Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 3, set./dez. 2023

O arquivo como objeto: cultura escrita, poder e memória | Dossiê temático

O arquivo e a biblioteca do escritor múltiplo

O acervo de Judith Grossmann no Memorial da Universidade Federal da Bahia (UFBA)

The multiple writer's archive and library: Judith Grossmann's collection at the Universidade Federal da Bahia (UFBA) Memorial / El archivo y la biblioteca del escritor múltiple: el acervo de Judith Grossmann en el Memorial de la Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Evelina Hoisel

Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP). Professora titular de Teoria da Literatura da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

hoisel@ufba.br

Henrique Júlio Vieira

Doutorando em Letras na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil.

hjvieira2@gmail.com

Resumo

Este trabalho apresenta o acervo de Judith Grossmann no Memorial da Universidade Federal da Bahia (UFBA). O arquivo acadêmico, produzido por Grossmann durante a sua atividade docente entre 1966 e 1990, informa a especialização da crítica literária no Brasil e as etapas de disciplinarização da teoria da literatura na UFBA. Também é apresentada a doação da sua biblioteca, analisando-se o perfil das leituras da escritora, ensaísta e professora.

Palavras-chave: Judith Grossmann; teoria da literatura; arquivo pessoal; biblioteca; escritor múltiplo.

Abstract

This work presents the collection of Judith Grossmann at Memorial da Universidade Federal da Bahia (UFBA). The academic archive, produced by Grossmann during his teaching activity between 1966 and 1990, informs the specialization of literary criticism in Brazil and the stages of consolidation of the Literary Theory at UFBA. The donation of her library is also presented. It is analyzed the profile of her readings as writer, essayist, and professor.

Keywords: Judith Grossmann; theory of literature; personal archive; library; multiple writer.

Resumen

Este trabajo presenta la colección de Judith Grossmann en el Memorial da Universidade Federal da Bahia (UFBA). El archivo académico, producido por Grossmann durante su actividad docente entre 1966 y 1990, informa la especialización de la crítica literaria en Brasil y las etapas de disciplinarización de la Teoría de la Literatura en la UFBA. También se presenta la donación de su biblioteca, analizándose el perfil de las lecturas de la escritora, ensayista y profesora.

Palabras clave: Judith Grossmann; teoría de la literatura; archivo personal; biblioteca; escritor múltiple.

O espírito do tempo cria depósitos imensos de poder, ele que é informe,
como o tenso impulso que rouba às coisas, logo abandonadas.

Rainer Maria Rilke (Elegias de Duíno, 1985, p. 41)

No ensaio “O que é um autor?”, Michel Foucault (2001 [1969], p. 273) lançava algumas questões-chave sobre o desenvolvimento dessa figura emblemática da cultura moderna: “Se um indivíduo não fosse um autor, será que se poderia dizer que o que ele escreveu, ou disse, o que ele deixou em seus papéis, o que se pode relatar de suas exposições, poderia ser chamado de ‘obra’?”. E logo adiante: “Dentre os milhões de traços deixados por alguém após sua morte, como se pode definir uma obra?” (p. 274). As ideias de Foucault, no final da década de 1960, são uma justa referência do momento em que passaram a ser desnaturalizadas, com maior intensidade, certas categorias organizadoras da cultura, como “autor”, “obra”, “documento”, “história”, “memória” e “arquivo”.

Sobre essas duas perguntas, o filósofo conclui que o nome de autor desempenha uma “função classificatória”, pois “permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, deles excluir alguns, opô-los a outros” (p. 277). O desenvolvimento dessa força organizadora da cultura escrita esteve relacionado a mudanças nas formas de produção e circulação dos textos literários e científicos no final da Idade Média, quando circulava uma rica tradição de textos apócrifos. Se nos ativermos à produção literária desse período, é possível destacar na organização dos cancioneiros medievais a transposição das cantigas, nascidas e performatizadas em contextos de oralidade e musicalidade, para os valores da tradição escrita e das práticas de aferimento de autoria que se desenvolveram a partir da Idade Moderna. Convém fazer essa exemplificação para ilustrar a afirmação foucaultiana de que o nome de autor “corre, de qualquer maneira, aos limites dos textos, que ele os recorta, segue suas arestas, manifesta o modo de ser ou, pelo menos, que ele o caracteriza” (p. 278). A identificação onomástica das obras, capaz de fazer uma cesura e delimitar contornos na “indistinta” massa verbal, se desenvolveu nas sociedades modernas junto à noção de propriedade intelectual, o que resultou posteriormente na consolidação dos direitos patrimoniais.

Reportando-se no pretérito à figura do autor e ao “que ele deixou em seus papéis”, Foucault enfatizava, principalmente, a situação de obras póstumas e espólios que servem de amostra “dentre os milhões de traços deixados por alguém após sua morte”. O ensaio já colocava em evidência, nos idos de 1960, a função do arquivo e das práticas de arquivamento na organização da autoria moderna, sendo “autor” aquele que, no desempenho do seu processo criativo ou no simples existir cotidiano, produz um conjunto documental que pode ser designado e organizado com determinada alcunha. Contudo, o trabalho de pesquisa e organização de acervos literários e culturais nos confronta mais com o sedutor fascínio de “milhões de traços” do que as retilíneas certezas das versões oficiais da história, como viria a demonstrar o mesmo Foucault, anos depois, em suas pesquisas nos arquivos de instituições médicas e jurídicas, dando origem, por exemplo, à História da loucura e ao prefácio de Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão.  

Remonta ao século XVIII a celebração da figura pública do homem de letras, cuja obra representaria a alma do seu povo e o poder do seu Estado. A partir da Revolução Francesa, a burguesia buscava fundar outras referências culturais, diferentes daquelas do Ancien Régime. Nesse contexto, o culto ao intelectual público, segundo Jean-Claude Bonnet, “produz imagens novas e um catecismo leigo à necessidade de acreditar, de venerar, de inventar ídolos, de comemorar” (1978, p. 46 apud Werneck, 2008, p. 42). Embora a conservação do patrimônio material das sociedades seja anterior a esse período, segundo a valiosa retrospectiva histórica de Yvette Sánchez (1999) e Philipp Blom (2003), a consolidação do Estado burguês expandiu à esfera pública as práticas de colecionismo, que eram modos de distinção nobiliárquica por meio da posse de relíquias, objetos artesanais, obras de arte, manuscritos e toda sorte de itens documentais que distinguissem o indivíduo ou a família detentora desses bens. A partir do século XVIII, a criação de arquivos nacionais, museus históricos e bibliotecas foi encampada, em alguns países, como a França e Alemanha, pela burguesia; em outros, a exemplo de Portugal e Espanha, pela aristocracia reinol. Todavia, ainda que servissem a diferentes projetos políticos e culturais, podemos considerar que os objetivos de centralizar a gestão documental dos territórios e patrimonializar as obras artísticas e literárias dos Estados nacionais levaram ao surgimento dessas instituições.

Nos espaços coloniais da América Latina, os processos de independência orquestrados pelas elites caudilhas mimetizaram as ideias de liberdade, igualdade e fraternidade que inspiravam os países europeus em tomos e pergaminhos transladados pelo Atlântico em baús carregados nos ombros de pessoas escravizadas. No século XIX, a maturidade do sistema literário brasileiro se fez acompanhar da criação de instituições literárias e culturais aos moldes do ambiente literário europeu. Assim, correspondeu à imaginação fundacionista do romance romântico a institucionalização da cultura, agindo ambas como duas linhas de força concomitantes do nacionalismo no século XIX: de um lado, a produção escrita na literatura e na imprensa; do outro, a patrimonialização de documentos históricos, artísticos e literários do país. Olhando para os acervos históricos do Brasil, os papéis de Machado de Assis na Academia Brasileira de Letras, o arquivo do visconde de Mauá no Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro ou, posteriormente, os manuscritos de Euclides da Cunha na Biblioteca Nacional sinalizam a atuação das academias, dos institutos históricos e dos arquivos nacionais para a formação da memória literária e cultural do país.

Por mais que os acervos históricos nos levem a um aporte teórico e metodológico diverso ao dos arquivos pessoais de escritores, as formas de colecionismo e de arquivamento dos entes públicos e privados também são constituídas por operações de seleção, inclusão e exclusão atuantes na organização dos documentos-monumentos da cultura. Para Jacques Derrida (2001), há um traço de violência na organização dos arquivos, quando se delineiam os contornos entre o que deve ou não ser arquivado, tanto pela natureza finita dos espaços físicos ou digitais de armazenamento quanto pelas diversas forças e interesses que atuam em sua constituição.1 Falar desse componente de violência no contorno entre o arquivável e o não arquivável joga luz sobre a pressuposta neutralidade da “mão invisível” dos arquivistas e dos arcontes de fundos documentais. Por efeito, incide também no princípio de organicidade, segundo o qual é possível distinguir a “naturalidade” da produção do arquivo durante o exercício de variadas funções por entes públicos ou privados, em oposição à “intencionalidade” da coleção, menos diversificada do que o primeiro.

Os arquivos pessoais se constituem de conjuntos documentais que passaram pela intervenção direta dos seus titulares, desde as mais intuitivas e, até mesmo, precárias iniciativas de acondicionamento de itens e objetos pessoais até a situação de titulares que dispuseram de um rol de auxiliares, cônjuges, filhos, secretárias, bibliotecários ou arquivistas para a organização dos seus documentos enquanto se ocupavam de outras atividades, principalmente o trabalho intelectual. Diante dessas questões, trazemos para o espaço deste ensaio algumas reflexões sobre o acervo de Judith Grossmann na UFBA. Constituem-no: a biblioteca pessoal da escritora, docente, teórica, ensaísta, que chegou a Salvador em 1966 para ministrar a disciplina Teoria da Literatura na Universidade Federal da Bahia (UFBA), aposentando-se em 1990; o arquivo acadêmico, organizado durante a sua atividade docente; e a coleção literária, que é uma amostra – ou “exhibit”, como registrou certa feita – da sua produção intelectual, incluindo documentos pessoais e datiloscritos de ensaios, poemas, contos e romances.

Nas seções a seguir, abordaremos o arquivo acadêmico, que informa a especialização da crítica literária no Brasil e a disciplinarização da teoria da literatura na UFBA, e a biblioteca pessoal, analisando o perfil das leituras de Judith Grossmann através da materialidade dos livros.

O arquivo acadêmico de Judith Grossmann

O arquivo acadêmico de Judith Grossmann, antes localizado na sala do setor de Teoria da Literatura do Instituto de Letras da UFBA, encontra-se hoje no espaço Lugares de Memória, Biblioteca Reitor Macedo Costa. Foi rigorosamente construído pela docente no sentido de registrar minuciosamente a história da teoria da literatura no Instituto de Letras, disciplina que ela introduziu no currículo de letras, em 1966, com outras como literatura dramática, criação literária e dramaturgia na Escola de Teatro da UFBA. Os documentos que transitaram nas diversas instâncias – departamentos, colegiados, pró-reitorias, reitoria, comunicação interna dos docentes que constituíam a equipe de teoria da literatura – podem ser acessados, a partir desse gesto de uma docente que sempre pensou no futuro e atuou em prol da memória da instituição, e daquilo que poderia preservar sua própria memória.

A tipologia documental é, na maior parte, constituída de ementas, programas de disciplinas, avaliações, ofícios, projetos e relatórios de pesquisa produzidos pela titular ou resultado de atividades às quais ela esteve vinculada. Além disso, como figurações do nível de pessoalidade desse arquivo, há entre os documentos de feição institucional outros de natureza privada, como correspondências endereçadas à escritora, anotações de estudo, recibos de taxas de bancada e programações de eventos de interesse pessoal.

No ensaio “Documentos informativos: como as pessoas e as instituições obtêm informação?”, o pesquisador Richard J. Cox discute as prováveis respostas a essa pergunta nomeando a primeira seção do seu texto de “Introdução: falar, escrever, ler – e arquivar?”. A associação por contiguidade que é sugerida entre essas ações aqui nos interessa, pois elas constituem práticas comuns ao cotidiano docente em uma instituição de ensino superior. Segundo Cox:

Arquivar é parte de um processo histórico e cultural, rico em sua complexidade e entrelaçado com os esforços da humanidade para se comunicar, documentar e lembrar. [...]. Se o arquivo pessoal é um produto inerente à vida de todo ser humano, também o são a leitura, a escrita e a fala. (Cox, 2017, p. 113)

Talvez como conhecedora das fragilidades institucionais relativas aos processos de arquivamento, Grossmann erigiu seu próprio arquivo acadêmico, procurando evitar e superar a dispersão dos documentos, juntando e colocando em diálogo as vozes que registram uma parte da história institucional e de sua história pessoal na qualidade de membra dessa universidade.

Destacamos cinco documentos que informam a consolidação da teoria da literatura na UFBA: 1) o “Programa de Teoria da Literatura para a 1ª série dos cursos de letras”, elaborado pelo professor Antônio Barros (1965); 2) o “Programa de Teoria da Literatura I e II (Teoria da Comunicação Literária I e II)”, elaborado por Judith Grossmann (1970); 3) o “Ofício circular n. 10/72”, do colegiado do curso de letras, que define a Teoria da Literatura como pré-requisito para o estudo das literaturas; 4) a “Justificativa para um ‘Departamento de Fundamentos para o Estudo das Letras’”, redigida por Judith Grossmann (1975); e 5) o “Questionário destinado ao Departamento de Fundamentos para o Estudo das Letras, gabinete de Teoria da Literatura”, enviado pelo Diretório Acadêmico de Letras (1978).

Essa amostra permite visualizar, ao contrário de uma “história antiquária” do campo disciplinar, na qual o saber se envolve “com um cheiro de mofo”, nas palavras de Friedrich Nietzsche (2003, p. 22), os pontos de tensão e ambiguidade na institucionalização dessa disciplina no currículo de letras. Dito de outro modo, trata-se de interpretar, a posteriori, os diversos rastros provenientes do desempenho de atividades acadêmicas como quem faz “arqueologias” nas camadas de documentos que regulam os saberes disciplinares. Para Michel Foucault (2008, p. 163), a arqueologia “não é estabelecer a lista dos santos fundadores; é revelar a regularidade de uma prática discursiva que é exercida, do mesmo modo, por todos os seus sucessores menos originais, ou por alguns de seus predecessores”. Nesse sentido, analisar o conjunto documental produzido para organizar o funcionamento de disciplinas e registrar o cotidiano da equipe docente implica considerar o arquivo tanto em sua dimensão material quanto discursiva.

Se os arquivos “resultam da acumulação estruturada e orgânica de documentos gerados ou reunidos por instituições públicas ou privadas no exercício das funções e atividades que comprovam e justificam sua existência” (Bellotto, 2014, p. 71), as particularidades das informações contidas nos documentos acadêmicos de Judith Grossmann também fazem do arquivo “a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares [...]” (Foucault, 2008, p. 147). Segundo Michel Foucault, “é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos”. Embora enfatizem o sentido discursivo do arquivo, as lexias mobilizadas em A arqueologia do saber sugerem as operações materiais que constituem os fundos documentais, conforme esta caracterização do arquivo como princípio que faz com que os discursos “se grupem em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas” (Foucault, 2008, p. 147).

A partir do critério cronológico adotado por Judith Grossmann para a organização dos fichários de documentos que, após o reacondicionamento, totalizam 13 caixas, foi identificado entre os primeiros itens o “Programa de Teoria da Literatura para a 1ª série dos cursos de letras” (Figura 1), elaborado pelo professor Antônio de Assis Barros (literatura brasileira). Os componentes curriculares do núcleo comum eram ministrados em dois semestres. O documento de três laudas informa a aprovação do programa pelo Departamento de Letras em 17 de dezembro de 1965 e, três dias depois, pela Congregação da Faculdade de Filosofia. Trata-se de uma transposição da sequência de temas analisados por Austin Warren e René Wellek – Theory of literature –, como se pode observar através do cotejo com as edições em língua portuguesa da obra que pretende proporcionar “um organon ou método” (Wellek; Warren, 1971, p. 10) aos estudos literários.

A divisão metodológica dos “aspectos intrínsecos” e “extrínsecos” da literatura teve ampla repercussão nos programas de graduação e pós-graduação em letras em constituição naquela época, orientando a delimitação dos objetos de estudo e dos procedimentos de leitura realizados em teses, dissertações e projetos de pesquisa. Inspirados pela ambiência das teorias imanentistas da literatura, Warren e Wellek priorizavam os aspectos intrínsecos, considerando que o “ponto de partida natural e sensato do trabalho de investigação literária é a interpretação e análise das obras literárias em si próprias” (Wellek; Warren, 1971, p. 173).

Convém observar que Judith Grossmann começou a lecionar teoria da literatura e criação literária na UFBA em 7 de março de 1966, segundo os documentos admissionais que integram seu acervo. Desse modo, o programa elaborado por Antônio Barros no final do ano anterior serviu de plano de curso à professora recém-contratada, vinda do Rio de Janeiro a convite do professor Thales de Azevedo, após o mestrado em letras na Universidade de Chicago: “Ninguém em Lebenswald sabia ao certo quem era a sra. Büchern. De onde viera. Como viera. Por que viera. A sra. Büchern peregrinava desde a juventude em expiação dos seus pecados” (Grossmann, 1977, p. 233). Essa imagem de desterritorialização sugerida pelo conto “A sra. Büchern em Lebenswald”, de notório teor autoficcional, se faz acompanhar da reterritorialização de questões teóricas e literárias na bagagem do intelectual brasileiro do século XX, que continuava os seus estudos em cidades ou países diferentes do seu lugar de origem.


Figura 1 – Programa de Teoria da Literatura para a 1ª série dos cursos de letras. Fonte: Barros, 1965 (Coleção Judith Grossmann – arquivo acadêmico, Lugares de Memória/UFBA)

Nos anos seguintes, a presença da obra de Warren e Wellek na bibliografia de ementas, projetos de pesquisa e textos teóricos de Grossmann sinaliza, por um lado, o nível de afinidade entre as concepções dos dois professores da UFBA sobre o estudo literário e, por outro, destaca a circulação internacional da Theory durante a segunda metade do século XX, presente no planejamento de atividades de ensino e pesquisa em literatura no Brasil. No programa de Teoria da Literatura I e II (Figura 2), com a data de 22 de junho de 1970, é explicitada a definição da disciplina como “organon de métodos para o estudo das diversas literaturas” (Grossmann, 1970, f. 3), o que estava, de certa forma, implícito, mas não ausente, no primeiro tópico do programa de Antônio Barros (Figura 1). De acordo com o plano de ensino elaborado por Judith Grossmann, eram objetivos da matéria:

a) dotar o estudante de um conceito de teoria da literatura como um organon de métodos para o estudo das diversas literaturas; b) dotar o estudante de um conceito do fenômeno literário, tomando como ponto de partida o material de que faz uso a literatura (a linguagem) e o modo particular de utilizada da linguagem pela literatura, estabelecendo a disciplina um ponto de ligação entre os estudos linguísticos e os estudos literários do Instituto de Letras. (Grossmann, 1970, f. 3)

A concepção da teoria como estudo apriorístico das especificidades manifestadas pelas obras das literaturas vernáculas, estrangeiras e clássicas serviu de pressuposto para a atividade de cursos de graduação e pós-graduação no Brasil entre as décadas de 1950 e 1970. As pesquisas de Rachel Esteves Lima (1997), Lívia Natália Santos (2008) e Nabil Araújo (2020) nos permitem situar o contexto teórico no qual Judith Grossmann se formou e, posteriormente, começou a sua atividade docente. Formada em letras anglo-germânicas em 1954 pela Universidade do Brasil – atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) –, a escritora continuou os seus estudos com o curso de mestrado em literatura na Universidade de Chicago nos anos de 1963 e 1964. Pelas suas atividades de pesquisa e publicação entre 1966 e 1972, foi-lhe concedido pela Congregação do Instituto de Letras da UFBA o título de alta qualificação científica (1972) e, dois anos depois, Grossmann recebe o título de doutorado por defesa de tese no concurso para professor titular, realizado em 1974.

Os tópicos e a bibliografia do programa evidenciam o processo de especialização dos estudos literários nas universidades brasileiras, resultado de enfrentamentos intelectuais nas décadas de 1950 e 1960 entre as figuras do crítico-cronista – os herdeiros da tradição impressionista da leitura literária na imprensa – e do crítico-scholar – uma nova geração de escritores, críticos e professores com formação acadêmica das faculdades de filosofia, letras e ciências humanas (Lima, 1997; Süssekind, 2002).

Pode-se mencionar a reorientação proposta por Antonio Candido na Universidade de São Paulo à tradição historiográfica de Sílvio Romero, buscando conciliar a abordagem intrínseca e extrínseca da literatura, a análise literária de enfoque imanentista por Afrânio Coutinho, seguido de Eduardo Portella na Universidade Federal do Rio de Janeiro, baseados em releituras da poética, do new criticism e da fenomenologia. Em Belo Horizonte, a orientação também fenomenológica de Maria Luiza Ramos na Universidade Federal de Minas Gerais, a partir da obra de Roman Ingarden e, posteriormente, de Martin Heidegger. Na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), a abertura dos estudos literários às questões da filosofia, psicanálise e antropologia, por Silviano Santiago, e a pesquisa sistemática de Luiz Costa Lima sobre o conceito de “mímesis” na história da literatura (Araújo, 2020; Lima, 1997). Essa exemplificação sumária aponta a diversidade do processo de especialização dos estudos literários no período de vinte anos que cobrem o final da década de 1950 e a década de 1970. A consolidação da teoria da literatura sob o signo da diferença, tanto ao impressionismo crítico “sem caminho, sem meta definida” (Portella, 1970, p. 46) quanto à historiografia literária, “prisioneira da cronologia” (p. 22), foi catalisada por uma nova geração de professores de letras que disseminaram novas teorias e métodos dos estudos literários.

A formação acadêmica de Judith Grossmann na Universidade do Brasil (atual UFRJ) e na Universidade de Chicago aproximava-se da abordagem adotada por Afrânio Coutinho e Eduardo Portella. Embora tenha concluído a licenciatura em 1953 e o bacharelado em 1954, antes de os dois professores baianos ingressarem nessa universidade carioca, Judith Grossmann manteve diálogos frequentes com as suas produções, o que se pode observar na indicação bibliográfica de Teoria da comunicação literária, de Portella, no programa de 1970 (Figura 2). Em outras ementas e projetos de pesquisa integrantes do arquivo acadêmico, também consta a indicação das obras Da crítica e da nova crítica, de Afrânio Coutinho (1957), e Fundamento da investigação literária, de Portella (1974), além da Teoria, de Wellek e Warren. Entre os programas de ensino de Antônio Barros (1965) e Judith Grossmann (1970), nota-se a mudança da lista de conteúdos e itens de exploração. O primeiro (Figura 1) transformava em sequência didática os capítulos da Teoria de Wellek e Warren, o segundo (Figura 2) estava fundado na concepção de organon do manual norte-americano, concentrando-se em questões teóricas sobre os aspectos intrínsecos da literatura e os procedimentos através dos quais os aspectos extrínsecos – por exemplo, a história, a sociedade, os outros sistemas de signos – são interiorizados nas obras literárias pelo processo criador.


Figura 2 – Programa de ensino de Teoria da Literatura I e II (Teoria da Comunicação Literária I e II). Fonte: Grossmann, 1970 (Coleção Judith Grossmann – arquivo acadêmico, Lugares de Memória/UFBA)

A partir do formalismo russo, a “ciência da literatura” fez da “literariedade” o objeto de estudo privilegiado pelas correntes teóricas da primeira metade do século XX. Em um conhecido fragmento do ensaio “A nova poesia russa”, escrito na década de XX, Roman Jakobson declarava que “o objeto da ciência da literatura não é a literatura, mas a literariedade, o que faz de uma obra realizada uma obra literária” (Jakobson, 1973, p. 125, tradução nossa).2 Posteriormente, Tzvetan Todorov, leitor dos formalistas, delimitava que a poética estrutural “não mais se preocupa com a literatura real, mas com a literatura possível, em outras palavras: com esta propriedade abstrata que faz a singularidade do fato literário, a literariedade” (Todorov, 1965, p. 162 apud Portella, 1970, p. 39, tradução nossa).3 O pressuposto de que a matéria-prima da literatura é a linguagem verbal, “tal como a pedra ou o bronze o são da escultura, as tintas da pintura, os sons da música” (Wellek; Warren, 1971, p. 28),4 foi o ponto de partida para que variadas correntes interpretativas fizessem do elevado grau de inventividade com a linguagem a especificidade da literatura.

Dentre a bibliografia indicada por Judith Grossmann para o estudo do primeiro tópico, “Fenômeno literário”, destacamos a sua fundamentação na síntese do poeta-crítico Ezra Pound (2006 [1934], p. 32), em ABC da literatura, “literatura é linguagem carregada de significado”, e na avaliação de Eduardo Portella (1970, p. 36) sobre o caráter fundante da linguagem para o sujeito e as suas criações: “O discurso literário é a expressão superlativa da linguagem, porque a linguagem fala na poesia. É por isso que a fonte da criação é a linguagem literária”. O estudo das apropriações que Judith Grossmann fazia da bibliografia na elaboração de cada ponto do seu programa didático é um trabalho pertinente à análise das redes de circulação nacional e internacional das teorias da literatura. Contudo, pela extensão dessa empreitada, convém apenas mencionar a presença das ideias de Roman Jakobson, Ezra Pound, René Wellek, Austin Warren, Eduardo Portella e, de modo mais amplo, do formalismo, do new criticism e da fenomenologia nos subitens elencados para o estudo dos cinco tópicos seguintes do seu programa de ensino: “Metodologia da crítica literária”, “Modos de ser da obra de arte literária”, “Literatura e teoria da comunicação”, “Literatura e outros fenômenos culturais”, “Poética e tradução” (Grossmann, 1970, f. 1-2).5

O terceiro documento que destacamos é “Ofício circular n. 10/72” (Figura 3) remetido em 1972 por Nilton Vasco da Gama, professor titular de filologia românica do Instituto de Letras da UFBA, então coordenador do colegiado de graduação em letras. O documento informa a Judith Grossmann a decisão do colegiado por tornar a Teoria da Literatura I pré-requisito às matérias das literaturas clássicas, vernáculas e estrangeiras. Manifestaram deferência, em reunião de 3 de fevereiro de 1971, os professores Antonio de Barros (literatura brasileira), Hélio Simões (literatura portuguesa), Cláudio Veiga (literatura francesa), Carmelina Almeida (literatura italiana) e Eveline Gonçalves Morris (literaturas inglesa e norte-americana).

Esse ofício, contextualizado no conjunto documental, exemplifica o processo de institucionalização da teoria da literatura no currículo dos cursos de letras no Brasil, nos quais passou a integrar o núcleo introdutório para as diferentes habilitações. Vale lembrar que a "disciplina", ou seja, o resultado do poder disciplinar, “implica um registro contínuo. Anotação do indivíduo e transferência da informação de baixo para cima, de modo que, no cume da pirâmide disciplinar, nenhum detalhe, acontecimento ou elemento disciplinar escape a esse saber” (Foucault, 2015 [1974], p. 182). O documento também é representativo das relações acadêmicas nas universidades brasileiras durante a segunda metade do século XX, quando a figura do professor titular metaforizava as relações de poder e saber atuantes no interior dos campos disciplinares.


Figura 3 – Ofício circular n. 10/72. Fonte: Gama, 1972 (Coleção Judith Grossmann – arquivo acadêmico, Lugares de Memória/UFBA)

A “Justificativa para um Departamento de ‘Fundamentos para o Estudo das Letras’” (Figura 4), com data de 29 de setembro de 1975, foi assinada por Judith Grossmann, já no cargo de professora titular de Teoria da Literatura e chefe do Departamento Let 05. Dois anos antes, Grossmann havia realizado o concurso para titular, com a defesa da tese Obra estruturada: modelo e antimodelo na literatura contemporânea (Grossmann, 2023). Entre 1971 e 1975, a disciplinarização da teoria da literatura na UFBA esteve ligada ao desenvolvimento da trajetória acadêmica de Judith Grossmann e da equipe de professores recém-formada. Ao mesmo tempo em que a jovem professora obtinha outras titulações, ampliava-se a esfera de atuação da disciplina no Instituto de Letras da UFBA.

O argumento para a criação do departamento estendia o discurso propedêutico sobre a teoria da literatura, exemplificado nos documentos anteriores, às disciplinas de linguística, filologia e letras clássicas. A necessidade de instrumentalizar os estudantes dos estudos linguísticos e literários ao longo do curso se fundava na concepção humanista do currículo, a partir da qual o domínio prévio dos “princípios e critérios” científicos deveria ser acompanhado pela apropriação das “raízes gregas e latinas” da língua e da literatura. Ambos os objetivos eram baseados na concepção teorética do conhecimento, ao distinguir “ciência” e “empiria”, “teoria” e “aplicação” e, em última instância, “sujeito” e “objeto”, segundo a qual “o corte epistemológico [...] deve preceder o avanço da observação das particularidades”, pois “o estudante que ingressa na universidade, na área de letras, já travou um certo conhecimento, o suficiente, e de certo modo excessivo em sua empiricidade, com o texto literário” (Grossmann, 1975, f. 1).



Figura 4 – “Justificativa para um Departamento de ‘Fundamentos para o Estudo das Letras’ (linguística – teoria da literatura – letras clássicas – filologia românica)”.Fonte: Grossmann, 1975 (Coleção Judith Grossmann – arquivo acadêmico, Lugares de Memória/UFBA)

No ano de 1978, o Diretório Acadêmico de Letras endereçou ao gabinete de Teoria da Literatura do Departamento de Fundamentos para o Estudo das Letras um questionário (Figura 5) com 14 perguntas sobre as concepções político-pedagógicas das disciplinas do setor. As primeiras perguntas, “Como começou o curso de Comunicação Literária? Qual a sua função?” (Diretório Acadêmico, 1978, f. 1), e as reiteradas interrogações sobre a natureza do curso, “Qual a explicação [...]?”, “Qual a razão [...]?” (Diretório Acadêmico, 1978, f. 1), hoje podem ser discutidas em função do acesso aos itens documentais organizados por Judith Grossmann. O que talvez pareçam questões simples aponta, aos olhos do presente, o poder de um arquivo e do seu arconte sobre a memória dos sujeitos e das instituições. A incorporação dos documentos acadêmicos à Coleção Judith Grossmann, no espaço Lugares de Memória, redimensionou as políticas de acesso à informação que, no contexto de sua produção, estavam sob a gestão criteriosa da professora.

Além disso, o fato de Judith Grossmann ter produzido, ao longo da sua atividade docente, um arquivo pessoal no interior da universidade confronta os interesses públicos e privados que confluíam nas práticas de arquivamento e documentação. No entanto, se o poder se efetiva de maneira relacional, ou seja, como o efeito de relações que estão em constante movimento,6 observa-se a natureza ambígua das relações de poder informadas pelo arquivo acadêmico de Judith Grossmann. Os documentos registram tanto as etapas de construção da carreira acadêmica da professora, legitimando-se entre os seus pares, quanto os momentos de tensão nos quais a ordem do saber teórico é colocada em questão pelo corpo discente.

Richard Cox (2017, p. 179) considera que “os documentos gritam em nossos ouvidos diferentes interpretações”, e gritando aos ouvidos as sete últimas perguntas, subiam o tom do confrontamento intelectual. O Diretório Acadêmico questionava o fato de os alunos serem “forçados a cursar no primeiro ano” as disciplinas de Teoria da Literatura, que eram pré-requisitos para as demais literaturas, e se os professores do setor pretendiam realizar a “lavagem cerebral”, a “alienação em massa”, o “desligamento da realidade” dos estudantes recém-egressos do “segundo grau” (atual ensino médio). A acusação de “falsa transcendentalidade” às abordagens do texto literário, sobretudo no viés fenomenológico e imanentista que mencionamos anteriormente, ressalta o que a passagem do tempo apenas confirmou – a teoria é um campo discursivo onde se travam diferentes percepções sobre os fenômenos literários e culturais.


Figura 5 – “Questionário destinado ao Departamento de Fundamentos para o Estudo das Letras. Gabinete de Teoria da Literatura”. Fonte: Diretório Acadêmico, 1978 (Coleção Judith Grossmann arquivo acadêmico, Lugares de Memória/UFBA)

O contexto no qual se desenrolou essa querela era o regime da ditadura militar, portanto, esse documento de 1978 é representativo das demandas políticas que a juventude começaria a apresentar para o que supostamente representasse falta de engajamento (ou de “empenho”) com a redemocratização do país. Mas se o arquivo regula o que pode ser dito no interior do discurso, produzindo a memória dos acontecimentos, a documentação dessa querela entre estudantes e o corpo docente também informa os embates e os solavancos na história da disciplina na instituição.

A incorporação desse questionário ao conjunto documental revela um princípio ético das práticas de arquivamento de Judith Grossmann. Ciente da necessidade de registrar e produzir a trajetória da disciplina, ela guardou um documento que, para Jacques Derrida (2001), representaria o “mal de arquivo”, a contraditória pulsão de morte e de destruição que convive com a pulsão arquivística de conservação da memória. O teor das interrogações feitas pelo Diretório Acadêmico torna esse documento um ponto de ruína, fissura, incoerência e desequilíbrio para o edifício teórico arquitetado por Judith Grossmann, colocando em xeque a intencionalidade e a ordem do seu arquivo acadêmico.

A biblioteca de Judith Grossmann

Após sua aposentadoria, em 1990, Grossmann doou um significativo número de livros do seu acervo bibliográfico à biblioteca do Instituto de Letras, que ainda não estava incorporada à Biblioteca Central, embora já ocupasse um espaço dela, desde quando o antigo prédio do instituto, localizado na avenida Joana Angélica, foi interditado. Nessa ocasião, a Biblioteca Central abrigou a comunidade de letras no grande salão do andar térreo até a construção do atual prédio, no campus de Ondina.

A partir de 1997, quando se iniciou o processo de incorporação da biblioteca do Instituto de Letras à Biblioteca Central Reitor Macedo Costa – que somente em 2009 passou a denominar-se Biblioteca Universitária Reitor Macedo Costa –, Judith Grossmann acompanhava com grande preocupação o destino do seu acervo pessoal. Ciente de que em uma biblioteca está tecida uma rede de trabalho desenvolvida ao longo de sua atividade profissional, como docente e escritora, e que uma biblioteca pessoal é um lugar de memória, de afetos e de prazer, Grossmann assombrava-se diante da possibilidade de dispersão e de esfacelamento do seu acervo, ameaçado de ser fragmentado e distribuído no labirinto das diversas estantes, em decorrência da incorporação em andamento.

Para evitar aquilo que é considerado uma das maiores tragédias que pode acontecer a uma biblioteca particular – a dispersão –, Judith interferia constantemente no sentido de preservar a integridade do material ali depositado, insistindo para que fosse mantida a feição pessoal do seu acervo, o qual foi efetivamente preservado, constituindo a Coleção Judith Grossmann, denominação carimbada no selo que identifica cada exemplar doado, além da assinatura manuscrita “Judith Grossmann” (Figura 6), já escrita e exposta na primeira folha dos livros em caneta esferográfica azul, e geralmente acompanhada pela data de compra do livro.

Os alunos e colegas da professora Judith Grossmann puderam acompanhar durante muitos anos, desde a sua chegada à UFBA, a sua rigorosa e criativa metodologia de trabalho em diversos setores, com um pensamento sempre avançado – “cem anos na frente”, como ela costumava declarar. Hoje a Coleção Judith Grossmann encontra-se no segundo andar da Biblioteca Universitária Reitor Macedo Costa, da UFBA, compartilhando esse espaço com diversas outras coleções provenientes de bibliotecas particulares, tornadas institucionais quando doadas e incorporadas à universidade. Todas elas constituem o espaço Lugares de Memória.

De acordo com o “Relatório de conferência de campo”, produzido pelo Pergamum – Sistema Integrado de Bibliotecas, em 17 de novembro de 2022, o acervo da Coleção Judith Grossmann possui 1.304 exemplares, sendo composto por 1.252 livros, 22 folhetos, um catálogo, 25 periódicos e quatro exemplares manuscritos. Por solicitação expressa de Grossmann, e também por ser um acervo especial, os livros não são emprestados e a consulta das obras é realizada na própria biblioteca.

Importante salientar que nem todos os livros de Grossmann se encontram na coleção da UFBA. Judith permaneceu com a posse de um considerável número de obras, aquelas que constantemente lia e relia, e pelas quais tinha um apreço particular, até mesmo pela materialidade do objeto livro. Assim, muitos exemplares foram levados para o Rio de Janeiro, cidade na qual passou a viver depois de alguns anos de aposentada, até o final de sua vida, em janeiro de 2015. Digno de registro, por exemplo, é o fato de não ter deixado na coleção da UFBA o seu exemplar de Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, uma de suas obras preferidas, embora possam ser encontradas outras publicações do autor. O fundo memorialístico de Judith Grossmann é também composto pelos arquivos depositados no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, doados pela própria escritora. Entretanto, esses documentos não estão sendo objeto destas considerações.

Sabemos que uma biblioteca constitui a história da vida de uma pessoa, não apenas pelo que ela lê, mas também pela maneira como está organizada, pelas marcas impressas nas margens dos livros: as marginálias. Sabemos que escritoras e escritores utilizam abundantemente a marginália. Segundo o Instituto Hilda Hilst, por exemplo, cerca de 2.500 livros – ou seja, 70% da biblioteca da escritora – reúnem intervenções da autora, totalizando uma estimativa de cinquenta mil marginálias (Barbosa, 2020, p. 145). Hilda Hilst ainda usava papéis para anotações que eram deixados dentro dos livros. E o que nos informam as marginálias dos livros de Judith Grossmann?

Uma resposta rigorosa a essa pergunta exigiria minuciosa pesquisa que avaliasse todos os livros marcados, ainda não realizada. Todavia, uma amostragem feita em uma diversidade de obras de assuntos variados – literatura em seus diversos gêneros: romance, conto, poesia, drama, teoria da literatura, psicanálise, linguística, filosofia – constata certa economia na utilização das marginálias nos exemplares consultados. São pequenos comentários, às vezes apenas uma palavra rabiscada, nomes de escritores, uma anotação feita com humor ou sarcasmo.

É impressionante como textos utilizados em tantas aulas não possuem nenhuma anotação, a exemplo de peças de Shakespeare, traduzidas para o português e publicadas pelas editoras Clássicos de Bolso ou Edições de Ouro, estudadas em vários cursos de graduação a partir dessas edições. Estranhamente, é em um exemplar da peça Macbeth, publicado em inglês pela Bantam Books, de Nova Iorque, em 1961, que são encontrados diversos trechos sublinhados ao longo do livro e vários comentários (Figuras 6 e 7).

Todavia, de modo geral, arriscamos afirmar, considerando o material consultado, que predomina uma economia de traços. O lápis parece não querer imprimir seus sulcos na folha do papel, o que muitas vezes dificulta a leitura dos comentários, comprometendo inclusive a qualidade da reprodução das marcações quando digitalizadas (Figuras 8 e 9). Que perfil de Grossmann pode ser traçado a partir de suas anotações? Haveria mesmo uma espécie de prova documental da pessoa – professora e escritora – Judith Gossmann a partir das marginálias de seus livros? Encontraríamos, nessas marcas, resíduos ou fragmentos de história de vida de Judith Grossmann? Sabemos que uma ausência é também significativa. Assim, provisoriamente – e chamamos a atenção para a importância dessa palavra –, podem ser levantadas algumas hipóteses.



Figuras 6 e 7 – Macbeth, de William Shakespeare. Fonte: Coleção Judith Grossmann, Lugares de Memória/UFBA



Figuras 8 e 9 – Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de Clarice Lispector Fonte: Coleção Judith Grossmann, Lugares de Memória/UFBA

Um aspecto dessa questão pode estar ligado à capacidade de memorização prodigiosa de Judith Grossmann, que parecia não depender de rabiscos feitos no papel para destacar alguma informação e guardá-la com mais facilidade – um personagem, um procedimento de estilo, um nome de lugar, um conceito. Seu modo de organizar os dados provenientes da leitura é através de seu próprio hardware interno, pela força da impressão desses dados na sua "placa-mãe", a sua memória.

Por sua vez, o apreço pela própria materialidade do livro pode ser também uma das explicações para a “timidez” com que as marcas, de modo geral, aparecem nos livros do acervo: não macular o texto, não degradar o livro. Tudo deve estar organizado, sem excesso e sem acúmulo. Tudo deve estar em ordem. E a ordem é uma das questões prediletas de Grossmann, tanto do ponto de vista existencial, como da perspectiva da temática de sua escrita criativa, os seus textos literários. Isso não significa, contudo, que não se possam encontrar inscrições irreverentes, humorísticas, desafiadoras, críticas. Às vezes, uma única palavra é suficiente para desconstruir o argumento daquilo que está sendo lido.

No início destas reflexões, procedeu-se a uma breve referência ao arquivo acadêmico deixado no setor de teoria da literatura, construído pela própria professora com grande rigor organizacional. Esse material que analisamos na seção anterior foi recentemente digitalizado com apoio do CNPq e agora se encontra no Lugares de Memória. Quem acompanhou a construção desse arquivo pela docente recém-chegada à UFBA, como as professoras que constituíam naquele período a equipe de teoria da literatura, sabe que nenhum documento poderia ser retirado da disposição estabelecida, tudo deveria estar impecavelmente no seu lugar, obedecendo à ordem estipulada pela professora e mestra – geralmente a cronológica. A ordem era algo entranhado nos mínimos gestos cotidianos da vivência de Grossmann e se constitui como um tema recorrente em sua criação literária: em seus romances e contos, conforme atesta o estudo de Lígia Telles (2011), O périplo de Judith Grossmann, ao analisar Nascida no Brasil: romance (1998) e Fausto Mefisto: romance (1999).

A partir das concepções que definem o escritor como leitor, a exemplo de Roland Barthes (“Escrever a leitura”, “Literatura e ensino” – 1987), Evando Nascimento (“Retrato do autor como leitor” – 2011) e da própria Judith Grossmann em sua obra, passamos a focalizar outro viés das questões concernentes à escritora e sua biblioteca, procurando destacar algumas marcas de uma leitora-professora/escritora, ou de escritora/professora-leitora na produção literária grossmanniana.7 Se, nas estantes das bibliotecas, os livros parecem mudos, ali existe uma rede de escritas, de diálogos intertextuais silenciosos que pulsam e ganham voz, transbordam para novas escritas pelo gesto precípuo de um olhar e de uma mão que transfere, para outros espaços sígnicos, vestígios, restos, resíduos de leituras que constituirão outras personagens, outros lugares, outras escritas, em um jogo lúdico que, como afirma Roland Barthes,

não deve ser compreendido como distração, mas como um trabalho. [...] ler é fazer trabalhar o nosso corpo (desde a psicanálise que sabemos que este corpo excede em muito a nossa memória e a nossa consciência) ao apelo dos signos do texto, de todas as linguagens que o atravessam e formam como que a profundidade cambiante das frases. (Barthes, 1987, p. 28-29)

Trabalho sim, mas apaixonante e prazeroso, capaz de propiciar a reconstrução biográfica de um/a escritor/a, a sua "biobibliografia", como define Evando Nascimento (2011).

Para tratar desse viés, recorremos inicialmente a um romance de 1985, Cantos delituosos, publicado pela Nova Fronteira, no qual se registra, através da personagem Amarílis, uma das representações da figura da escritora na obra literária, as diversas referências a uma leitora voraz. O estudo das representações da escritora no texto literário, aliás, já foi realizado em seus diversos contornos por Lígia Telles, em O Périplo de Judith Grossmann (2011), já referido anteriormente. Destacamos algumas afirmações da personagem Amarílis que definem a sua atividade leitora: “leio muito, leio às escondidas, é certo, mas leio [...] tudo é leitura” (Grossmann, 1985, p. 16).

Cantos delituosos, por exemplo, transforma o espaço ficcional em uma reflexão sobre as relações entre ler e escrever. Transforma em uma tematização sobre ler-escrever-ensinar-viver, à medida que problematiza uma questão teórica das mais instigantes da contemporaneidade: a do escritor como leitor. E como leitor de códigos diversificados, pois o próprio mundo e a experiência cotidiana tornam-se uma “Biblioteca de Babel”, são textos a serem lidos e relidos, decodificados e recodificados, como propõe o escritor argentino Jorge Luís Borges. Por isso, a afirmação de Amarílis: “Tenho muito estudo. O largo é a minha universidade. Uma singela Amarílis de muita cultura” (Grossmann, 1985, p. 16).

Cantos delituosos, Todos os filhos da ditadura, Meu amigo Marcel Prost e tantas outras obras de Judith Grossmann constroem-se dialogando com a tradição literária – o cânone – e com diversos códigos culturais que são traduzidos para o seu espaço, estabelecendo, todavia, uma declarada interlocução com Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, talvez o principal interlocutor-protagonista de Cantos delituosos. Significativamente, o exemplar de Grande sertão não consta nas estantes do acervo, como já registrado anteriormente. Contudo, vários outros autores são citados nominalmente nesses textos, como se tivessem saído das prateleiras da biblioteca para enxertarem e tecerem o sistema de raízes dos textos grossmannianos e constituírem uma outra biblioteca imaginária, usando aqui uma expressão que dá nome a um livro de João Alexandre Barbosa (1996) e, simultaneamente, configurar a escrita de Judith Grossmann como uma possante usina de triturar leituras, as quais traçam o seu perfil de autora como leitora, isto é, escrevem a sua “biobibliografia” (Nascimento, 2011).

Através do jogo das citações disseminado no tecido textual dessas obras, é possível acessar o acervo das leituras de Judith Grossmann: 1) pela nomeação explícita de autores da história da literatura e da arte, tais como Franz Kafka, Fernando Pessoa, Shakespeare, Lautréamont, Rimbaud, Antônio Nobre, Walt Whitman, William Carlos William, Antero de Quental, Virginia Woolf, Mansfield, Machado de Assis, Joyce, Jorge de Lima; 2) pelas inúmeras referências a nomes de personagens literários, como Hamlet, Romeu e Julieta, Lady Macbeth; 3) pela apropriação quase imperceptível de título de obras literárias, como Laços de família – Clarice Lispector; Corpo de baile e A benfazeja – João Guimarães Rosa; A terra devastada – T.S. Eliot; 4) pela retomada de temas e procedimentos literários dos mais variados autores e, em alguns casos, de todo o conjunto da obra de um autor, como Clarice Lispector, João Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Jorge de Lima (Figuras 10 e 11), João Cabral de Melo Neto, Gonçalves Dias, Machado de Assis, Camões, Mallarmé, Baudelaire, Antonin Artaud, August Strindberg, T.S. Eliot, além da retomada de diversos outros discursos da cultura, como os contos de fadas e a arte pop, presença marcante principalmente em Meu amigo Marcel Proust: romance (1995).

Citemos aqui um pequeno trecho de Todos os filhos da ditadura (2011) que explicita claramente a atividade leitora:

Mas precisava eu, o hóspede costumaz, de dias grey, de muito Londres, de muito Tâmisa, em pleno Rio de Janeiro, para Londrar, para Tamisar ad libitum, de muito Shakespeare, de muito Joyce, de muita Woolf, de muita Mansfield, ao lado de Machado e de Jorge de Lima. Com um viva aos fâmulos, à la Proust, que tornam o nosso mister possível. (Grossmann, 2011, p. 135)

A genealogia formada por esse repertório de textos e de autores citados coincide com os arquivos da prática pedagógica da professora de teoria da literatura, constituindo-se nas principais referências bibliográficas das disciplinas dos cursos de graduação e de pós-graduação em letras da Universidade Federal da Bahia, onde lecionou de 1966 a 1990.



Figuras 10 e 11 – “Invenção de Orfeu”, em Poesias completas, v. 3, de Jorge de Lima. Fonte: Coleção Judith Grossmann, Lugares de Memória/UFBA

Clipagens finais

Referir-se à prática pedagógica de Judith Grossmann implica falar, simultaneamente, da arquivista, da leitora e da escritora. Se a leitura mobiliza a escrita literária de maneira tão exuberante, constituindo uma das vertentes temáticas da produção literária, que se constrói através de um diálogo declarado e manifesto com textos das literaturas brasileira, inglesa, francesa, alemã, irlandesa, latino-americana, contos de fadas, contos populares, literatura pop, artes plásticas, arte pop etc., esse mesmo repertório literário e artístico constituiu o conjunto de obras e de escritores que compuseram as referências bibliográficas dos cursos de teoria da literatura, em seus diversos níveis. E era através da leitura que os estudantes tinham acesso às questões teóricas e desenvolviam as reflexões e sistematizações sobre a literatura. Essa postura de uma leitora insaciável e amante da literatura de todas as épocas e de todos os povos está na base das diversas atuações de Judith Grossmann. É, portanto, a força mobilizadora de sua pedagogia na sala de aula e da sua escrita literária.

Os documentos do arquivo acadêmico e os livros da biblioteca pessoal que hoje constituem a Coleção Judith Grossmann da UFBA, mais do que objetos de deleite e de prazer, são potentes instrumentos para se conhecer a atividade profissional de Judith Grossmann, seja como docente, com uma valiosa contribuição pedagógica à Universidade Federal da Bahia, que lhe outorgou o título de professora emérita, seja como escritora, com uma fabulosa capacidade inventiva, cujo magistral legado artístico e literário redimensionou a história da literatura brasileira na contemporaneidade.

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Recebido em 5/5/2023

Aprovado em 16/5/2023


Notas

1 Derrida (2001, p. 17) refere-se à “violência arquival”.

2 Original: “l’objet de la science de la littérature n’est pas la littérature mais la littérarité, c’est-à-dire ce qui fait d’une œuvre donnée une œuvre littéraire” (Jakobson, 1971, p. 15).

3 Original : “cette science se préoccupe non plus de la littérature réelle, mais de la littérature possible, en d’autres mots : de cette propriété abstraité que fait la singularité du fait littéraire, la littérarité” (Todorov, 1968, p. 102 apud Portella, 1970, p. 39, grifo no original).

4 Trecho parafraseado posteriormente por Eduardo Portella (1970, p. 25): “Assim como a matéria do pintor é a tinta, a tela, a do escultor é o mármore, o granito ou o ferro, a matéria de que se serve o poeta é a linguagem”.

5 De acordo com essas linhas teóricas, o processo criador se ergue contra a arbitrariedade do signo linguístico, o que diferenciaria a “linguagem literária” da “linguagem não literária” (Wellek; Warren, 1971, p. 28-29; Portella, 1970, p. 36) empregada pela ciência ou pelo cotidiano. Os escritores, como artistas da palavra ou “antenas da raça” (Pound, 2006 [1934], p. 71), teriam a faculdade da “imaginação” mais aguçada do que a “percepção” do homem comum (Portella, 1970, p. 32), cabendo-lhes organizar e unificar as experiências, as sensações, os materiais e o repertório fornecidos pela realidade na estruturação dos diversos estratos que se unificam na obra literária através da totalização dos estratos da linguagem, da representação literária e do sistema de valores (Wellek; Warren, 1971, p. 30, 34 e 176). Portella (1970, p. 23) cita a teoria de Roman Ingarden, Das Literarische Kunstwerk, 1965, traduzida ao português dois anos depois de A obra de arte literária (Ingarden, 1973).

6 Michel Foucault (2015 [1972], p. 138).

7 O "escritor múltiplo" conjuga a criação literária com a atividade docente em instituições de ensino superior, a produção ensaística sobre a arte, a literatura e a cultura junto a outras formas de atuação social, política ou cultural (Hoisel, 2019). Na cena cultural brasileira, podem ser destacados Affonso Romano de Sant’Anna, Alberto Pucheu, Cleise Mendes, Davi Arrigucci Jr., Décio Pignatari, Evando Nascimento, Godofredo de Oliveira Neto, Helena Parente Cunha, Joel Rufino dos Santos, Judith Grossmann, Leda Maria Martins, Maria Esther Maciel, Silviano Santiago, entre outros.


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