Acervo, Rio de Janeiro, v. 37, n. 1, jan./abr. 2024
Memória e história: potências e tensões nos usos de acervos privados | Dossiê
Unir as almas, discutir a nação, impor-se
Gênero, guerra e literatura nas correspondências de Teresa González de Fanning a José Enrique Rodó (1897-1901)
Uniting souls, discussing the nation, imposing oneself: gender, war and literature in correspondence sent by Teresa González de Fanning to José Enrique Rodó (1897-1901) / Unir las almas, discutir la nación, imponerse: género, guerra y literatura en las correspondencias de Teresa Gonzáles de Fanning a José Enrique Rodó (1897-1901)
Elisângela da Silva Santos
Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp/Marília). Realiza pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP). Professora do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp/Marília), Brasil.
Resumo
O texto apresenta e discute as cartas da escritora peruana Teresa González de Fanning enviadas ao escritor uruguaio José Enrique Rodó. Nossa proposta é reabrir os arquivos para revelar uma faceta importante do epistolário do autor: a presença de mulheres refletindo sobre o destino nacional e continental. Concluímos que as missivas cumprem o papel de nos aproximar do tema da sociabilidade intelectual de uma autora que acessou a escrita como forma de expressão cultural e política.
Palavras-chave: Teresa González de Fanning; correspondência; sociabilidade literária; José Enrique Rodó.
Abstract
The text presents and discusses the letters from the Peruvian writer Teresa González de Fanning sent to the Uruguayan writer José Enrique Rodó. Our proposal is to reopen the archives to reveal an important facet of the author’s epistolary: the presence of women reflecting on the national and continental destiny. We conclude that the missives fulfill the role of bringing us closer to the theme of intellectual sociability of an author who accessed writing as a form of cultural and political expression.
Keywords: Teresa González de Fanning; correspondence; literary sociability; Jose Enrique Rodó.
Resumen
El texto presenta y comenta las cartas de la escritora peruana Teresa Gonzáles de Fanning enviadas al escritor uruguayo José Enrique Rodó. Nuestro propósito es reabrir los archivos para revelar una faceta importante del epistolario del autor: la presencia de mujeres reflexionando sobre el destino nacional y continental. Concluimos que las misivas cumplen un rol de acercarnos del tema de la sociabilidad de una autora que accedió la escrita como forma de expresión cultural y política.
Palabras clave: Teresa González de Fanning; correspondência; sociabilidad literária; José Enrique Rodó.
A correspondência passiva de José Enrique Rodó (1871-1917), enquanto extensão e variedade de presenças, espelha o interesse de um autor que sempre buscou diversificar seu campo de atuação e raio de contatos. O farto número de cartas conservadas no Arquivo de José Enrique Rodó revela que este autor foi um fecundo correspondente, disciplinado e extremamente ativo. Estas cartas foram utilizadas como veículos para esboçar seus projetos e difundir sua produção intelectual, e o uso desse artefato socializante pode ser enxergado como emblema de seu engajamento na construção de uma intelectualidade continental.
Apenas parte da correspondência do autor foi compilada e publicada – Barbagelata (1921), Rodríguez Monegal (1953 e 1967) Penco (1980). É recente o interesse de alguns pesquisadores sobre o retorno às cartas de Rodó, e menciono os trabalhos de Castro Morales (2013) sobre as correspondências inéditas entre o uruguaio e o cubano Rafael Merchán, os trabalhos de Cesana (2017 e 2022) sobre a relação epistolar entre Rodó e os irmãos mexicanos Henríquez Ureña e com o venezuelano Rufino Blanco Fombona, respectivamente; por fim, a compilação de Elena Romiti (2016) sobre a inserção de Miguel de Unamuno no Uruguai, que tinha entre seus correspondentes Rodó.
O crítico uruguaio Roberto Ibáñez foi o primeiro a se debruçar sobre os papeis inéditos de Rodó, que foram doados pela sua família nos anos 1940 à Comissão de Investigação Literária criada por ele, que viria a se tornar Instituto de Investigaciones y Archivo Literario (Inial). Foi com o Arquivo do autor que se estabeleceu um fundamento de seu método investigativo a partir da crítica genética, e a construção de um cânone da literatura nacional baseada em manuscritos, impressos e objetos do autor (Bajter, 2012).
Em sua distribuição metódica dos originais, Ibáñez e sua equipe o dividiu em cinco séries temáticas: manuscritos, correspondências, impressos, documentos e testemunhos. A unidade correspondências foi dividida em três: cartas de Rodó, cartas a Rodó e cartas sobre Rodó; algumas dessas se tornaram prólogos de livros e foram publicadas em jornais e revistas como abertas, mas sua maioria permanece inédita. Como se pode observar em suas correspondências passivas ou ativas, há um caráter heterogêneo em termos de assuntos e interlocutores, estes de diversas partes do mundo, principalmente do continente latino-americano e Espanha.
Uma copiosa fortuna crítica a respeito dos enlaces entre o arielismo e os desafios nacionais tem tratado de modo reiterado a importância de José Enrique Rodó para a juventude de diversos países hispano-americanos, estabelecendo-o como um ideólogo da identidade continental, devido ao alto impacto que sua obra Ariel (1900) teve no continente; aqui estamos sugerindo um incremento a essas análises a partir de uma pesquisa realizada nos documentos, de valor incalculável para a memória do continente, presentes em seu Arquivo, no caso, as cartas, que carregam a importante missão de difundir a perspectiva deixada por uma correspondente que compartilhou em diversos momentos sua biografia, seus dilemas sociais e o testemunho do significado de ser uma mulher escritora no final do século XIX e início do XX.
Neste texto, considerando os elementos contidos no imenso corpus epistolar, temos como objetivo visitar o diálogo travado entre José Enrique Rodó e a escritora peruana Teresa González de Fanning (1836-1918). A análise se volta a partir de um intento de feminizar essa troca de correspondências extremamente marcada por figuras intelectuais masculinas que discutiam o destino intelectual do continente, sua fragmentação, os conflitos internos e a dificuldade do exercício pedagógico e literário a partir da periferia, temas que a autora também compartilhou com seu correspondente, exercício que nos permite recuperar a obra de escritoras silenciadas ou marginalizadas, e incluir uma visão menos homogênea e masculina do problema dos nacionalismos e identidades.
Uma leitura a contrapelo revela que localizar a figura da mulher a uma esfera da história de esquecimentos e marginalização é ao mesmo tempo não reconhecer sua atuação no campo político continental. Brigitte Diaz (2016) comenta que os testemunhos presentes nas correspondências das mulheres são lugares de memória, que se adensam a partir do século XIX, e ao serem encaradas como “crônicas de vida minúsculas” (p. 203), essas cartas constituem um observatório para avaliar as práticas sociais, as representações que cada um se faz sobre seu papel na família, no casal e na cidade. Em sua maioria, trata-se de mulheres pioneiras no seio da família, excluídas da cidade, que tomaram a pena para exorcizar esse isolamento, contestar sua nulidade social. A escrita da carta é o primeiro gesto necessário, todavia nunca suficiente, para quebrar sua exclusão.
As cartas enviadas por Fanning a Rodó aqui analisadas foram trocadas entre 1897 e 1901 (pode ser que existam mais cartas da autora, mas realizamos a análise das correspondências passivas, conservadas em seu Arquivo, do intervalo de 1890 a 1910), somando um total de sete correspondências. Esse interregno comprova que não foi escasso e nem passageiro o diálogo entre ambos, principalmente se considerarmos o volume de correspondência recebido naquele período pelo autor.
Infelizmente, não contamos com as cartas enviadas por Rodó a Fanning, apenas conseguimos localizar os rascunhos de duas cartas dirigidas à autora no ano de 1897, pois seu Arquivo conserva três cadernos de cartas enviadas entre fevereiro de 1896 a novembro de 1897, o que demonstra e comprova ainda mais o que ressaltou Ibáñez (2014, p. 40) sobre a “vontade testamentária” que Rodó possuía, traduzindo na conservação cuidadosa de toda correspondência que recebia, desde papéis aparentemente fortuitos como cartões-postais, fotografias ou recados enviados por seus interlocutores, recortes de jornais e livros etc. A correspondência passiva do autor, em relação a tamanho e multiplicidade de presenças, demarca muito bem seus interesses em tecer redes e teias a partir das epístolas, muitas vezes utilizadas como um meio de rotinização do arielismo.
Conforme analisou Eduardo Devés-Valdés (2012), Rodó e seu arielismo contribuíram para a consolidação de redes intelectuais que desenvolveram uma “consciência comum”; o uruguaio se consolidou como protagonista de seu tempo. O estudo dessas redes é um método capaz de detectar os contatos de longa duração entre pessoas dedicadas à tarefa intelectual, buscando-se a existência de canais de circulação de ideias e de nós, de enlaces mais ou menos densos, nos quais se gestam diversas iniciativas.
De acordo com Julio Ramos (2008), o campo literário finissecular latino-americano produziu um discurso da cultura como resposta à fragmentação moderna. Não foi por acaso que nas primeiras décadas no século XX o ensaio proliferou simultaneamente ao projeto culturalista; sua forma representa o lugar ambíguo do literato perante a vontade disciplinar, característica da modernização. Em muitos sentidos, o ensaísmo dos Novecentos repolitiza as estratégias de legitimação, especialmente no que diz respeito à fragmentação que a literatura estava elaborando naquele momento. Dessa forma, a América Latina existe como um campo de luta, onde diversos postulados e discursos latino-americanistas têm batalhado historicamente para impor e neutralizar suas representações.
Desse modo, Rodó não foi o único autor que analisou e tentou fornecer teoricamente possíveis soluções para os problemas enfrentados pelo continente pós-independência. Ramos (2008) aponta outro exemplo emblemático, o do cubano José Martí (1853-1895), que em sua análise sobre a sociedade e identidade latino-americanas reconhece e afirma a realidade marcada pela fragmentação e pela busca desesperada de condensar o disperso, reativar a totalidade orgânica, “original”, perdida, mas presente em nossa memória e em nossa história. Há um desejo de unidade, um desejo de ordenar o caos, talvez um traço da herança iluminista que Bolívar lhe deixou. Dessa forma, ainda se apoia na autoridade da literatura e na sua capacidade de disseminação e de inauguração de outras representações sobre a realidade.
O corpo da mãe América foi “desconjuntado” e “decomposto”. O discurso martiniano se situa também frente à fragmentação e intenta condensar o disperso, em sua obra a história não é vista como o devir harmonioso de uma perfeição futura, mas como um processo de lutas contínuas, de um passado sufocante.
Nos interessa ler as cartas de Fanning aqui analisadas a partir do impacto político e cultural que elas podem ter na análise da atuação feminina pública nas discussões dos processos sociais e históricos concernentes à nação e também ao continente, portanto, também inserida nesses processos discursivos atrelados à modernidade e à identidade, que do mesmo modo colocava na pauta a atuação das mulheres nesse processo.
A partir desse espaço epistolar, muitas vezes visto como escritos recônditos, que raramente viriam à tona, Fanning coloca em cena uma subjetividade bastante fraturada devido às consequências catastróficas que a Guerra do Pacífico (1879-1883) teve em sua vida, mas, ao mesmo tempo, o paciente trabalho de tecer redes com um autor conhecido como Rodó possibilita acessar espaços e debates dos quais, a rigor, a mulher do final do século XIX estava privada.
Os testemunhos relatados nas correspondências são registros de um perfil que se movia em torno de diversos assuntos, representa a “exterioridade de uma interioridade” (Neves, 1988, p. 191), torna público o que é de cunho privado e promove o lançamento do indivíduo na sociedade. Nesse sentido, “a carta pode ser, então, extremamente útil como fonte de informação sobre a alteridade” (Neves, 1988, p. 192).
Os temas das cartas de Fanning são diversos, incluindo a resposta formal ao convite de Rodó em nome da Revista Nacional de Literatura y Ciencias Sociales, veículo localizado em Montevidéu, para enviar contribuições a serem publicadas, a queixa intelectual e a análise da produção do autor, a indicação de uma amiga escritora conterrânea, a análise profunda sobre a obra de seu correspondente, críticas sobre a dificuldade da comunicação entre os países sul-americanos, a análise política sobre a guerra e, por fim, o desejo de equidade e paz entre as nações.
Como observaremos, o contato epistolar entre ambos revela uma miríade de temas que nos permitem cartografar questões sobre os campos intelectuais peruano e uruguaio, nos quais os correspondentes buscaram se posicionar, cada um a partir de sua condição de gênero e inserção; desejosos por tecer uma rede de contatos e de relações pessoais, o material aqui analisado e cotejado explora o fato de que as mulheres não estiveram ausentes do debate público sobre a construção da nação, situações de guerra, a necessidade de centralizar temas como a fragmentação do continente, a necessidade de educar a população e, principalmente, a constituição da literatura nacional.
Como ressaltou Mary Pratt (1994), em relação ao extensivo corpus ensaístico, agregamos aqui o epistolar, sobre a identidade latino-americana, produzido pelas intelectuais latino-americanas do século XIX, que podem ser lidos em diálogo com a vasta ensaística masculina.
A obra de José Enrique Rodó não pode ser considerada como portadora de uma lição inovadora para a participação da mulher na esfera pública, característica comum de sua época. Situação similar pode ser observada a partir do seu contato epistolar ínfimo com escritoras (em sua obra completa, organizada por Rodríguez Monegal – 1967, há a publicação de apenas duas correspondências trocadas com escritoras mulheres, uma com sua conterrânea María Eugenia Vaz Ferreira e outra com a poeta cubana Dulce María Borrero de Luján). O tema que desaguaria mais tarde no debate sobre a equidade de gênero é pouco referenciado em seus livros, pois a figura da mulher, quando emerge, é idealizada, como notamos no texto de autoria de Rodó, intitulado “Maris Stella”, de 1912, publicado originalmente no periódico La Democracia.
No ensaio, o narrador diz que escreve “por um momento quase inconsciente de sua pluma” (Rodó, 1967, p. 1.191), e ao associar a imagem de uma dama uruguaia em um álbum, ressalta que a mulher seria a representante de uma beleza superior, o “supremo império da delicadeza, do refinamento, da graça” (p. 1.191), seria a representante da honra da terra, uma soberania, a suave magia idealizadora. Em suas palavras:
Por isso ela não deve lamentar-se de sua inferioridade utilitária, que é a condição de outra utilidade de espécie superior, nem deve renunciar à sua debilidade, que constitui seu timbre aristocrático na natureza. Essa debilidade aparente é, definitivamente, uma força poderosa na vida da humanidade, como é a debilidade encantadora da criança, que nos obriga a uma contínua efusão de benevolência, mantém vivas em nós as fontes mais preciosas para a frescura da vida interior. (Rodó, 1967, p. 1.192)
Em toda obra “varonil” a mulher estaria presente, tendo participação como inspiradora, inferior e utilitária.
Outro ensaio importante do autor em que menciona a mulher foi seu informe “Trabajo obrero en el Uruguay”, de 1908, originalmente concebido como informe para a Câmara de Representantes do Parlamento uruguaio, posteriormente enfeixado em seu último livro El mirador de Próspero (1913); nessa produção Rodó discute a questão do trabalho fabril no Uruguai, afirmando a necessidade de fomentar o espírito de associação profissional entre empregados e patrões para conter os conflitos e criar-se uma personalidade corporativa, que equilibrasse o direito de ambas as partes.
Nesse debate, insere o tema do trabalho noturno feminino, e aponta que o verdadeiro lugar de desempenho da mulher seria, na realidade, no interior do lar, cuja função era formar, organizar e manter a unidade da família. No entanto, como não é possível excluí-la do mercado de trabalho, ela deveria ser excluída das horas extras, não permitindo ultrapassar oito horas de suas atividades diárias:
Embora não justificasse uma natural inferioridade de energias físicas, que é fato de observação comum, teria sólido fundamento no interesse vital de reservar a mulher tempo suficiente, dentro do lar doméstico, para o desempenho dos cidadãos que a competem, e para formar e manter a sagrada unidade da família, pedra sobre a qual descansam toda moralidade e toda ordem social. (Rodó, 1967, p. 679)
Podemos notar nessas concepções rodonianas do início do século uma interpretação masculina fundamental na demarcação dos espaços de atuação da mulher, que também sofria as consequências de um processo cada vez mais acelerado de divisão do trabalho social. A função como operária deveria estar em consonância com suas tarefas domésticas, seu espaço natural de atuação. No mesmo sentido, no texto escrito quase de “modo inconsciente”, a mulher aparece como inspiradora, portadora de beleza superior, mas novamente fraca e sensível, portanto, a ênfase é dada nos principais mecanismos de exclusão que justificaram a ausência da mulher na cena intelectual e literária como produtoras de ideias, a partir da evocação do estereótipo da mulher construído no imaginário poético masculino.
As cartas trocadas com a escritora peruana, por seu turno, nos trazem novas possibilidades de leituras sobre a relação intelectual estabelecida por Rodó, que ansiava construir laços sólidos com escritores de diversas partes do mundo. Em seu oceano epistolar a mulher também impõe sua escrita.
É importante mencionar que outras vozes intelectuais masculinas nesse período foram dissonantes em relação à posição rodonina, como por exemplo José Ingenieros (1877-1925) e Ernesto Quesada (1858-1934), e de acordo com Laura Cordero (2009) ambos coincidem com o caráter inevitável do feminismo e sua ligação com a modernidade e com o progresso. O primeiro propunha um programa de “feminismo científico”, que consistia na transformação da sociedade como um todo, e na evolução da instituição familiar, processo que poderia levar muitos anos para se concretizar. No texto “Bases del feminismo científico”, de 1898, Ingenieros apontou que era o momento de acabar com as manifestações do feminismo idealista e apostar em critérios mais acertados do dito criticismo científico e dos métodos e documentos rigorosamente positivos, encarados como a verdadeira força do movimento feminista do porvir.
Desse modo, o tema insurge na sociologia como uma necessidade imperiosa de buscar as relações existentes entre a condição jurídica da mulher e sua condição social, e entendia que a elevação jurídica da mulher seria uma tendência indiscutível no desenvolvimento histórico, e isso é correlativo a uma melhora também da sua situação econômico-social. O nivelamento jurídico, econômico e social entre o homem e a mulher era visto por Ingenieros como condição para a igualdade entre ambos. A esperança para que isso ocorresse efetivamente é dificultada no texto, uma vez que ele omite toda referência às militantes feministas europeias e norte-americanas (Cordero, 2009).
Dora Barrancos (2005) menciona que o termo “feminismo” teve uma precoce recepção na Argentina no final da década de 1890, e atuou como um sinal a mais da modernização em trânsito, mas seu emprego foi polissêmico. Ernesto Quesada teria sido o primeiro, segundo a autora, a efetuar o exame do conceito em seu discurso de abertura da Exposição Feminina, de 1898, em Buenos Aires. Nessa ocasião, apontou que a questão era de assunto e de interesse palpitantes, e que se notava no mundo inteiro, cujas pautas em favor da mulher iam desde sua admissão no ensino superior, nas profissões liberais, industriais e no comércio, lutando por reconhecer direitos civis iguais aos dos homens. Em suas palavras, apontou que “a grande reforma legislativa que este século viu implantar em todos os países consagra, porém, a injusta desigualdade da mulher e do homem, submetendo aquela à perpétua tutela: dos pais primeiro, dos esposos depois, e dos juízes por último” (Quesada, 2009, p. 80).
Advogando pelo fim da menos-valia civil das mulheres, mostrou seu apoio ao trabalho feminino extradoméstico, aludindo possibilidades de elas atuarem em lojas, correios, telefonia, enfermaria, posição que era tida como avançada à época, em uma sociedade que não legitimará o trabalho das mulheres até o final do século XX.
Dora Barrancos (2020), ao analisar a história dos feminismos na América Latina, apontou que se pode encontrar algumas semelhanças entre as lutas das mulheres no continente, no entanto o contexto de cada país influenciou de maneira substancial o desenvolvimento da perspectiva feminista. Contudo, desde o século XX se observam célebres personagens de diversos âmbitos que reivindicavam o lugar da mulher, apesar de muitos casos serem isolados. No caso aqui analisado, a particularidade do contato epistolar entre a escritora peruana e o escritor uruguaio nos permite poder observar as cartas como perspectivas plurivalentes que também revelam algumas dimensões das dinâmicas sociais presentes na sociedade peruana, uruguaia e de outros países do continente.
“Testemunho do indivíduo que escreve, testemunho do grupo ao qual pertence ou tenta integrar, bem como representação contínua de uma ordem social, a carta se encontra ‘na encruzilhada’ dos caminhos individuais e coletivos” (Haroche-Bouzinac, 2016, p. 25).
Teresa González de Fanning foi literata e educadora, seu grande lema estava na crença de que a educação pudesse construir um país moderno e civilizado; casou-se entre 16 e 17 anos com Juan Fanning, um militar de carreira que morreu em 1881 na Batalha de Miraflores, durante a Guerra do Pacífico (1879-1883), e seus dois filhos também morreram quando tentavam fugir de uma sublevação. Encontrando-se sozinha e sem proteção econômica, voltou-se à literatura e à educação (Scott, 1999).
Devido a suas boas relações sociais fundou o Liceo Fanning para mulheres, em 1881, que adquiriu renome entre a alta classe limenha, por conta de suas estratégias pedagógicas inovadoras (Scott, 1999). Seus livros publicados são os romances Ambición y abnegación (1886), Regina (1886), Indómita (1904), Roque Moreno (1904), e o livro de ensaios Lucecitas (1893). Além disso, publicou contribuições nos periódicos mais representativos em Lima, como El Comercio, El Correo del Perú, El Perú Ilustrado, La Alborada, El Semanario del Pacífico, La Patria y El Nacional.
A escritora foi uma das frequentadoras das Veladas Literárias, projeto promovido entre os anos 1876 e 1877 pela intelectual argentina exilada no Peru desde 1848, Juana Manuela Gorriti (1816-1892). As veladas eram espaços de intercâmbio cultural alternativo aos círculos ou academias literárias que existiam em Lima, cuja maioria participante era composta por homens. De acordo com Graciela Batticuore (1999), participaram intelectuais consagrados daquele momento e novos escritores, de algumas partes como Bolívia, Chile, Cuba, Equador e Argentina, conformando um repertório americano. Gorriti, ao instalar as veladas, buscava um espaço alternativo às mudanças sociais da modernização e conseguinte transformação dos valores. Os ensaios lidos nas veladas giram em torno da preocupação em construir uma entidade nacional, e ao redor desta ideia se discutiu a participação da mulher nessa construção, buscando o reconhecimento feminino como igual no plano intelectual e seu papel na educação dentro desse projeto.
Portanto, se no final do século XIX a mulher como o anjo, ou a responsável do lar, se impôs como um modelo de identidade dominante para as mulheres, as autoras começam a circular – a partir de suas publicações e leituras públicas – uma multiplicidade de identidades emergentes, como, por exemplo, a mulher nas letras, na ciência, na educação etc., que muitas vezes não elimina as posições de gênero mais conservadoras, sim convivem.
A pergunta fundamental entre as participantes das veladas era: “Qual papel devem desempenhar as mulheres na definição de uma cidadania prática e republicana, identificadas com a construção da pátria?” (Batticuore, 1999, p. 17).
Dentre as escritoras que integraram esse ciclo estavam as romancistas e jornalistas Clorinda de Matto Tuner (1852-1909), Mercedes Cabello Carbonera (1845-1909), Teresa González de Fanning (1836-1918), Lastenia Larriva de Llona (1848-1924). Todas elas compartilham a condição de ser mulheres solteiras, viúvas, separadas ou casadas, mas em matrimônios pouco convencionais, que vislumbravam um estilo de vida em tenso diálogo com o mandado da reprodução da família, e uma estrutura de afetos alternativa ao modelo de amor que produz formas de subordinação e autoridade nas relações de gênero (Denegri, 2020).
A presença ativa da mulher na imprensa e seu desempenho como escritora haviam sido celebrados e vistos como uma extensão do papel materno-educativo chave para a formação dos filhos da pátria, pois tratava-se de uma idealizada figura da mãe republicana. Como destacou Mary Pratt (1995), não há dúvidas que, para muitas mulheres do século XIX no continente, a negociação de seu status político, econômico, cultural e material no contexto republicano era uma grande preocupação. As poucas que tinham acesso à esfera da escritura, quase todas pertencentes às elites crioulas, deixaram muitos textos que atestam sua luta pela cidadania. As ideologias igualitárias liberais constituíram uma grande abertura para as mulheres.
Nesse sentido, a formulação de um projeto de modernização cultural por parte da intelectualidade liberal peruana esteve ligada ao surgimento da voz literária feminina. As escritoras analisadas foram as primeiras na história do país a ingressar no âmbito do discurso público dominado até então por homens. Portanto, observa-se a importância dessas mulheres para os processos de formação de subjetividades coletivas, eivados de embates questionadores sobre o futuro da nação.
Utilizando como base esta abordagem, propomos incluir a atuação feminina de Teresa Gonzalez de Fanning na imensa teia de relações de correspondências tecida por Rodó, apontando o interesse da escritora em acessar as ideias sobre a produção intelectual e literária do continente. Assim, foi a partir desse espaço que lemos a emergência do ensejo de conquistar seu “eu” epistolar e oferecer informações valiosas sobre seu país a Rodó, desde os desafios de um país que saía de uma situação de guerra, até seu envolvimento direto nas questões educacionais e sociais.
De muito apreciável senhor a meu estimado e bom amigo: oscilações entre a distância formal e a conquista de afetos mútuos
A carta emerge como ferramenta de análise teórica, ao ser deslocada do espaço privado e íntimo para o público. Ela fornece sugestões sobre os possíveis caminhos a serem tomados pelos correspondentes, seus anseios, dúvidas e inquietações. Portanto, a compreensão da trajetória das missivas perpassa pelas suas situações de criação, por conta disso, as cartas são objetos históricos importantes em seu contexto de produção. Por meio desse recurso, podemos orientar nosso olhar para repensar que, apesar de todos os dilemas vivenciados pelas mulheres escritoras latino-americanas do século XIX, elas tentaram, a partir dos mais diversos recursos, acessar o espaço ocupado por homens escritores.
No que concerne à aparência dos manuscritos de Fanning, o estado de conservação das correspondências é bom, pois a autora sempre as enviava em papel timbrado com seu nome completo no canto superior esquerdo, e abaixo do nome o seu endereço. A letra pequena, que ocupa todos os espaços da linha, possui um formato redondo e levemente inclinado para a direita, e é bem legível, ao contrário da letra de seu interlocutor. A intensidade do envio das cartas possui um bom ritmo, e observamos que logo que recebe as respostas do correspondente, Fanning escreve a contrarréplica.
A primeira correspondência de Fanning enviada a Rodó é datada em 25 de agosto de 1897. Seu cabeçalho é formal e se refere ao correspondente como Don José Enrique Rodó. No seu início, desculpa-se ao “muito apreciável senhor” pela demora da contestação da correspondência dirigida a ela em 5 de julho do mês passado, mas justifica que apenas a recebeu em 19 de agosto. Ela agradece o convite que Rodó lhe fez em nome da redação da Revista Nacional de Literatura y Ciencias Sociales, pelo qual se diz muito satisfeita e honrada.
Vocês tiveram o feliz acerto de reunir no interessante quinzenário as produções literárias, perfumadas flores da alma, com os problemas e progresso das ciências sociais, oportunos frutos da inteligência e trabalho humano: quer dizer o ameno com o útil. Enquanto aos seus redatores, seus nomes tão vantajosamente conhecidos no mundo das letras me exprimem toda apreciação ao respeito.1
A escritora complementa a pequena carta aceitando o convite, sem vacilar, e agradece a mostra de confraternidade que Rodó lhe proporciona, saudando-o e enxergando nele um futuro amigo. Interessante mencionar que se em seu cabeçalho inicial os termos utilizados para se dirigir ao seu mais recente correspondente são respeitosos e um tanto hierárquicos, ao final da mesma carta a autora já vê o escritor como um possível futuro amigo – como veremos, a profecia se consolidará.
É válido mencionar aqui o papel que a Revista Nacional adquiriu em seus anos de funcionamento, entre 1895 a 1897, quando foi coordenada conjuntamente por Victor Perez Petit (1871-1947),2 Carlos Martinez Vigil (1870-1949)3 e Daniel Martinez Vigil (1867-1940);4 segundo seus idealizadores, o objetivo era expressar a “vida cerebral” das novas gerações em termos de matéria científica e literária, uma vez que tinha um caráter diferenciado do “noticieirismo sensacional”, e estaria mais interessada em trabalhos científicos ou das letras humanas.
No total foram editados sessenta números da revista, que trouxe em suas sessões textos literários de diversos formatos, comentários sobre obras, crítica literária, reflexões teóricas, notícias sobre a sociedade, programação cultural, cartas enviadas aos seus redatores. Conforme a análise de José Enrique Etcheverry (1950), seus principais conteúdos reforçavam a preocupação rodoniana em divulgar o que o continente produzia em termos de romance, folhetins, poesias, ensaios em geral, além da produção filosófica, jurídica, sociológica, econômica etc.
Desse modo, a revista pode ser lida como um interessante ponto de inflexão de problemas e debates que não ficaram restritos à comarca uruguaia. Conforme destacou Suzana Zanetti (1994), as revistas literárias promoveram, de modo inédito, a religação e a intercomunicação literária do continente, sustentando propostas estéticas comuns e convertendo pela primeira vez a hispano-américa em um campo compartilhado de solidariedades articuladas pela defesa dos mesmos ideais, muitas vezes reveladas nas confidências epistolares estabelecidas entre os jovens redatores e figuras intelectuais do continente.
Nas páginas da revista estão reunidos poucos textos de autoria de mulheres,5 se considerarmos o grande volume de publicação. No entanto, o fato de elas estarem presentes nos índices desse importante veículo é revelador da agência intelectual dessas escritoras através da imprensa literária, importante plataforma de publicização de seus escritos.
A única contribuição de Fanning publicada no veículo uruguaio é o pequeno conto “Perfiles a vuela pluma: Pepe Rosas”, e nele a autora não dispensa a ocasião para expor os estereótipos atribuídos constantemente às mulheres:
E, a propósito, vocês que leem este conto, estarão como a que escreve, fartas de ouvir achacar as mulheres dois defeitos: a curiosidade e a murmuração, defeitos que se não são privativos da humanidade, que é o mais provável, são essencialmente masculinos. (González de Fanning, 1897, p. 122)
Observamos que a autora exibe nesse trecho algumas tendências literárias em voga a partir de sua atuação e intercâmbio com outros escritores de Lima, que voltaram seus olhares para um discurso crítico sobre a condição feminina. É válido ressaltar que em 1898 Fanning publicou o folheto Educación feminina: uma colección de artículos pedagógicos, morales y sociales, cujo tema central era a defesa e a promoção da educação da mulher através de uma instrução laica responsável por transmitir a moral e conhecimentos práticos. No texto a autora acusou as escolas religiosas do pobre preparo das estudantes para enfrentar os desafios do cotidiano.
Essa pauta já vinha sendo defendida nos textos da autora desde os anos 1870. Conforme Francesca Denegri (1996), as escritoras estavam preocupadas com a dependência econômica do matrimônio. Um setor tradicional da velha oligarquia terratenente, que pertencia às famílias de algumas, incluindo Fanning, havia empobrecido, primeiro pelas consequências da guerra, e depois pela competição com o setor exportador. Para as jovens dessas famílias, a possibilidade de casar-se com um homem rico era o único meio com que contavam para alcançar um nível de vida de acordo com suas expectativas.
Para Francesca Denegri e Luz Pino (2021), os ensaios de Fanning acerca da educação feminina fazem um chamado reiterado sobre a educação laica da mulher, como uma espécie de preparação para ajudá-la a enfrentar as adversidades da vida, pois o sistema educativo, com sua pesada carga religiosa, seria o culpado da excessiva banalidade das mulheres, de sua tendência ao egoísmo e da falta de moral.
A essa primeira carta de Fanning referida anteriormente, há em um dos cadernos de rascunhos de Rodó uma resposta provisória do autor, datada em 19 de setembro, no qual ele se refere à sua interlocutora como “distinta senhora”, e aponta que teve a honra de receber a atenta carta, e adjunta a ela, a preciosa página de contribuição à Revista Nacional. Finaliza apontando o merecido prestígio de ver seu nome incorporado ao quinzenário.
As correspondências mencionadas aqui apontam em seu contexto de escrita uma geografia ampla de temas, dentre eles a demora para sua recepção, como atestada por Fanning, o esforço de Rodó e dos outros redatores da revista em expandir seu raio de relacionamento com intelectuais do continente, a modernização do espaço das letras ao abrir espaço para a escrita feminina. Nesse sentido, como apontou José-Luis Diaz, “a carta guarda a pulsação do vivido” (Diaz, 2018, p. 287), por isso nos possibilita falar de literatura, de relação intelectual, da atuação pública da mulher, através de correspondências desconhecidas do público, tornando-se documentos testemunhais importantes para a compreensão de valiosas informações oferecidas pela mulher que também participou ativamente dos discursos de formação da nação e articulou relações intelectuais para além das fronteiras nacionais.
A segunda correspondência de Fanning conservada no arquivo Rodó é datada de 5 de outubro de 1897, e já se refere ao seu correspondente como “estimado amigo”; sob um tom de dúvida e de diálogo, questiona se “aceitaria você este título que sem direito me avanço a dar-lhe?”,6 e afirma se expressar dessa forma devido à amabilidade e cortesia de Rodó. Deseja que o colega de profissão aceite pois estima sua produção e porque lhe dirigirá uma crítica.
Ontem recebi seu folheto “La vida nueva”. Muito grata impressão me fez esta manifestação de apreço da sua parte, mas a dedicatória à “insigne escritora” me fez o efeito de uma nota falsa em bem harmonizada melodia. Me explicarei: sempre censurei o gênero convencional de elogios mútuos tão usado entre os escritores: elogios que a força de os prodigar vieram a constituir uma espécie de falsa moeda cujo valor todo mundo o conhece, um similar do “tenho muito orgulho de lhe conhecer”; embora a pessoa a quem se apresenta nos seja completamente indiferente, quando não soberanamente antipática. Acreditava que a nova geração de escritores jovens que adotar a simplíssima e basta um tanto incompleta frase: “para fulano”; [...]. Mas, ao ver que você, que é dos que avançam nas primeiras filas, me qualifica de “insigne escritora” a mim que, não por acomodada modéstia sem por estrita justiça, não conto entre os redatores do grêmio literário, me recorre a pensar que me sendo provável que você toma o cobre por ouro, me fez o desfavor de julgar-me de tão errado critério que aceitei como merecido um adjetivo que seu galanteio dedica ao sexo mais bem que ao mérito da escritora.7
Teresa Fanning concluía que Rodó saberia julgar com justiça sua observação e comenta sobre seu opúsculo, dizendo que tem acordo com o modo rodoniano de apreciar o objeto, as tendências e a forma da crítica, e assina como a “leal amiga e apreciadora”.
A esta longa carta, Rodó também deixou registrado em seu caderno de rascunhos uma resposta datada em 31 de outubro, em que rebate as críticas reforçando que a considera uma das grandes escritoras da América e a admira primeiramente:
A precisão e cultura do critério, a saudável milícia literária, o vigor e desenvoltura do estilo. Em segundo lugar, a sua carta me agrada e me satisfaz pela franca sinceridade, embora às vezes me lastima por me negar, demasiado cruelmente, a mesma condição preciosa. E em terceiro termo, me interessa tanto mais lhe responder quanto anseio defender-me destes seus ataques que me chegam à alma com o mesmo aço com que você me fere.8
Nora Bouvet (2006) nos ensina que a carta corresponde a um modelo comunicacional aleatório, aberto aos riscos e mal-entendidos, muitas vezes está associada ao mito da sinceridade, transparência, espontaneidade da escritura, no entanto ela traz sempre uma comunicação mista, híbrida a respeito das relações pessoais diretas.
Notamos que esta troca de missivas aqui descrita traz como importante dilema a condição da mulher intelectual do século XIX na sociedade hispano-americana, que experienciava um meio intelectual ainda dominado por homens. Porém sua posição firme, e até audaciosa, ao advertir o autor para não lhe atribuir o exagerado adjetivo, pois não era adepta aos elogios mútuos tecidos pelos escritores, ademais, julgava Rodó um avançado nas ideias, e como ela não contava entre os redatores dos grêmios literários, se colocava no direito de interpretar tal deferência muito mais pelo fato de ser uma mulher do que propriamente uma mulher escritora, que apenas recentemente estava compartilhando sua produção com o correspondente.
Nesse sentido, conforme Alain Pagès (2017), uma carta comunica sua mensagem não somente pelo texto que propõe, mas também pela materialidade dos signos que acompanham o escrito, dentre eles, a forma da escrita da autora. Na carta mencionada, observamos uma pletora de símbolos muito importantes para a mulher peruana daquele momento, desejosa de ser reconhecida pela sua qualidade literária. Hesitante em encarar o elogio como sincero, o tom assume a posição do sujeito de direito que reclama perante seu interlocutor uma agência à figura da mulher. Por fim, chama a atenção a consciência dessa escritora de sua identidade de gênero, os limites que constantemente se deparam por ser mulher e escritora.
Brigitte Diaz (2016) ressalta que para inúmeras correspondentes de George Sand (1804-1876), a busca identitária é presença obrigatória na carta dos relatos de vida das mulheres, e muitas vezes adquirem características de esquemáticos e condensados. Em cartas, são comuns as frustrações femininas que desfilam em um discurso que se enuncia:
Algumas, mais audaciosas, treinam suas vozes nesses exercícios epistolares e trocam o tom lamentoso da elegia por uma palavra mais combativa que deverá finalmente ser ouvida em outras cenas que não a da carta: apelos, exortações, injunções pontuam suas cartas que se tornam uma defesa para a causa das mulheres. (Diaz, 2016, p. 212)
A autora complementa que muitas dessas escritoras utilizaram a escrita epistolar como simulacro de uma liberdade de pensar e de falar. São nessas galerias silenciosas da história e nos arquivos que podemos encontrar suas queixas e reclamações direcionadas aos seus correspondentes.
Eve Maria Fell (1999) apontou que o romance feminino peruano do pós-guerra aparece como uma tentativa intelectual a serviço da regeneração nacional e da modernização da vida social. Um dos textos mais conhecidos de Fanning é “Sobre la educación de la mujer”, incluído na obra Lucecitas (1893). Esse ensaio tem como ponto de partida a crise social e política advinda com a Guerra do Pacífico, repensando o papel das mulheres em sua sociedade e a educação que deveriam receber. A mãe republicana continua sendo o modelo a ser promovido, e Fanning diz que a mulher deveria ser o sol do seu lar.
De acordo com Francisca Denegri (1996), as heroínas românticas criadas pelas novas escritoras emboçavam um modelo de feminilidade em que se manifestava o ideal de progresso europeu: heroína cuja função era manter a ordem doméstica, com isso, a mulher imaginada passou a converter-se em representante de uma nação civilizada. Tema muito frequente nas publicações periódicas daquele momento.
A crítica espanhola Emilia Pardo Bazan (1851-1921), ao prologar a obra de Fanning, felicitou o grupo de escritoras hispano-americanas, mas apontou que ao livro da autora limenha faltava ímpeto e energia para defender uma emancipação plena da mulher. Ana Peluffo (2007) ressaltou que a crítica advertia as escritoras sobre a pouca combatividade das ideias feministas, que não seriam beligerantes o suficiente no momento de defender a necessidade de profissionalizar a mulher das letras.
Nesse contexto, a reprodução e a continuidade de uma ordem social também passavam por cidadãs mulheres, que tinham que aderir a uma modernidade e uma cidadania limitada para si mesmas (Pratt, 1994).
Dora Barrancos (2020), ao analisar a história dos feminismos na América Latina, pontua que no continente se desenvolvera nutridas experiências de associações femininas desde o final do século XIX, embora a adesão por parte dos países tenha ocorrido de forma desigual, devido às circunstâncias de cada sociedade, desde as condições materiais e culturais.
A resposta de Rodó, que “anseia defender-se dos ataques”, apontou ao mesmo tempo um reconhecimento de sua interlocutora sobre sua atuação na “milícia literária”, e novamente o autor tece elogios a ela, comentando inclusive seu vigor e desenvoltura estilística.
A terceira e última carta do ano de 1897 foi escrita por Fanning em 25 de dezembro. A partir dessa missiva não temos mais os rascunhos das respostas de Rodó, nos restando a unilateralidade da relação epistolar, que atinge solidez. Nessa carta a autora se diz “satisfeita e até orgulhosa”9 das razões pelas quais seu “bem amigo” justificou para atribuir o controverso adjetivo “insigne escritora”.
O fato de Teresa González de Fanning ter abandonado logo em seguida o embate com seu interlocutor talvez seja possível de ser interpretado como resultado de um diálogo desigual e assimétrico, já que Rodó naquele momento despontava como intelectual importante e contava com a experiência da editoria de um periódico que, mesmo tendo pouco tempo de funcionamento, havia adquirido bastante notoriedade no meio intelectual latino-americano. Ademais, a polissemia de um feminismo ainda titubeante, que algumas vezes insistia na perspectiva da mulher como o sol do lar, estabelecia essa oscilação entre a crítica e ao mesmo tempo o aceite do elogio, que inicialmente para ela soava falso, mas que num segundo momento o acolhe quase como uma naturalização da hierarquia sexo-genérica presente na relação escritora e escritor.
Fanning afirma na missiva que como prova de amizade que desde “hoje há de unir nossas almas”, vai em imagem (anexa uma fotografia sua) visitar Rodó e seus companheiros de redação. Complementa a carta com a seguinte informação:
Bem pronto se dirigirá às bordas do Prata, Mercedes Cabello de Carbonera, ao meu juízo a primeira escritora peruana e talvez, talvez sim a primeira de Sul América. Seu nome deve ser bem conhecido nessas regiões onde se colhe um dos mais charmosos louros que formam sua coroa literária. Inútil seria lhe recomendá-la, pois, por seguro tenho que há de ser seu amigo.10
Fanning tinha razão, pois Rodó já conhecia Mercedes Cabello Carbonera (1842-1909), inclusive localizamos duas correspondências dela em seu arquivo, uma de 1896 e outra de 1897. Em carta de 26 de setembro de 1896, Carbonera escreveu a Rodó: “Muito estimado colega, foi sua carta que me deu satisfação, não necessitarei lhe provar; me prodiga você elogios e me pede minha colaboração para sua revista, e ambas as coisas me revelam que há em você bondade e simpatia para me julgar”.11
A autora se lamenta no fundo de sua alma por não enviar algo inédito para a revista, mas promete fazê-lo. Como observação final, diz que recebeu de Nova Iorque as provas de seu novo conto.
A única contribuição de Carbonera à revista foi um estudo crítico sobre o texto “La vida nueva”, de Rodó. Este texto manuscrito está entre as correspondências de Rodó em seu Arquivo. Originalmente, a crítica foi publicada no jornal El Comércio, de Lima. Carbonera foi uma das autoras de sua geração que desenvolveu sua carreira literária a partir do gênero romance. Denegri (1996) apontou que em um dos artigos dela lido nas veladas literárias a autora dizia que a modernidade seria igual à emancipação da mulher.
Os textos dessas autoras mostram a apelação a formatos, que por mais que mantivessem um tom conservador, convergem na busca de maiores espaços de significados para as mulheres invisibilizadas pelo espaço hegemônico das letras latino-americanas.
A última carta de Fanning mencionada nesse item também foi a última da década de 1890 enviada pela autora a Rodó, informação confirmada na sua correspondência escrita em 12 de julho de 1900 a Rodó.
A retomada do diálogo e o discurso feminino sobre as consequências da guerra
Em 1900, Teresa voltou a escrever para Rodó em resposta a uma correspondência que ele envia sobre a obra Ariel, publicada naquele ano. A carta está dirigida ao “meu estimado e bom amigo”, e inicia-se com a seguinte queixa: “fazia tempo, muito tempo que estava privada do prazer de conversar com você por escrito”.12 Explica que desde a última carta, mencionada na seção anterior, não havia mais tido o retorno do correspondente, e que lhe doía não ter mais notícias da parte de um amigo a quem suas belas produções literárias a ensinaram a estimar.
A carta comenta longamente o livro do colega uruguaio, o qual leu “buscando extrair todo o sumo intelectual que contém”.13 Segundo a autora, a obra apresenta uma maturidade intelectual sem que se tenha perdido nada da ingênua e robusta fé nos destinos humanos, principalmente da juventude americana. Aponta que há um profundo olhar para os futuros destinos da nossa América, em que a juventude é chamada para desempenhar seu papel. Teresa de Fanning complementa sua análise elogiosa dizendo que naquele momento em que a humanidade duvidava dos seus antigos deuses, a quem “inocentes gerações renderam fervoroso culto”, Ariel aparece com o nobre objetivo de oferecer à “juventude um bom caminho”.14 Finaliza a carta atestando a presença de homens práticos e positivistas que “por desgraça, tanto se abundam nesta época”, e que acusarão Rodó de ser um “sonhador e utopista”.15
A autora aponta que, por mais que uma sociedade esteja corrompida, nunca faltará em seu seio almas seletas, “que não chegam a contaminar-se com o vírus pestilento, vindo a ser como as sacerdotisas encarregadas de conservar o fogo sacro do bem”.16 No fim da carta, apontou: “Vou terminar com o referente a Ariel: não tenho pretensão de ter formulado um juízo crítico da sua obra; para isso me reconheço incompetente; só quis deixar nota de algumas de suas belezas [...]”.17 Ademais, torce para que a juventude de seu país adira entusiasta ao culto de Ariel. E afirma que se esforçará para que isso ocorra.
Teresa finaliza a carta dizendo que está remetendo ao colega de profissão um caderno contendo vários artigos sobre a educação da mulher, publicados no ano de 1898.
Para Luis Alberto Sánchez, o ano de 1905 foi muito relevante para a literatura peruana, por ser a consolidação da geração modernista, que se unia à estética do arielismo: “Foi nesse ano, precisamente, o da afirmação de uma nova promoção, inspirada no idealismo de Rodó [...]. Seu livro de momento era Ariel. Por isso nos permitimos chamá-la arielista” (Sanchez, 1974, p. 123). Os representantes mais relevantes do arielismo peruano, segundo Sanchez, foram José de la Riva Agüero, José Gálvez, Ventura e Francisco García Calderón, Víctor Andrés Belaunde, José E. Lora, Felipe Sassone e Luis Fernán Cisneros.
Emír Rodríguez Monegal (1953) analisou a relação de mestre e discípulo estabelecida entre Rodó e Francisco García Calderón, sendo o principal legado do autor uruguaio sobre o peruano a ideia de uma América intelectual e o rigor estilístico. Ambos também trocaram correspondências, que se iniciaram, aparentemente, em 1903, quando García Calderón pede a Rodó que ele faça o prólogo para seu primeiro livro – De Litteris: crítica. Rodó atendeu ao pedido. No livro mencionado há um ensaio sobre José Enrique Rodó, intitulado “Una nueva manera de la crítica”.
Nesse sentido, Teresa González de Fanning antecedeu seus colegas em relação à leitura e análise acurada que fez em sua carta da obra Ariel. Isso confere um valor testamentário de suma importância para a inserção da mulher como atuante na crítica literária contida na correspondência, que ultrapassou as fronteiras de dois países naquele contexto, e ao ser retomada, se torna fonte preciosa para reacender um legado da produção de um autor como José Enrique Rodó, mas principalmente de uma mulher, que – privada de publicidade, autoridade e sequer mencionada na galeria dos autores que acessaram Ariel em seu país –, ilumina a discussão e expande o diálogo identitário no continente, que também se mostrava atrativo e importante para a intelectualidade feminina.
A correspondência seguinte de Fanning está datada em 7 de novembro de 1900, e encabeça com o vocativo “amigo muito estimado”, complementando que foi com sumo agrado que leu a última carta de Rodó de setembro passado,
que recebi quarenta dias depois: tem para mim muito de chocante que entre as repúblicas sul-americanas, que são como se disséssemos vizinhos do mesmo bairro, as comunicações tardem a chegar quase o dobro de tempo que as de Europa nos vêm; e outro tanto acontece com as notícias literárias, científicas e sociais: em suma, que estamos na mais íntima comunicação com os estranhos que com os da família: esperemos que o século XX remediará este e outros imperfeitos do agonizante XIX.18
A demarcação temporal de quarenta dias depois está sublinhada com o intuito de reforçar o tempo demasiado para a recepção da carta. Aproveita o ensejo para refletir sobre o distanciamento cultivado entre as sociedades latino-americanas, tema que Rodó ressaltou insistentemente em seus trabalhos. Nessa carta, a autora confirma o recebimento de cinco volumes da segunda edição de Ariel, e volta a elogiar a obra dizendo que está enviando junto à missiva um número do jornal El Comércio, o que chama de “juguete literaris”, que publicou sob o título de “Teresita”.
Além disso, Fanning faz uma longa discussão sobre os desafios de seu país, demonstrando claramente sua insatisfação com o vizinho Chile.
Anoto agradecida os votos que faz você porque se dissipem as dificuldades internacionais que nublam hoje no céu da minha pátria: sendo seu inimigo o Chile, com tanta justiça apelidado “o Caim da Sul América”, que tem muito da natureza astuta e cruel de raposa e de chacal, e por consequência de suas rapinas – mais que por seus êxitos na guerra – se encontra poderoso, para deformar suas vítimas, não há o que esperar, não, que alguém arranque de justiça nobreza o induza a emendar os torcidos rumos que hoje informam sua política; porque tais fidalgos sentimentos não encontram cabimento na alma dos descendentes dos presidiários de Valdívia e dos selvagens auraucanos.19
Como apontou Heraclio Bonilla (1980), desde a época colonial, devido à especialização da economia e às facilidades de transporte, o abastecimento para o consumo do litoral da costa se fazia pelo Chile. Nos primeiros meses da Guerra do Pacífico, o Chile se apoderou do litoral da disputada região de Antofagasta, incluindo o porto de Cobija, retirando da Bolívia sua saída para o mar; além disso houve o bloqueio do porto peruano de Iquique.
A luta se concentrou, portanto, para a obtenção do controle marítimo, elemento chave para o desenvolvimento das futuras ações terrestres. O último período da guerra esteve fortemente marcado pela intensa resistência popular peruana, contra o invasor chileno. Conforme Vilaboy (2013), após a guerra, um novo governo peruano, presidido pelo general Miguel Iglesias, assinou em 20 de outubro de 1883 o Tratado de Ancón, aceitando o que seus predecessores tinham recusado: a cessão de territórios pertencentes ao Peru. Tarapacá foi entregue perpétua e incondicionalmente ao Chile, e se acordou que os chilenos ocupassem durante dez anos as províncias de Tacna e Arica, até que finalizado o prazo um plebiscito nessas localidades definiria seu status final.
Em sua carta dirigida a Rodó, Fanning analisou a situação das consequências da guerra envolvendo os três países andinos, que, na sua leitura, foram extremamente prejudiciais para seu país.
Afortunadamente cegado por sua insaciável cobiça, o mesmo Chile com seus arbitrários manejos de Tacna e Arica, e com documentos oficiais como a famosa nota de seu ministro Köning na Bolívia, chamou atenção de outras nações sobre o mal vizinho perturbador da paz e do progresso americanos, proclamando que “seus direitos nascem da vitória, a lei suprema da nação”, pretende introduzir na nossa América o direito de conquista e a arruinada paz armada europeia.
A autora diz esperar que os povos americanos, “movidos pelo alto sentimento de justiça”, coloquem fim aos excessos do Chile. E atesta que o tom da imprensa na Argentina, no Uruguai, no Paraguai e “até no Brasil, quem tanto fez para se pôr ao seu lado”, e do Equador, que se colocou contra o Peru, é de esperar esse ato de justiça continental. Ainda se desculpa por sua exaltação ao falar sobre o Chile, mas justifica que possui duas feridas na alma, por consequência da guerra:
A ele devo a ruína de minha pátria e do meu lar, pois meu esposo, o capitão de navio Juan Fanning que tanto cooperou com a fortificação de Arica no elevado posto de chefe das [...] e das forças da Praça, sucumbiu a infausta jornada de Miraflores na frente do batalhão “Guarniciones de Marina” do qual ele foi organizador e chefe por quanto já o Peru carecia de barcos para defender seu extenso território.20
Fanning finaliza essa carta repleta de densidade analítica e emocional ao revelar sua leitura sobre a história de seu país e sua triste história pessoal, desejando um feliz ano novo ao seu interlocutor e lhe pedindo mais uma vez que ele envie uma fotografia sua.
Muitas histórias da autora estão inspiradas em mulheres que perderam familiares e sofreram dificuldades econômicas por conta da guerra. De acordo com Cardenas e Ferreira (2021), a grande quantidade de viúvas e órfãos que a guerra provocou e a falta de atenção estatal levaram Fanning a revisar suas ideias acerca do trabalho e da reforma da educação para as mulheres. Da sua coleção Lucecitas, no conto “Dios y la patria”, a narradora apresenta os diferentes quadros da ocupação de Lima pelo Exército chileno, em janeiro de 1881. Chile é descrito como na carta, como o “Caim americano”, e o Peru a indefesa presa. A narrativa possui o claro desejo de honrar os soldados e as mulheres anônimas que socorrem os feridos através de diferentes organizações de caridade.
A autora defende a civilização contra a guerra, que se oporiam como a luz e as trevas, por isso assina muitos de seus textos como María de la Luz, portanto a mulher é retratada como guia e organizadora da nação em reconstrução, que aparece como a mescla entre a mulher das letras e a que pratica a caridade cristã (Cardenas; Ferreira, 2021).
Desse diálogo epistolográfico travado com Rodó, Fanning denota um aspecto estratégico muito importante, pois busca inserir-se nos debates políticos sobre a construção e modernização do seu Estado nação. Portanto, os prismas pelas quais sua carta transitou, repleta de dor e pesar, perpassam pelos grandes temas como guerra, nação e gênero, o que certamente transgredia a esfera do espaço doméstico destinado às mulheres do século XIX.
Observamos uma interpretação política sobre o território, a sociedade e as relações internacionais peruanas, pensada a partir da periferia, e da posição da autora, que infelizmente era atriz social privilegiada na percepção dessas relações, pelo próprio envolvimento familiar e pessoal com a guerra.
A última carta analisada da autora é datada em abril de 1901 e traz um conteúdo pequeno, no qual se enfatiza a manifestação de alguns países para restabelecer, como o Uruguai, a paz no Peru, o que representa para o continente um ato civilizacional e de progresso humano. Além disso, pergunta se Rodó já teria em vista a nova edição de Ariel, e “quando ele nos presentearia com alguma obra de suas belíssimas e espirituais produções?”.21
Agradeceu ao estimado amigo o envio do retrato, que mostrou para sua irmã Elena, sua única companhia depois de ter perdido tantos entes queridos. Finaliza pedindo que Rodó fale um pouco dos autores uruguaios, pois leu comentários favoráveis sobre o romance La raza de Caín, de Carlos Reyles. Ao se despedir, deseja “saúde e todo gênero de satisfações, da entusiasta amiga e admiradora”.22
Considerações finais
Dentre os assuntos tratados nas correspondências com seu parceiro, Teresa González de Fanning menciona os tumultuados acontecimentos de seu país, a partir de um cenário internacional marcado pelas consequências da Guerra do Pacífico, seus problemas de ordem emocional e familiar, as reflexões críticas sobre a produção literária do continente. Desse modo, a sequência de cartas da autora analisadas revela uma gama de possibilidades para o estudo do rico Arquivo José Enrique Rodó, que expandiu seu diálogo com outras e outros escritores através de cartas, compartilhando experiências e produções, divulgando ideais e provocando debates. O testamento epistolar deixado pela autora peruana revela que a análise das cartas pode transitar por caminhos insólitos, não é menos revelador de parte da trajetória cultural e intelectual do continente, que também era composta por mulheres atuantes.
A mulher, privada de holofotes, buscou nas trocas de correspondência uma plataforma privilegiada para a difusão de suas ideias, mesmo que não fosse de modo intencional; suas cartas circularam, cruzaram as fronteiras nacionais reivindicando sua participação no espaço público de seu país, principalmente ao analisar acontecimentos importantes, como a guerra, sua consequência nas relações internacionais, a situação da mulher e a crítica literária. Portanto, inseriu-se na rede internacional do espaço intelectual repleto de homens.
Como apontamos no início do texto, os trabalhos publicados de José Enrique Rodó nos quais menciona a mulher, a imagem da domesticidade, da doçura e da ingenuidade, travavam a criatividade feminina. No entanto, localizar em sua correspondência passiva cartas de uma mulher que impõe sua escrita, a partir de sua condição de escritora vivendo no meio intelectual dominado por homens, principalmente numa época pós-bélica, quando se debate sobre a desarticulação do país, dividido em regiões e culturas diversas, significa publicizar a posição de uma escritora enquanto uma agente intelectual frente às figuras patriarcais que centralizaram esse debate e estabeleceram hierarquias no campo das letras.
Localizar as correspondências da autora na expressiva quantidade de cartas recebidas por Rodó é recuperar a possibilidade de publicizar um depoimento íntimo, recôndito, mas revelador de uma época, cuja escrita recria um ambiente de comunhão de interesses e valores artísticos, mas que não deixa de ressaltar o confronto de ideias, de autores que se situavam num plano intelectual e artístico distinto, devido à condição de mulher escritora na virada de século, e de homem escritor.
A importância de trazer à tona esses documentos de arquivo se deve principalmente ao conteúdo dessas cartas, que demonstram novas facetas dos correspondentes, bem como ampliam as possibilidades de leitura de suas obras. Fanning se manteve à altura do diálogo com o consagrado escritor, e fiel às suas convicções em pluralizar o espaço literário latino-americano, podendo ser considerada emblema de um engajamento de abertura para a participação das mulheres, espaço que se mostrava conveniente com a invisibilidade feminina.
Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), na modalidade pós-doutorado sênior, processo (102147/2022-1).
Arquivo consultado
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Recebido em 31/3/2023
Aprovado em 2/10/2023
Notas
1 Série Correspondência. Arquivo José Enrique Rodó, Biblioteca Nacional del Uruguay, BNU (25006-25006v).
2 Poeta, narrador, ensaísta e dramaturgo uruguaio. Em 1937 lançou a biografia referência de José Enrique Rodó, intitulada Rodó. Su vida, su obra.
3 Escritor, filólogo uruguaio e um dos fundadores da Academia Nacional de Letras Uruguaia.
4 Poeta e jornalista uruguaio.
5 Entre março de 1895 e março de 1896 somam-se sete textos, entre abril de 1896 e abril de 1897 somam-se seis textos e entre junho e novembro de 1897 somam-se apenas três.
6 Série Correspondência. Arquivo José Enrique Rodó, Biblioteca Nacional del Uruguay, BNU (25041).
7 Série Correspondência. Arquivo José Enrique Rodó, Biblioteca Nacional del Uruguay, BNU (25041v).
8 Borradores de correspondência, caderno E. Arquivo José Enrique Rodó, Biblioteca Nacional del Uruguay, BNU.
9 Série Correspondência. Arquivo José Enrique Rodó, Biblioteca Nacional del Uruguay, BNU (25142).
10 Série Correspondência. Arquivo José Enrique Rodó, Biblioteca Nacional del Uruguay, BNU (25142).
11 Série Correspondência. Arquivo José Enrique Rodó, Biblioteca Nacional del Uruguay, BNU (25227).
12 Série Correspondência. Arquivo José Enrique Rodó, Biblioteca Nacional del Uruguay, BNU (25963).
13 Série Correspondência. Arquivo José Enrique Rodó, Biblioteca Nacional del Uruguay, BNU (25963).
14 Série Correspondência. Arquivo José Enrique Rodó, Biblioteca Nacional del Uruguay, BNU (25963v).
15 Série Correspondência. Arquivo José Enrique Rodó, Biblioteca Nacional del Uruguay, BNU (25964).
16 Série Correspondência. Arquivo José Enrique Rodó, Biblioteca Nacional del Uruguay, BNU (25964).
17 Série Correspondência. Arquivo José Enrique Rodó, Biblioteca Nacional del Uruguay, BNU (25965).
18 Série Correspondência. Arquivo José Enrique Rodó, Biblioteca Nacional del Uruguay, BNU (26140).
19 Série Correspondência. Arquivo José Enrique Rodó, Biblioteca Nacional del Uruguay, BNU (26140v).
20 Série Correspondência. Arquivo José Enrique Rodó, Biblioteca Nacional del Uruguay, BNU (26141).
21 Série Correspondência. Arquivo José Enrique Rodó, Biblioteca Nacional del Uruguay, BNU (26275).
22 Série Correspondência. Arquivo José Enrique Rodó, Biblioteca Nacional del Uruguay, BNU (26275).