presença física no arquivo carregue consigo essa aura peculiar que encanta historiadores e historiadoras em todo o mundo, nos últimos anos tornou-se bastante comum – pela praticidade ou mesmo falta de recursos – a realização de pesquisas a partir apenas de acervos on-line. O que se levantam aqui são questões ainda em busca de respostas, sendo a principal delas a distinção metodológica entre a pesquisa in loco e aquela que se utiliza de documentação imaterial.

O tema não é novo. A própria Arlette Farge, cujo livro foi publicado no ano de 1989, discorria sobre os problemas de se acessar a documentação dos arquivos judiciários apenas através de microfilmes: “examinar o arquivo, folheá-lo, ir de trás para frente torna-se impossível agora com essa técnica impiedosa que modifica sensivelmente sua leitura, e, portanto, sua interpretação”. Ela entendia que a microfilmagem era necessária para a conservação dos documentos, mas também dificultava “a abordagem tátil e imediata do material” (Farge, 2009, p. 21-22). A digitalização atua do mesmo modo, com a vantagem do acesso a partir da internet, o que não era possível através da microfilmagem das fontes.

Como afirmei no decorrer do trabalho, essa chamada “virada digital” não foi acompanhada de reflexão sobre o fazer historiográfico. Apenas passou-se a utilizar a documentação on-line ou digitalizada da mesma forma com que se trabalhou durante anos no interior dos prédios de arquivos e bibliotecas. O que busco enfatizar é que o trabalho no meio digital não é igual ao trabalho com papel e lápis, e que é necessário pensar sobre esse (não tão) novo fazer.

O local no mundo de todos os documentos utilizados em uma pesquisa é informação fundamental e não pode ser esquecido, mesmo que a análise recaia apenas sobre seu conteúdo. Não é possível analisar o conteúdo de uma fonte historiográfica sem situá-la na sociedade onde ela se inseria, na época em que foi produzida ou em que cumpriu as intenções de seu criador. Proponho, assim, o estabelecimento de ao menos dois passos que considero importantes para o pesquisador diante do documento em análise: 1) identificar desde o início a versão da fonte e sua localização: original; digitalizada pela própria instituição; impressa em edição contemporânea fac-símile ou transcrita e atualizada; 2) se a pesquisa foi realizada apenas a partir dos bancos de dados on-line fornecidos pelas instituições de guarda, é necessário estabelecer quais palavras foram utilizadas para a busca e quais dos documentos encontrados estavam (ou não) disponíveis on-line – dessa forma, estabelece-se o limite da pesquisa a partir do que foi possível ser acessado. Mesmo que trabalhando exclusivamente com o conteúdo dessas fontes, a reflexão acerca do acesso também deve fazer parte da escrita da história, refletindo inclusive sobre esse fazer quando pesquisadores e pesquisadoras estão em locais geograficamente afastados dos objetos de investigação.

Assim, é necessário pensar o arquivo e seus sistemas de busca enquanto agentes capazes de viabilizar ou não determinadas investigações, seja pelo que é disponibilizado, seja pela maneira em que se acessam as informações do que está disponível em seu acervo on-line. Se Arlette Farge afirma que o arquivo “é difícil em sua materialidade” (2009, p. 11), acredito que em sua imaterialidade a dificuldade se mantém.

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Recebido em 26/3/2023

Aprovado em 27/6/2023


Notas

1 O Projeto Resgate hoje está felizmente digitalizado. Disponível em: http://resgate.bn.br/docreader/docmulti.aspx?bib=resgate. Acesso em: 3 jan. 2022. Renato Venâncio (2022, p. 57-58) também menciona sua importância, sem deixar de criticar a organização proposta pelo projeto. Especificamente sobre o Projeto Resgate, Caio César Boschi (2018) possui trabalho de referência.

2 Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/.

4 Disponível em: https://antt.dglab.gov.pt/ .

5 Refiro-me aqui sobretudo ao Google e seu grandioso projeto de digitalização de livros de diferentes épocas, conhecido como Google Books [https://books.google.com.br/]. Sobre o projeto, ver Robert Darnton (2009).

6 O Conselho Nacional de Arquivos apresentou recentemente uma resolução acerca dos procedimentos a serem observados no processo de digitalização de documentos em arquivos públicos e privados no Brasil. Resolução Conarq n. 48, de 10 de novembro de 2021. Ver em: https://www.gov.br/conarq/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/Diretrizes_digitalizacao__2021.pdf .

7 Segundo Pierre Levy, o ciberespaço “é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial de computadores. O termo especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo” (2010, p. 17).

8 Em minha tese de doutorado discorro sobre uma fonte cujo ano está incorreto no catálogo da instituição e o erro só pôde ser verificado porque eu vinha pesquisando o tema e trabalho com o original daquele documento – sendo o manuscrito catalogado de maneira equivocada, uma cópia da publicação impressa em Portugal (Mendes, 2021).

9 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dct6W-_xlo4&t=8s. Acesso em: 5 jan. 2023.


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