Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 3, set./dez. 2023

O arquivo como objeto: cultura escrita, poder e memória | Dossiê temático

Entre os poderes do arquivo e a violência arquivística

O lugar do arquivo no dispositivo de arquivo

Between the powers of the archive and the archival violence: the place of the archive in the archival dispositive / Entre los poderes del archivo y la violencia archival: el lugar del archivo en el dispositivo de archivo

Thays Lacerda

Doutora em Ciência da Informação pela Universidade Federal Fluminense. Arquivista da Equipe de Normalização e Qualidade de Sistemas Informatizados do Arquivo Nacional, Brasil.

arquivosdathays@gmail.com

Resumo

Neste artigo temos como objetivo pensar o arquivo a partir de redes de poder e saber, no que estamos chamando, baseados em Foucault, de dispositivo de arquivo. Buscamos inserir o arquivo em uma grande rede de relações formada por jogos de forças de saberes e de poderes, assim como pensar no arquivista como um elemento essencial na construção dessas narrativas sobre o passado e a manipulação do tempo histórico.

Palavras-chave: dispositivo de arquivo; passado; Foucault; arquivo.

Abstract

In this article, we aim to think about the archive from networks of power and knowledge, in what we are calling, based on Foucault, the archival dispositive. We seek to insert the archive into a large network of relationships formed by power games of knowledge and power, as well as thinking the archivist as an essential element in the construction of these narratives about the past and the manipulation of historical time.

Keywords: archival dispositive; past; Foucault; archive.

Resumen

En este artículo nos proponemos pensar el archivo desde las redes de poder y saber, en lo que llamamos, con base en Foucault, el dispositivo de archivo. Buscamos insertar el archivo en una gran red de relaciones formada por juegos de poder y saber, así como pensar al archivero como un elemento esencial en la construcción de estas narrativas sobre el pasado y la manipulación del tiempo histórico.

Palabras clave: dispositivo de archivo; pasado; Foucault; archivo.

Introdução

Buscando nos afastar de uma abordagem positivista, apontada por Kaplan (2002) e diversos outros autores, que se mantém em parte dos estudos da arquivologia, desenvolvemos este artigo1 com o intuito de pensar o arquivo2 para além de sua custódia, da gestão de documentos e de suas técnicas e metodologias. Dessa forma, pretendemos inseri-lo em jogos de poder e saber, na rede que estamos chamando, baseados em Foucault, de dispositivo de arquivo.

Seguindo a linha de Kaplan (2002), afirmamos que estudar a teoria arquivística não é simplesmente estudar as práticas arquivísticas em si, os métodos e o fazer, mas analisar criticamente as diversas dinâmicas sociais que permitem ver o fazer de forma mais rica e complexa. A teoria, portanto, não está substituindo ou causando o desaparecimento da prática, mas está em um diálogo mutuamente produtivo com ela.

Em nossa pesquisa de tese, a partir dos estudos foucaultianos sobre o dispositivo, nos apropriamos do termo dispositivo de arquivo e buscamos desenvolvê-lo como um construto teórico na discussão sobre os arquivos. Dessa forma, faz-se necessário apresentá-lo, mesmo que brevemente, para o desenvolvimento do objetivo deste artigo. Acreditamos que a existência dos arquivos é condicionada pelas dinâmicas ordenadas no que chamamos de dispositivo de arquivo que confere institucionalidade, legitimidade e autoridade ao arquivo, além de sua própria existência. Desvelar esse lugar do arquivo no arranjo do dispositivo de arquivo é evidenciar as múltiplas relações dos arquivos com diversos outros elementos discursivos e não discursivos, a partir dos jogos de poder e das correlações de força que formam o dispositivo de arquivo. Dar lugar ao arquivo entre esses jogos é tirá-lo da naturalidade, da imparcialidade e da neutralidade, assim como é representá-lo como um dos instrumentos para construção de memórias e um dos instrumentos para a manipulação do tempo.

Podemos afirmar, resumidamente, que para Foucault o dispositivo: é um conceito operacional; é uma rede de elementos heterogêneos, sendo estes discursivos e não discursivos: “mistura, pois, alegremente, coisas e ideias (entre as quais a de verdade), representações, doutrinas e até filosofias, a instituições, a práticas sociais, econômicas, etc.” (Veyne, 2009, p. 38); não pode ser analisado fora das correlações e jogos de poder; produz, organiza, molda, delimita discursos, saberes, modos de acreditação,3 seja a partir da disciplina, das regras, como também dos sistemas de enunciados, da família, da escola etc.; é flexível e móvel por estar organizado em rede, na qual os elementos arranjados variam de acordo com as mudanças do dispositivo e da correlação de forças existente ordenadas pelo dispositivo; encontra-se a verdade entre os componentes do dispositivo; tem um caráter estratégico, sempre respondendo a uma urgência, tanto em seu surgimento quanto em situações limites (Foucault, 1993; 1994; 2009; 2014a; 2014b; 2015).

Assim, propomos o dispositivo de arquivo (DA) como um recorte do conceito foucaultiano,4 um novo modo de olhar para determinadas relações de força e jogos de saber/poder. Dessa forma, entendemos que as correlações de força estabelecidas dentro do DA criam elementos a partir dos seus modos de operação que somente existem como efeitos dessas correlações. Portanto, afirmamos que uma das formas de operação do DA é fornecer as condições de possibilidade de existência dos arquivos, assim como dos meios para sua manutenção, práticas e funções.

Também observamos que o DA produz as possibilidades para o surgimento de determinados discursos e conhecimentos sobre os arquivos e os documentos de arquivo, assim como produz os modos de acreditação que estabelece o caráter simbólico dos arquivos e de seus documentos. Ou seja, é o DA que fornece as condições de produção e existência ao que chamamos de arquivo e de documento – e dos saberes relativos a eles –, mas que por sua vez é estabelecido e mantido pelas correlações de força e jogos de poder entre esses elementos. Podemos afirmar, então, que as forças que operam na rede do DA acabam por invisibilizar ou apagar seu próprio funcionamento. Assim, o DA disciplina e opera dentro de um determinado recorte temporal, como também dentro de um determinado modo de acreditação estabelecido pelo próprio DA, mas que ao mesmo tempo é mantido e estabilizado por este mesmo modo de acreditação. Abaixo, podemos ver alguns exemplos de ações do dispositivo de arquivo:

1 Delimitar – Delimita a produção de saberes, estabelecendo o que se sabe e o que não se sabe, o que é visto e o que não é visto, o que é falado e o que não é falado, ou seja, delimita o discurso em torno da burocracia e da “necessidade” de termos documentos na sociedade contemporânea: se não temos documentos, não existimos, assim como marca a individualidade do sujeito;

2 Produzir – Produz informação/fato, estabelecendo efeitos de informação, construindo determinados modos de acreditação e de verdade. Assim, produz conhecimento sobre o passado com caráter de verdade, a partir de narrativas históricas construídas com critérios científicos: criticidade de fontes, aplicação de metodologias científicas (desde o levantamento das fontes à divulgação do conhecimento), documento com caráter de prova etc.;

3 Estabelecer – Mantém e fixa os sentidos, ordenando também quem pode ter acesso e quem não pode, assim como ao que se tem acesso. Dessa forma, confere legitimidade a determinados discursos e conhecimentos sobre o passado, definindo, por exemplo, quais fundos serão recolhidos ao arquivo permanente e quais vão ser eliminados, ou quais serão tratados e disponibilizados e quais serão apagados;

4 Transformar – Ao mesmo tempo que se modifica, transforma os saberes, os discursos e as práticas a partir de seu caráter estratégico e sua capacidade de responder a urgências, gerando mudanças no conhecimento arquivístico (o arquivo deixa de ser visto como um arsenal para a história e passa a ser visto como um instrumento de eficácia e eficiência da administração de seus produtores, com crescimento do discurso de responsabilidade dos arquivos nas questões envolvendo direitos humanos);

5 Apagar, silenciar ou esquecer – Apaga ou elimina saberes e práticas sociais (incluindo aqui as práticas com documentos) a partir de políticas de esquecimento, como vemos em políticas públicas focadas num discurso memorialístico: por vezes se transformam em políticas de esquecimento, legitimando determinadas narrativas sobre o passado e apagando outras.

Cabe, então, apontarmos o lugar dos arquivos nessa rede de relações heterogêneas, que estamos chamando de dispositivo de arquivo, para pensarmos em seus papéis sociais e políticos, incluindo aqui o seu caráter de institucionalidade, legitimidade e autoridade e sua relação com o tempo histórico.

O passado social formalizado

As narrativas que buscam apreender o passado – seja por intermédio dos testemunhos ou dos documentos – se utilizam, primordialmente, da concepção de tempo histórico. Definir o que é passado, o que é presente e o que é futuro, assim como determinar quais são os acontecimentos primordiais (marco zero) que estabelecem essa linearidade temporal, é fundamental para essas narrativas. De acordo com Le Goff (2013), esses cortes temporais estabelecidos nas narrativas sobre o passado podem ser entendidos como ideológicos e são observáveis na maior parte das sociedades históricas.

Ao destacar que o “passado é [...] uma dimensão permanente da consciência humana, um componente inevitável das instituições, valores e outros padrões da sociedade humana", Hobsbawn (1972, p. 3, tradução nossa) afirma que há uma consciência sobre o passado que é inerente à consciência humana. Contudo, partindo desta assertiva, há ainda um abismo entre o que chamamos de consciência humana sobre o passado e as construções deliberadas de narrativas legítimas e institucionalizadas sobre o passado, o que foi denominado pelo próprio autor como passado social formalizado (Hobsbawn, 1972).

Há, portanto, de acordo com Le Goff (2013), nesse modo de compreensão do passado, uma organização deste a partir de procedimentos metodológicos que constroem narrativas e estabelecem os cortes ideológicos, que acabam por desaguar em “um continuum significativo e interpretável do tempo” (Sarlo, 2007, p. 12). Esse continuum representa o modo linear de interpretação temporal que gera a sensação de causa e efeito dos acontecimentos e, por sua vez, naturaliza o fato de que, ao falarmos sobre o passado, sempre remetemos ao nosso presente e a possibilidades de futuro.

O “tom dominante nas visões do passado”, como colocou Sarlo (2007), permite a reflexão sobre os caminhos definidos e delimitados pelo saber para a construção de narrativas sobre o tempo passado. Assim, mesmo o passado sendo “uma seleção particular da infinitude do que é lembrado ou capaz de ser lembrado” (Hobsbawn, 1972, p. 7, tradução nossa), não são todas as lembranças comuns das sociedades que são estabelecidas como passado social formalizado.

Para Hobsbawn (1972), o passado social formalizado é rígido e seu escopo depende de determinadas circunstâncias. É rígido porque estabelece certos padrões para o presente (Hobsbawn, 1972), a partir das visões do presente – um dos motivos de ser um domínio em disputa. E seu escopo é variável, pois está atrelado aos jogos de força e às redes de relações de poder e saber, estabelecendo, a partir do presente, o que deve pertencer ou não a este passado social formalizado. As ordenações do dispositivo de arquivo – que operam a partir de suas estratégias do presente – acabam por limitar também a construção de sentidos sobre este passado formalizado, os quais, por sua vez, colocam em evidência determinados conhecimentos sob a chancela do legítimo, do autorizado e do verdadeiro.

Na tentativa de se afastar de um discurso sobre o passado único e totalizante, Le Goff (2013) faz uma ressalva: por haver o estabelecimento de sentidos na construção do conhecimento sobre o passado, deve-se ter em mente a necessidade de realizar, a partir do presente, releituras constantes sobre o passado. Assim, as tentativas de construção de novos sentidos para o passado o transformam em um ambiente de disputas, tanto por parte de grupos da sociedade civil quanto dos Estados. As relações entre sociedade e Estado com seus passados são, portanto, muito mais complexas do que apenas uma ordenação cronológica de lembranças e de eventos (Le Goff, 2013). A disputa está justamente na definição de quem está autorizado a estabelecer os sentidos, os cortes ideológicos e as lembranças.

O jogo com o tempo histórico – a partir das definições de formas de conhecimento sobre o passado, da legitimação de saberes por via da institucionalização, do estabelecimento de sentidos na produção de conhecimento, na seleção do que será lembrado e do que será esquecido, da construção de políticas e de arquivos que acumulam documentos sob a ótica da permanência, ou seja, da seleção e do estabelecimento de narrativas sobre o passado e expectativas de futuro por meios autorizados e validados de produção e acúmulo dessas narrativas – é delimitado pelos jogos de poder e pelas correlações de força ordenados pelo dispositivo de arquivo.

Contudo, não são todas as formas de interpretar o tempo, pelas diversas sociedades, que são definidas pelo DA. O que podemos afirmar é que cada elemento ordenado na rede do dispositivo de arquivo, que, por sua vez, é inter-relacionado a outros elementos e constitui as linhas de força5 dos jogos de poder e saber, tem sua participação na manipulação do tempo, construindo, ordenando, estabelecendo as formas legitimadas e autorizadas de conhecimento do tempo histórico.

Considerando, portanto, que as relações ordenadas no dispositivo de arquivo estabelecem elementos que têm autoridade e legitimidade para selecionar e fixar os sentidos sobre o conhecimento do passado, nos perguntamos: quais são os lugares autorizados a falar sobre o passado?

Podemos afirmar que em grande parte essas vias autorizadas passam pelo Estado,6 de forma direta ou indireta, como alguns dos exemplos a seguir: a projeção e efetividade de políticas de memória, incluindo aqui os aparatos burocráticos em prol das políticas de reparação e de reconhecimento, do estabelecimento de marcos comemorativos, da criação de museus e arquivos; o estabelecimento dos parâmetros nacionais para o ensino de história em âmbito escolar; as verbas e financiamentos disponibilizados para os cursos universitários voltados para discussões nos campos da história, da memória social, da sociologia, dentre outros, incluindo aqui verbas para pesquisa, publicação de livros, organização de eventos, criação de arquivos e centros de memória vinculados às universidades.

Mesmo em regimes democráticos, o Estado patrocina e ao mesmo tempo seleciona, institucionaliza e legitima o conhecimento sobre o passado. Ao falar sobre as comemorações patrocinadas pelo Estado, Winter afirma que elas são ritos “politicamente sancionados e politicamente financiados de lembrar em público, ajustados a uma narrativa pública ou politicamente aprovada” (Winter, 2000, p. 54). Podemos expandir esse exemplo para todas as formas institucionalizadas e legitimadas de falar sobre o passado, afirmando que o conhecimento sobre o passado – que pode ser entendido como a memória exercitada de Ricoeur (2007) – é, a todo tempo, selecionado, legitimado e autorizado por uma história oficial que é apreendida, memorizada e comemorada coletiva e publicamente, em que o Estado tem uma função seletiva chave na orientação e construção dessas narrativas e, por conseguinte, na manipulação do tempo (Ricoeur, 2007).

O Estado atua, portanto, como patrocinador e selecionador de lembranças que cabem em seus discursos nacionais. As outras lembranças, que não se encaixam nesses discursos de forma consciente ou inconsciente, são relegadas ao esquecimento oficial, o que Michel (2010) aponta como possíveis políticas de esquecimento. Assim, o jogo entre o que lembrar e o que esquecer, na produção do passado social formalizado, passa pela legitimação e institucionalização estatal.

Quanto mais nos pedem para lembrar, no rastro da explosão da informação e da comercialização da memória, mais nos sentimos no perigo do esquecimento e mais forte é a necessidade de esquecer. [...]. A minha hipótese aqui é que nós tentamos combater este medo e o perigo do esquecimento com estratégias de sobrevivência de rememoração pública e privada. (Huyssen, 2000, p. 20)

Podemos dizer, portanto, que os diversos modos de falar sobre o passado que não passam pelo Estado têm sua legitimidade dentro da comunidade nas quais estão relacionados. Porém, ao sair da comunidade – para reconhecimento de suas práticas, para serem incluídos nas políticas de patrimônio, para figurar em calendários oficiais ou no discurso escolar – buscam meios que passam pelas vias do Estado para que essas narrativas tenham chancela institucional e adquiram direitos.

Dessa forma, o que vemos é o passado como campo de disputas, e estas se dão pela via dos Estados, na busca por espaço nos discursos oficiais, nos calendários comemorativos, por haver memoriais que lutam contra o esquecimento, ou seja, por ter espaço em um passado social formalizado. Para tanto, os grupos sociais recorrem à formalização dos testemunhos, à busca por provas que apresentem a autenticidade dos seus discursos, isto é, fazem parte das linhas de força do próprio dispositivo de arquivo, lutando a partir dos jogos estabelecidos pelo regime de verdade e dos modos de acreditação constituídos pelo DA.

O lugar dos arquivos na teia do dispositivo de arquivo

O conhecimento oficializado, autorizado e legitimado sobre o passado, se dá, portanto, por meio de instrumentos reconhecidos e legais – como documentos, testemunhos, lugares e agentes –, assim como de metodologias próprias para o estabelecimento e análise desses instrumentos e de construções das narrativas sobre o passado. E muitos desses registros autorizados foram selecionados e conservados em espaços institucionalizados que garantem o seu peso legal. E é nesse ponto que buscamos o lugar do arquivo na rede do dispositivo de arquivo.

Os arquivos existem porque convencionou-se que necessitamos comprovar relações sociais passadas, sejam legais, administrativas ou históricas. Convencionou-se também que essas comprovações estariam em registros custodiados por arquivos. Convencionou-se ainda que algumas pessoas estejam autorizadas a falar sobre o passado a partir do uso – com determinados métodos para esse uso – dos registros custodiados nos arquivos. Há, portanto, um capital simbólico associado aos arquivos que cresceu, principalmente, a partir da racionalização do conhecimento sobre o passado ao longo do século XIX.

Os arquivos são, nesse sentido, espaços de privilégios constituídos tanto pela escassez de registros representantes do passado quanto pelo processo subjetivo e seletivo de acúmulo desses registros. O lugar de privilégios singular ao arquivo é configurado a partir das relações de poder nos quais ele se encontra imbricado. Assim, acrescentamos aqui que as narrativas entendidas como verdadeiras – e que atuam no que será revelado e encoberto, manifestado e ocultado – são arbitradas pelas relações de poder e por uma perspectiva temporal. Há, portanto, não apenas na produção dos documentos, mas na própria constituição dos arquivos – e em suas perspectivas de acúmulos, de fixação de sentidos sobre o passado7 e de acessos –, uma busca pela verdade e uma manipulação do tempo, marcadas por sua institucionalidade e capacidade legitimadora.

Mas, o que significa para o arquivo e para os documentos – custodiados pelo arquivo – ser/estar em uma instituição ou ter uma chancela institucional na perspectiva do dispositivo de arquivo? O que significa dizer que o arquivo é um lugar privilegiado?

De acordo com Thiesen (1997), uma instituição é sempre uma obra coletiva, cultural e histórica, podendo ser entendida como efeito das diversas dinâmicas sociais ou como “agenciamentos coletivos que se instituem no seio das relações sociais” (Thiesen, 1997, p. 80). Em seu processo instituinte, busca a estabilidade estabelecendo regras e padrões de conduta legitimadas que garantem seu funcionamento e seus modos de operação social, reproduzindo “uma determinada ordem alcançada, com a intenção da manutenção dessa ordem” (Thiesen, 1997, p. 80).

“As relações saber-poder passam por um processo de institucionalização”, afirma Thiesen (1997), sendo cristalizadas enquanto instituições a partir de determinadas condições de possibilidade. Assim, o surgimento da noção de arquivo e seus diversos funcionamentos variam conforme as mudanças nas ordens sociais, ou, ainda, conforme as mudanças no dispositivo de arquivo. São os arranjos do DA, então, que permitem a existência do arquivo instituição e conferem a ele o caráter legítimo de guarda e de gerência do tempo.

Thiesen (1997), baseada em Bobbio, afirma que as instituições podem ser de caráter formal ou informal, sendo articuladas à sociedade política ou à sociedade civil. Nosso interesse reside na classificação das instituições formais. Assim, para a autora, as instituições formais articuladas à sociedade política se organizam a partir dos valores e normas codificadas por um pacto jurídico (Thiesen, 1997). Já as instituições formais articuladas à sociedade civil se organizam pelos valores e normas “racionalmente repartidos, subscritos e praticados pelos indivíduos e pelos grupos” (Thiesen, 1997, p. 91) a partir de um pacto social.

A legitimação legal de uma instituição, como afirma Rabello (2019), é orientada pelas normas e regras positivadas a partir do seu poder instituinte, em seu modo formal ou informal. Para o autor, em ambos os casos há intencionalidades a serem consideradas nos acúmulos dos registros, para entendê-los como representações de prova, para conhecimento de algo, por uma experiência estética ou de recordação.

Ricoeur (2010), ao analisar o conceito de arquivo a partir de duas definições enciclopédicas, aponta que podemos definir três características para arquivo: a primeira está relacionada à noção de documentos, ou melhor, a um corpo organizado de documentos; a segunda tem relação com a instituição, sendo o arquivo um produto das atividades institucionais e de documentos acumulados, produzidos ou recebidos por instituições; a terceira aponta que o arquivo tem por finalidade a preservação, sendo um depósito autorizado dos documentos. Mesmo analisando de forma simples o conceito de arquivo, o autor destaca que seu caráter institucional é afirmado três vezes nessas definições, o que, a nosso ver, marca a relação entre arquivo e institucionalidade.

os arquivos constituem o fundo documental de uma instituição; é uma atividade específica dessa instituição produzi-los, recebê-los e conservá-los; o depósito assim constituído é um depósito autorizado por uma estipulação adjunta àquela que institui a entidade da qual os arquivos são o fundo. (Ricoeur, 2010, p. 199)

Podemos definir a relação entre arquivo e instituição a partir da seguinte classificação: o arquivo é uma instituição formal articulada à sociedade política e tendo sua legitimidade autorizada por um pacto jurídico. Dessa maneira, o arquivo não é apenas um custodiador de documentos. Abordá-lo sem compreender seu caráter institucional e sua chancela legitimadora é ignorar as dinâmicas sociais que o constituíram enquanto instituição, assim como seus efeitos nas práticas sociais.

Thiesen (1997) afirma que a questão prioritária da instituição é a legitimidade, que aparece como um direito reivindicado pelo movimento de institucionalização. Assim, o poder de legitimidade conferido à institucionalização acaba por estabelecer o saber que é legítimo e aquele que não é a partir da chancela institucional.

Tendo em vista que a instituição define as regras do jogo, os atores ou parceiros devem abrir mão de parte de sua ação, de parte de seu saber. O saber popular deslegitima-se, em favor dos saberes legitimados pelas instituições. [...]. Quando as práticas são deslegitimadas perdem seu caráter institucional, perdem espaço e recursos e são excluídas do mercado. A propriedade do objeto de que se fala é outorgada a uma instituição que passa a ser sua guardiã legítima. (Thiesen, 1997, p. 94-95)

O movimento de tipificação e classificação de determinados saberes como legítimos carrega consigo a classificação de outros saberes como não legítimos. O processo de institucionalização – com a marca da formalização, da legitimação – opera a partir dos jogos do poder e de mecanismos seletivos que definem o que deve ser sabido e o que não deve. Portanto, a legitimação de saberes por parte da institucionalização é a deslegitimação de outros, a partir de jogos seletivos e classificatórios.

Mas, e o arquivo? Para Freitas (2009b), a formalização institucional do passado é “sintoma da quebra de consenso social, indicando seu caráter regulador e de controle, via poder de coerção”, que após processo de hegemonização político-cultural passa a ser considerado legítimo. O arquivo, a partir de seu funcionamento de guardião legítimo dos registros que representam o tempo passado, formaliza, seleciona e ordena o que se sabe sobre este passado. O arquivo, portanto, legitima o conhecimento sobre o passado, fixando sentidos, construindo narrativas, regulando determinadas representações sobre o passado em detrimento de outras, estabelecendo o passado social formalizado como objeto institucional do arquivo.

Para Derrida (2001), a origem grega da palavra “arquivo” já carrega consigo um significado maior do que um mero local de guarda. Os documentos depositados em arquivos, afirma o autor, “evocavam a lei e convocavam à lei” (Derrida, 2001, p. 13). O interessante aqui é pensar no arquivo como esse lugar de evocação e convocação. Não é apenas o poder de instituição e a materialidade do documento que confere ao arquivo sua capacidade de guardião do passado formalizado. É a combinação entre ser documento e estar em um arquivo que gera o poder autorizado de evocar e convocar um passado formalizado. Os efeitos da materialidade do documento, por exemplo, não são dados apenas por meio de suas práticas sociais, mas também pela chancela de institucionalidade e legitimidade do arquivo. A guarda de documentos em um arquivo, afirma Derrida, se dá por estes terem uma “topologia privilegiada [… habitando] este lugar particular, este lugar de escolha onde a lei e a singularidade se cruzam no privilégio” (Derrida, 2001, p. 13, grifos do autor). Estar no arquivo é estar em um lugar de privilégio.

É, portanto, a primeira figura de um arquivo, pois todo arquivo – tiremos daí algumas consequências – é ao mesmo tempo instituidor e conservador. Revolucionário e tradicional. Arquivo econômico neste duplo sentido: guarda, põe em reserva, economiza, mas de modo não natural, isto é, fazendo a lei (nomos) ou fazendo respeitar a lei. Há pouco, como dizíamos, nomológico. Ele tem força de lei, de uma lei que é a da casa (oikos), da casa como lugar, domicílio, família ou instituição. (Derrida, 2001, p. 17, grifos do autor)

De acordo com Derrida (2001), o privilégio do arquivo se faz também por ser o local que produz o evento. Assim, os estudos arquivísticos não podem ignorar o poder de institucionalização do arquivo, pois este configura, ao mesmo tempo, o poder “da lei que aí se inscreve e do direito que a autoriza” (p. 14). É o que o autor chama de ação “árquica”, um princípio “arcôntico”, um “poder de consignação” (p. 13), explicando que a consignação não está restrita à prova escrita, mas a um princípio de reunião, ou à capacidade, ao ato, de reunir signos. A consignação “tende a coordenar um único corpus em um sistema ou uma sincronia na qual todos os elementos articulam a unidade de uma configuração ideal” (p. 14). Assim, o princípio arcôntico – ou o princípio de consignação – fixa os sentidos, estabelece a informação-fato, autoriza o evento.

[O arquivo...] não é somente o local de estocagem e de conservação de um conteúdo arquivável passado, que existiria de qualquer jeito e de tal maneira que, sem o arquivo, acreditaríamos ainda que aquilo aconteceu ou teria acontecido. Não, a estrutura técnica do arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquivável em seu próprio surgimento e em sua relação com o futuro. O arquivamento tanto produz quanto registra o evento. (Derrida, 2001, p. 29, grifos do autor)

Para Colombo, a lógica arquivística da contemporaneidade gera em si mesma o seu valor, pois “ela conserva, baseada no pressuposto de que a conservação é necessária. Não é, portanto, o objeto que torna valiosa a sua própria lembrança, é a lembrança que torna valioso o objeto lembrado” (Colombo, 1991, p. 103). Ou seja, seguindo na linha de Derrida (2001) e de Colombo (1991), podemos dizer que a ação árquica, ação de arquivamento, estabelece, para o futuro, não apenas um determinado evento, mas o próprio valor daquele evento. É uma espécie de paradoxo arcôntico do arquivo.

O princípio arcôntico do arquivo – principalmente a partir do século XIX e das abordagens cientificistas baseadas na filosofia positivista – se relaciona com o poder de legitimidade conferido ao arquivo, mas também a partir da ideia de que a verdade está contida nos documentos de arquivos – como visto, principalmente, na literatura arquivística tradicional.

Veyne (2011) afirma que a verdade é um dos elementos que compõem o dispositivo. Para Foucault (1994), as relações de força arranjadas no dispositivo produzem saber e verdade – ou o regime de produção do verdadeiro e do falso. Ou seja, as relações de força de um dispositivo ajustam os domínios “onde a prática do verdadeiro e do falso pode ser, ao mesmo tempo, regulada e relevante” (Foucault, 1994, p. 27), classificando, assim, determinados saberes como verdadeiros e, consequentemente, outros como falsos.

Vinculada aos jogos de poder, a verdade se apoia no sistema das práticas institucionais, no qual podemos destacar o arquivo. O caráter de verdadeiro atribuído aos documentos custodiados no arquivo, somado ao poder de legitimidade institucional e ao seu princípio arcôntico estabelecem sobre diversos discursos um determinado poder de coerção (Foucault, 1974) configurado ao arquivo pelos arranjos do dispositivo de arquivo. Esses arranjos operam regulando a produção de verdade, assim como as visões sobre o passado a partir da delimitação das possibilidades de construção de conhecimento sobre esse passado formalizado.

Para Matienzo (2004), os arquivos apresentam um tipo particular de verdade – a verdade arquivística – que, segundo o autor, é criada pela ideia de não intencionalidade, caracterizada como uma das propriedades dos arquivos definidas por Hilary Jenkinson – e bastante presente na literatura arquivística. Para o autor, o discurso sobre os documentos de arquivos não terem sido criados para a posteridade e sim como representantes de uma atividade imprime aos arquivos a lógica da imparcialidade tão discutida na literatura arquivística. Destacamos que a imparcialidade, assim como a neutralidade e a objetividade, são fixadas na literatura da área por Jenkinson, embebido na filosofia positivista, como veremos mais adiante.

Mas, a noção de verdade, imbricada na concepção de arquivo, perpassa também o caráter da “autoridade da experiência” relativa ao testemunho (González de Gómez, 2000), assim como a noção de evidência e vestígio (Ricoeur, 2010). Desse modo, para Ricoeur (2010), a ênfase dada atualmente ao documento está em seu caráter de fornecer garantia a uma narrativa, o que, por sua vez, alimenta a ideia de que essas narrativas sobre o passado – e no caso o autor está tratando da narrativa histórica – possam estar baseadas em fatos, na verdade.

A ideia, portanto, de que encontramos a verdade nos arquivos está embasada na perspectiva de que nestes estão acumulados documentos/vestígios deixados pelo homem do passado e que foram acumulados de forma natural, neutra e objetiva. E esses vestígios, por serem acumulados naturalmente, remetem à ideia de dar acesso direto ao passado. É o efeito do discurso da naturalidade dos arquivos na construção de narrativas sobre o passado formalizado.

Portanto, se nem a revolução documentária, nem a crítica ideológica do documento/monumento afetam, em sua essência, a função que o documento tem de informar sobre o passado e ampliar a base da memória coletiva, a fonte de autoridade do documento, como instrumento dessa memória, é a significância vinculada ao vestígio. Se é possível dizer que os arquivos são instituídos e os documentos coletados e conservados é devido à pressuposição de que o passado deixou um vestígio, erigido por monumentos e documentos em testemunha do passado. (Ricoeur, 2010, p. 202-203, grifos do autor)

Podemos também relacionar a ideia de verdade dos arquivos à de realidade do passado representada nesses vestígios/documentos. Ricoeur (2010) afirma que a pretensão de narrativas como a histórica passa pelo misto da escrita ficcional, mas como representante da realidade. Para o autor, a declaração de que a narrativa histórica se remete a acontecimentos que ocorreram no passado é bastante problemática, suscitando um paradoxo: um passado que foi – já desaparecido – mas que foi real.

São esses critérios ontológicos que voltam a ocupar o primeiro plano com o conceito de passado “real”. Este está, com efeito, sustentado por uma ontologia implícita, em virtude da qual as construções do historiador têm a ambição de ser reconstruções mais ou menos aproximadas do que um dia foi “real”. [...]. Chamaremos de representância (ou locotenência) as relações entre as construções da história e o seu contraponto, ou seja, um passado simultaneamente abolido e preservado em seus vestígios. [...]. Digamos de pronto que o que esperamos dessa dialética da representância não é que resolva o paradoxo que aflige o conceito de passado “real”, mas que problematize o próprio conceito de “realidade” aplicado ao passado. (Ricoeur, 2010, p. 172, grifos do autor)

Contudo, as narrativas sobre o passado formalizado não são construídas apenas pela história. Os próprios arquivos – com seu poder institucional, arcôntico e legitimador – e suas práticas conferem ao conjunto de documentos uma organização que constrói uma narrativa também ficcional, mas que, como pontuado por Ricoeur (2010), também perpassa pelo problema da representância. A ideia de acesso ao passado real gera um outro ponto interessante a ser destacado: a totalidade arquivística.

Por totalidade arquivística entendemos a ilusão de que o arquivo custodia o passado, o passado real, exatamente como ele foi. Imbricada também em concepções positivistas sobre o conhecimento do passado, parte da literatura tradicional arquivística não aborda, de forma crítica, o arquivo como representante de uma pequena parte do real que já foi, como hipomnese (Derrida, 2001). Os arquivos não são o real passado e nem uma completude. Os arquivos estão mais para “sintoma de uma falta” (Rousso, 1996, p. 91) do que para a realidade passada. Assim, entendendo o registro nos arquivos como uma “lasca de uma janela para o evento” passado (Harris, 1997, p. 137, tradução nossa), e o arquivo, depois de todos os processos de seleção – intencionais ou não – das ordenações, dos arranjos e de diversas outras práticas, deve ser entendido como um conjunto de “lasca das lascas” e não como uma janela para determinados eventos que já passaram. Desse modo, Harris faz uma relação entre a realidade do passado, o princípio arcôntico e a figura do arquivista, afirmando que

Em primeiro lugar, mesmo que haja “uma realidade”, em última análise, é incognoscível. O evento, o processo, a origem, em sua singularidade, são irrecuperáveis, indecifráveis. [...]. Em segundo lugar, embora seja evidente que o registro é um produto do processo, deve ser reconhecido que o processo é moldado fundamentalmente pelo registro ou, mais precisamente, pelo ato de gravar. [...]. E, em terceiro lugar, se os registros de arquivos refletirem a realidade, eles o farão de forma cúmplice e profundamente fraturada e mutante. Eles não falam por si mesmos. Eles falam através de muitas vozes, incluindo as dos arquivistas. (Harris, 1997, p. 135, tradução nossa)

Como construir, então, uma narrativa arquivística considerando que o que o arquivo custodia, arquiva, seleciona e organiza não é o real, mas sim formas de representar esse passado que já passou? Acreditamos que seja a partir da consciência do lugar do arquivo e do arquivista nas práticas sociais, nos jogos de poder e saber, no dispositivo de arquivo, assim como da consciência de que também somos manipuladores do tempo.

Vemos na literatura arquivística designada como contemporânea, ou pós-moderna, o apelo de diversos arquivistas à comunidade arquivística internacional para uma certa tomada de consciência sobre o papel social dos arquivos e dos arquivistas nesses jogos de poder e saber e nas práticas sociais. Esses autores buscam retirar o arquivo de um lugar passivo e estático, desvinculando-o de um ideal de guardião neutro da verdade sobre o passado. Assim, seguindo nesta linha de raciocínio, afirmamos que tanto os arquivos como os arquivistas – os operadores diretos dessas ações do DA – precisam ser compreendidos como elementos constituintes do DA, permitindo e delimitando as interpretações do passado (Hedstrom, 2002, p. 22).

Crenças tradicionais apresentam os arquivos como guardiões da verdade; os registros conteriam a cristalina evidência dos atos passados e dos fatos históricos. [...]. Arquivos não são depósitos de documentos empilhados, mas um reflexo e uma justificação da sociedade que os produziu. (Schwartz; Cook, 2002, p. 6, tradução nossa)

Schwartz e Cook (2002) afirmam que boa parte da literatura arquivística está calcada em ideais positivistas construídos ao longo do século XIX e fixados como princípios arquivísticos na literatura da área por Jenkinson e seus seguidores no início do século XX. A arquivologia tradicional foi constituída pregando a neutralidade e a objetividade, o que refletiu no discurso da área que preza por uma abordagem científica dos fatos do passado, dos registros como produtos naturais das atividades institucionais e dos arquivistas como meros acumuladores de registros.

Kaplan (2002) destaca que a abordagem de Jenkinson – em meio aos novos movimentos intelectuais que tentavam se afastar do pensamento positivista – era demasiadamente reacionária, ao ele afirmar que o arquivista deveria ser objetivo, neutro, invisível e passivo, ao passo que todo processo de seleção deveria ser realizado pelos produtores do registro e não pelo arquivista, “cujo papel era o de um honorável guardião de um registro natural, um resíduo natural de processos administrativos, e não uma escolha consciente do arquivista” (Kaplan, 2002, p. 215, tradução nossa).

Para a autora, diversos outros arquivistas posteriores a Jenkinson começaram a assumir o problema relacionado à seleção dos documentos. Porém, o que mais se desenvolveu foram métodos de seleção pelos quais os documentos são escolhidos e preservados a longo prazo. Contudo, a autora ressalta que apesar dos métodos ficarem mais sofisticados, as discussões filosóficas mais ampliadas sobre uma epistemologia dos arquivos e o papel dos arquivistas somente foram incorporados na literatura da área a partir da década de 1980 (Kaplan, 2002).

Apesar das novas considerações que incluem a subjetividade8 como parte do processo de avaliação e seleção de documentos preservados para o futuro, inserindo o arquivo em uma perspectiva política e social, Kaplan (2002) afirma que boa parte dos arquivistas norte-americanos ainda pratica suas atividades a partir de uma perspectiva positivista jenkinsoniana, se colocando como “guardiões objetivos de registros históricos que ocorrem naturalmente” (Kaplan, 2002, p. 216). E pergunta: por que, apesar de diversos estudos recentes sobre o papel dos arquivos e dos arquivistas, os profissionais dos arquivos se colocam nesta posição?

A hipótese da autora é que o foco da profissão de arquivista tenha sido construído a partir de uma noção estritamente prática, o que não permitiu uma reflexão epistemológica e crítica sobre seu fazer. Os arquivistas, afirma Kaplan (2002), trabalharam na obscuridade, e o fato de a profissão ter se fincado no nível puramente aplicado permitiu que o profissional escapasse do

escrutínio externo e da pressão interna a que a maioria das disciplinas acadêmicas está sujeita e às quais devem responder. Definida e representada como um campo das práticas, a profissão de arquivista não tem sido tradicionalmente considerada política ou criativa – seja por arquivistas ou por qualquer outra pessoa. [...] os arquivistas fazem o que fazem para que outros (acadêmicos, estudantes, administradores, funcionários do governo, cidadãos, genealogistas), agora ou no futuro distante, possam fazer o que fazem. [...]. Essas premissas, e outras, levaram à convicção, por parte da maioria dos arquivistas americanos, de que a intelectualização do campo é incompatível com a prática de arquivos. (Kaplan, 2002, p. 217, tradução nossa)

Ao analisarem o conceito de arquivo definido pela legislação francesa,9 Anheim e Poncet (2004) estabelecem a seguinte relação entre arquivo e lei: a mesma lei que determina a preservação dos documentos em nome de uma representação do passado torna legítima a destruição de documentos em nome de um processo de gestão. Tendo esse ponto destacado, os autores afirmam que a naturalização dos arquivos pela legislação é uma das formas de apagar a discussão epistemológica sobre os arquivos, mantendo-a no nível da prática, não abordando, por exemplo, uma discussão crítica sobre avaliação e seleção.

Assim, para os autores, uma abordagem crítica deve começar pela compreensão de que os arquivos não são testemunhos isolados e a acumulação dos documentos nos arquivos não é algo natural ou óbvio. O arquivamento é uma operação que estabelece visões do passado que deve ser considerada tanto pelos arquivistas quanto pelos historiadores. Os autores apontam ainda que a arquivologia é a “ciência da fábrica de arquivos” (Anheim; Poncet, 2004, p. 3, tradução nossa), sendo o termo fábrica utilizado para caracterizar o modo de operar dos arquivos, ou seja, suas práticas documentárias.

Outra questão obscurecida pela falta de estudos epistemológicos dos arquivos é abordada por Hedstrom (2002) ao vincular os arquivos aos jogos de poder. Conforme já dissemos anteriormente, a abordagem dos arquivos como um elemento do dispositivo de arquivo vincula-o aos jogos de poder que estabelecem diversas práticas sociais. Hedstrom (2002), ao abordar temas como a avaliação de documentos, afirma que o estabelecimento de questões como quais documentos são pertinentes para guarda permanente, quais critérios de valor melhor se encaixam na definição do que é permanente e quem tem autoridade para apreciar esse valor não podem ser analisadas fora dos jogos de poder.

Assim, a autora aponta que diversos estudos contemporâneos que percorrem questões relativas à avaliação de documentos e à constituição de arquivos permanentes falham por não atribuírem o devido valor que os jogos de poder têm nessas articulações. As falhas contemporâneas somadas à literatura tradicional – que preza pela passividade, objetividade e neutralidade tanto dos arquivos quanto dos arquivistas – fazem com que os arquivistas negligenciem o lugar dos arquivos, assim como o seu próprio lugar, nas relações de poder, subestimando “sua própria influência na construção dos arquivos” (Hedstrom, 2002, p. 34, tradução nossa). Desse modo,

os arquivistas afirmam que são os árbitros autorizados do valor arquivístico, ignorando muitas vezes os conflitos e as relações de poder que influenciam a implementação até mais “científica” dos critérios de avaliação. Mas os arquivistas não são as únicas forças que determinam o que sobrevive e, em muitos casos, eles podem ser atores menores entre forças sociais, tecnológicas, culturais, políticas e orçamentárias que moldam a construção dos arquivos. (Hedstrom, 2002, p. 35, tradução nossa)

O passado social formalizado preservado nos arquivos, portanto, não é “o passado como se passou”, mas sim um passado organizado por diversos elementos que constituem as relações de força do dispositivo de arquivo. Se retomamos agora a relação entre arquivo e memória, é para afirmar que os arquivos são instituídos por possíveis visões de passado ou, ainda, devem ser vistos como potência de construção de passados sociais formalizados e legitimados por seu poder de instituição e seu poder arcôntico. Assim, nas palavras de Heymann, “o poder sobre os arquivos e o poder dos arquivos – de dominação, mas também de subversão, de produzir esquecimento, mas também de construir identidade” (Heymann, 2006, p. 116) – devem constituir os pensamentos críticos sobre os arquivos.

Millar aponta que a interpretação do arquivo como memória – ou como reflexo do passado –, tão comum na literatura da área, não passa de um uso “conveniente para explicar a natureza do trabalho de arquivo e o local dos arquivos na sociedade” (Millar, 2006, p. 106, tradução nossa). Contudo, apesar de corriqueira, essa associação foi pouco investigada com profundidade. Seguindo a perspectiva da autora que afirma que registros não são a memória em si, mas pedras de toque que levam a lembranças de eventos passados, acreditamos que os arquivos podem funcionar como pedras de toque de possíveis acessos a esses passados: acessos guiados, delimitados e previamente estabelecidos pelos limites do DA. Assim,

o ato de criar memória social é o ato de criar, capturar, preservar e compartilhar os objetos tangíveis: as pedras de toque, os veículos e os gatilhos que nos ajudam a lembrar e a saber. Se os arquivos devem ser comparados à memória – se a metáfora de arquivos como memória é reter qualquer autoridade – então devemos aceitar uma realidade de arquivo crítica. Se registros e arquivos são pedras de toque que nos permitem comunicar memórias individuais e assim compartilhar essas memórias na sociedade, esses registros e arquivos devem ser gerenciados para que possam ser articulados, mediados e usados. (Millar, 2006, p. 122, tradução nossa)

Ao retomarmos a relação entre memória e arquivo – e também as questões sobre o tempo –, buscamos enfatizar que a demanda social contemporânea sobre a memória e o passado, a partir do já discutido neste artigo, acaba por obscurecer questões relacionadas ao estudo epistemológico dos arquivos. Assim, Anheim e Poncet (2004) afirmam que o problema político relacionado ao debate público sobre as memórias sensíveis e as questões de acesso aos documentos nos Estados democráticos são questões legítimas a serem analisadas nos âmbitos dos arquivos, mas que tendem a dominar os estudos arquivísticos contemporâneos.

Para os autores, esse problema político suscita diversos problemas epistemológicos discutidos até aqui, como o poder da instituição arquivística e o poder arcôntico dos arquivos, que se refletem, por sua vez, na naturalização das práticas arquivísticas. Esses pontos devem ser abordados nas reflexões sobre a abertura dos arquivos democráticos, aumentando o espaço para diversos tipos de reflexão como, por exemplo, se encontramos verdade nos arquivos.

Os novos funcionamentos dos arquivos, portanto, o estabelecem como “objeto de reivindicações coletivas com relação ao acesso a determinados documentos” (Heymann, 2006, p. 120), nos quais vemos incorrer um duplo movimento social que confere cada vez mais legitimidade aos arquivos:

De um lado, cada grupo minoritário interessado na afirmação e na preservação da sua memória estaria começando a investir na criação de seu próprio espaço de arquivamento e, de outro, os arquivos, mesmo os já existentes, estariam se tornando objeto de um interesse mais disseminado, atraindo públicos distintos dos tradicionais especialistas. (Heymann, ٢٠٠٦, p. ١٢١)

Thiesen (2011) aponta para a especialização e transformação que o cenário arquivístico atravessou nos últimos anos, consequência do que a autora denomina como um dever de arquivo. Esse dever teria decorrido, num primeiro momento, de um direito de arquivo e, depois, de um desejo de arquivo. Ou seja, “nascido como um direito, tende a se tornar um dever” (Thiesen, 2011, p. 218), isso porque ao longo do tempo histórico a luta por direitos também contemplou a questão dos arquivos, seja na luta por sua legitimação, preservação ou uso, que resultou em uma atual valorização do testemunho.

A necessidade da sociedade contemporânea em produzir arquivos – que Huyssen (2014) chama de arquivos traumáticos – passa pelo poder do Estado e por políticas públicas memorialísticas. Segundo Huyssen (2014), os arquivos traumáticos não são constituídos a partir da lógica arquivística tradicional, mas são aqueles produzidos a partir de testemunhos recolhidos a instituições de cunho arquivístico, como vemos, por exemplo, com o vínculo institucional estabelecido entre o projeto Memórias Reveladas e o Arquivo Nacional do Brasil.

Sobre os poderes dos arquivos

Após a explanação anterior, podemos considerar que as possibilidades de cidadania, identidade, reconhecimento, construção de narrativas memoriais e históricas, capacidades de lembrança, de prova de alguma atividade, dentre outras, não podem ser classificadas como possíveis poderes dos arquivos. Estes são os funcionamentos sociais dos arquivos que se modificam de acordo com os arranjos dos dispositivos em um determinado tempo. Os funcionamentos estão relacionados à sua capacidade arcôntica e ao seu papel instituidor, que envolve a legitimação de determinados passados formalizados e todo um aparato simbólico, legal, burocrático que envolve os arquivos, a partir dos jogos de poder e das relações de força ordenadas pelo dispositivo de arquivo. O que podemos observar na contemporaneidade são os funcionamentos relacionados com as políticas de memória – principalmente as memórias sensíveis – dos Estados democráticos, que envolvem os discursos sobre identidade, reparação e direitos humanos.

Esta solicitação contemporânea pela abertura é indissociável da exigência de um novo tipo de direito, de um “direito à memória” assente em uma vontade de saber dos arquivos. Coexistem aí, no bojo desta solicitação, as comissões de “verdade e conciliação”, os “museus da memória”, as “exposições itinerantes” e todo um conjunto de questões que pertencem a um novo dispositivo. (Salomon, 2011, p. 6-7)

Acreditamos que as demandas por memória e por “espaço” no passado, e as noções de dever e de justiça de memória, acabaram por gerar lutas e disputas políticas que desestabilizaram o dispositivo de arquivo, necessitando de novas estratégias para responder a esta urgência. A nosso ver, essas solicitações que incluem todo um conjunto de práticas dos arquivos – e uma determinada vontade de saber dos arquivos, conforme apontamento do autor acima – não estão ligadas a um novo dispositivo, mas a uma reconfiguração do mesmo dispositivo: o dispositivo de arquivo.

Os discursos sobre a abertura dos arquivos, por exemplo – assim como o aparato legal e os movimentos da sociedade que surgiram com esse discurso – aparecem como estratégias na tentativa de localizar novas informações para os cidadãos sobre um passado que apesar de recente é restrito e obscuro. Salomon (2011), baseado em Combe, aponta que uma das possibilidades de urgência é que o funcionamento do arquivo contemporâneo agregue as múltiplas lutas políticas, que dê conta “do direito dos cidadãos de se apropriarem de sua própria história”, ou seja, da capacidade que cada cidadão adquiriu de saber, por exemplo, se há um dossiê com seu nome e de consultá-lo sem ser impedido, assim como do direito que as famílias têm de saber sobre os desaparecidos políticos. Assim, por exemplo, a “urgência do movimento pela abertura dos arquivos é aquela de uma luta pelo direito de se apropriar, por meio dos arquivos, não da vida dos filhos e familiares desaparecidos nos porões da ditadura militar, mas de sua memória” (Salomon, 2011, p. 8).

Não podemos esquecer ainda do jogo com o tempo histórico no qual o arquivo está inserido, mesmo o arquivo com seus funcionamentos contemporâneos, carregados da noção de dever e de justiça social. Assim, olhar para o passado, incluindo o olhar metódico a partir de fontes autorizadas, é sempre um olhar do presente. E essa é uma espécie de “manipulação do tempo”. Sarlo (2007), baseada em Didi-Huberman, nos aponta que o olhar para o passado é sempre anacrônico, pois qualquer jogo que fazemos com o passado está tecido em “fibras de tempo entremeadas” (Sarlo, 2007, p. 59), como em campos arqueológicos a serem decifrados. Assim,

o anacronismo nunca poderia ser totalmente eliminado, e só uma visão dominada pela generalização abstrata seria capaz de conseguir aplainar as texturas temporais que não apenas armam o discurso da memória e da história, como também mostram de que substância temporal heterogênea são tecidos os “fatos”. Reconhecer isso, porém, não implica que todo relato do passado se entregue a essa heterogeneidade como a um destino fatal, mas que trabalhe com ela para alcançar uma reconstrução inteligível, ou seja: que saiba com que fibras está construída e, como se se tratasse da trama de um tecido, que as disponha para mostrar da melhor maneira o desenho pretendido. (Sarlo, 2007, p. 59-60)

As formas de compreensão do presente, evidenciadas por novas questões e novos olhares, transformam, portanto, os funcionamentos dos instrumentos de acesso ao passado, como é o caso dos arquivos: “nas décadas de 1960 e 1970 não existia nos movimentos revolucionários a ideia de direitos humanos. E, se é impossível (e indesejável) extirpá-la do presente, tampouco é possível projetá-la intacta para o passado” (Sarlo, 2007, p. 60). Dessa forma, não podemos projetar um determinado funcionamento do arquivo, instituído no presente, para um do século XIX, por exemplo. Isso, segundo Sarlo (2007), seria anacrônico. Cada funcionamento social dos arquivos é histórico e efeito dos arranjos estabelecidos em um determinado tempo histórico do dispositivo de arquivo. Mas, a partir do mesmo movimento nos perguntamos: como projetar para o futuro os novos funcionamentos dos arquivos que interferem nas práticas arquivísticas?

Essa questão nos remete ao arquivo como lugar de violência (Derrida, 2001). Sabemos que o processo de constituição dos arquivos não é natural, acumulado de forma passiva e objetiva, sem sofrer interferências (Carter, 2006). Sabemos também que é um processo social seletivo, ordenado, delimitado, estabilizado pelos jogos de poder e pelas correlações de força arranjadas no dispositivo de arquivo. Os arquivos, portanto, são espaços de poder (Carter, 2006). Dessa forma, ao pensarmos no arquivo como “pedra de toque” (Millar, 2006), como instrumento para a construção de memórias, recaímos nas seguintes questões: qual memória o arquivo preserva? Quais eventos serão arquivados e quais serão esquecidos? O passado de quais grupos será institucionalizado, legalizado e custodiado pelos arquivos?

O perigo de usar arquivos como ferramentas para apoiar a memória social é que a seleção de registros para retenção é, e sempre foi, e sempre será, subjetiva. Quem na sociedade decide o que será mantido? Quem decide o que será destruído? Se a memória social for forjada e moldada através de um processo de escolha e seleção, então os veículos da memória estarão sujeitos à inevitável parcialidade e preconceito dos que estão na sociedade com o poder de escolher e selecionar. Os arquivistas há muito lutam com as implicações da avaliação – e as consequências da retenção e destruição seletivas – na preservação de um registro “equilibrado” da sociedade. O fato é que os arquivistas simplesmente não podem saber quais registros irão acionar quais memórias; se não há uma relação de um para um entre a pedra de toque e a lembrança, então devemos nos voltar para nossa sociedade em busca de orientação, reconhecendo o tempo todo que (a) a realidade presente de todos afeta seu senso da importância do passado; e (b) os arquivos não são apenas ferramentas para a memória, mas antídotos para o esquecimento. (Millar, 2006, p. 123, tradução nossa)

A manipulação do tempo, como estamos tratando aqui, não é, na grande maioria das vezes, uma manipulação maniqueísta: é um jogo do presente com representações do passado e com possíveis acionamentos de memórias no futuro. Cabe aos arquivistas reconhecerem a subjetividade como instrumento de trabalho, a impossibilidade de o arquivo ser a realidade do passado, de não refletir a verdade, e se entenderem como elementos nessas correlações de força (Millar, 2006). Mas também de reconhecer que os arquivos nunca representarão a totalidade do que já passou e nem totalmente a sociedade, pois mesmo em um ambiente de “arquivos totais” os arquivos não têm a capacidade de refletir a multiplicidade de práticas e relações sociais de toda a sociedade (Carter, 2006).

A violência arquivística pode, juntamente com o poder arcôntico e institucional, ser considerado um poder arquivístico. É a capacidade que o arquivo carrega consigo de selecionar, o que permite, ao mesmo tempo, que vozes sejam ouvidas e outras excluídas, de preservar em sua morada certos registros que podem ser lembranças de um grupo e nenhum tipo de recordação de outro (Carter, 2006). É o poder de inclusão que é inegavelmente inseparável do poder de exclusão.

Uma vez que os arquivistas estejam cientes dos silêncios em seus arquivos, eles podem tomar medidas para tentar permitir que várias narrativas preencham algumas dessas lacunas, conscientizem os usuários dos silêncios e tentem entender e respeitar a escolha de certos grupos em manter seu silêncio. (Carter, 2006, p. 216-217, tradução nossa)

O jogo político dos e nos arquivos é visto ao analisar os processos seletivos imbricados nas práticas arquivísticas. Carter (2006) afirma que somente certas vozes são autorizadas a entrar nos arquivos. Aos marginalizados, o silêncio. Assim, a violência arquivística também pode ser observada “no uso de documentos para reforçar e naturalizar o poder do Estado no silenciamento ativo dos marginalizados” (Carter, 2006, p. 219, tradução nossa). É o DA operando nos arquivos: naturalizando suas práticas, apagando as seleções, invisibilizando os silêncios.

No arquivo há o que pode ser chamado de presença ausente [absent-presence]. O que está presente nos arquivos é definido pelo que não é. E os silêncios arquivísticos são delimitados pelas vozes arquivísticas. Vestígios dos silenciados ou silenciosos inevitavelmente estarão presentes nos arquivos. O problema está em identificá-los. A questão pertinente que surge é como alguém pode “provar a ausência de um arquivo”? Onde alguém começa a procurar? Como começamos a procurar ausências? É somente na consciência do silêncio que podemos começar a remediá-lo. É preciso reconhecer que um grupo não está presente nos arquivos. (Carter, 2006, p. 223, tradução nossa)

Cabe ainda aos arquivistas se reconheceram nos jogos de poder e como elementos não neutros e não passivos dos processos seletivos: participam da produção de vozes e silêncios ao permitir ou negar espaços nos arquivos, legitimando ou não determinadas narrativas sobre o passado. É o entendimento de sua responsabilidade nas práticas arquivísticas e de seu lugar no DA. Os arquivistas precisam se perceber, portanto, como interfaces do tempo (Hedstrom, 2002), participando do processo de seleção do que será preservado, descrevendo e criando pontos de acesso a determinados registros do tempo passado que intuem as possibilidades de acesso a esses documentos no futuro.

Destacamos que este lugar de interface está sempre marcado pelo presente, em um jogo com o passado e com o futuro. É o passado e o futuro instituídos no presente dos arquivos. O grande poder do arquivo, portanto, não está na capacidade de preservar a memória ou de ser a memória, mas na potência de gerir o tempo histórico formalizado, ou seja, de ser uma das vias de possibilidade de construção de passados formalizados, legitimados e institucionalizados, construindo, assim, de forma consciente, uma totalidade de restos.

Considerações finais

O conhecimento oficializado, autorizado e legitimado sobre o passado é construído por vias legais e reconhecidas – como testemunhos, documentos, agentes e lugares – assim como por metodologias próprias para o estabelecimento e análise desses instrumentos e de construções das narrativas sobre o passado. E muitos desses registros autorizados foram selecionados e conservados em espaços institucionalizados que garantem seu peso legal. Por isso, recorremos ao arquivo como lugar autorizado para a construção de narrativas sobre o passado. Essa autoridade e legitimidade é construída e delimitada pelas relações estabelecidas nos arranjos do dispositivo de arquivo. O arquivo, então, não deve ser entendido como um mero conjunto de documentos acumulados, mas sim visto em sua complexidade de relações na teia do dispositivo de arquivo. E é esse o lugar do arquivo no dispositivo de arquivo.

Dessa forma, afirmamos que o DA fornece as condições de possibilidade de existência dos arquivos, assim como o entendimento do arquivo como lugar de privilégios, configurado a partir das relações de poder nas quais ele se encontra imbricado. Há na própria constituição dos arquivos – e em suas perspectivas de acúmulos, de fixação de sentidos sobre o passado e de acessos – uma vontade de verdade e uma manipulação do tempo, marcadas por sua institucionalidade e capacidade legitimadora. O arquivo, como guardião legítimo dos registros que representam o tempo passado, formaliza, seleciona e ordena o que se sabe sobre esse passado. O arquivo legitima esse passado, fixando sentidos, construindo narrativas, regulando determinadas representações sobre o passado em detrimento de outras, estabelecendo o passado social formalizado como seu objeto institucional, ou seja, o arquivo age no tempo a partir de seus poderes institucional, legitimador e arcôntico conferidos a partir dos jogos de poder ordenados no dispositivo de arquivo.

Apontamos ainda que o passado social formalizado preservado nos arquivos não é exatamente o passado como passou, mas sim um passado organizado por diversos elementos que constituem as relações de força do DA. Dessa forma, afirmamos que os arquivos devem ser vistos como potências de construção de passados sociais formalizados e legitimados por seu poder de instituição, de legitimação e seu poder arcôntico.

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WILKE, V. O dispositivo informacional: sobre informação, Estado e poder na contemporaneidade a partir do contexto das políticas públicas de inclusão digital do governo brasileiro. 328f. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – Universidade Federal Fluminense, 2009.

WINTER, J. The generation of memory: reflexion on the memory boom in contemporany historical studies. Germany Historical Institute, v. 27, 2000.

Recebido em 4/5/2023

Aprovado em 29/6/2023


Notas

1 Este artigo é resultado da pesquisa de doutorado da autora em ciência da informação intitulada (Re)pensando o arquivo a partir da noção de dispositivo: um estudo epistemológico, defendida em 2019 no Programa de Ciência da Informação da Universidade Federal Fluminense.

2 Encontramos na literatura outros recortes para o conceito, como, por exemplo, no próprio Foucault, a análise dos dispositivos de sexualidade, de controle e de segurança. Também encontramos em Wilke (2009), Benevides (2013) e Sais (2011) o dispositivo informacional, o dispositivo da verdade e o dispositivo da velhice, respectivamente.

3 “Linhas de força” foi um conceito utilizado por Deleuze (2015) para analisar os arranjos e configurações no dispositivo. Para o autor, os dispositivos são arranjados a partir de disputas entre as linhas de força (assim como pelas linhas de fissura, de brecha, de enunciação, de visibilidade) que “se entrecruzam e se misturam, acabando umas por dar noutras, ou suscitar outras, por meio de variações ou mesmo mutações de agenciamento”, produzindo determinadas delimitações de tempo e de espaço às práticas discursivas e não discursivas (Deleuze, 2015, p. 89).

4 Lembramos que há diversas outras formas de conhecimento sobre o passado que não passam por vias do Estado. São vias múltiplas, não oficiais, que englobam outros meios de transmissão a partir da oralidade, da família, de comunidades, de associações religiosas, por exemplo, que, por sua vez, disputam espaço na memória oficial a partir de seus “empreendedores de memória” (Michel, 2010, p. 19). Na pesquisa original da tese há um levantamento sobre essas diversas formas de conhecimento sobre o passado.

5 De acordo com Freitas, os arquivos são imprescindíveis “aos funcionamentos sociais da fixação de enunciados em formas documentais – acompanhados da ilusão da fixação de sentidos” (Freitas, 2009a, p. 10).

6 Neste caso não nos referimos à subjetividade como o oposto à objetividade, por aquela estar ligada ao próprio ordenamento do dispositivo a partir das inúmeras relações de força e de poder por este estabelecidas. Destacamos que o uso da noção de dispositivo supera a dicotomia entre subjetivo/objetivo, pois o dispositivo produz e tem efeitos para além dos agentes imediatos.

7 A definição de arquivos pela lei francesa, em 1979, assemelha-se à definição da lei brasileira. Segundo Delmas (2010) e Anheim e Poncet (2004), arquivos são todos os documentos, independentemente de data, forma ou suporte material, produzidos e recebidos por pessoas físicas e jurídicas ou quaisquer serviços ou órgãos públicos ou privados, no decorrer de suas atividades.

8 De acordo com Carter, os arquivos canadenses baseiam-se na perspectiva dos arquivos totais em que “as instituições patrocinadas pelo Estado são responsáveis pelos registros criados pelos governos, bem como por indivíduos e organizações, e que são responsáveis pelo papel de guardiões da memória e identidade para toda a nação” (Carter, 2006, p. 218, tradução nossa).

9 Encontramos na literatura outros recortes para o conceito, como, por exemplo, no próprio Foucault a análise dos dispositivos de sexualidade, de controle e de segurança. Também encontramos em Wilke (2009), Benevides (2013) e Sais (2011) o dispositivo informacional, o dispositivo da verdade e o dispositivo da velhice, respectivamente.



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