Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 3, set./dez. 2023

Artigos Livres

Por uma iniciação na cultura arquivística

O papel sociocultural dos arquivos e o arquivista como mediador cultural

For an initiation into archival culture: the sociocultural role of archives and the archivist as a cultural mediator / Para una iniciación a la cultura archivística: el papel sociocultural de los archivos y el archivero como mediador cultural

Leonardo Augusto Silva Fontes

Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Servidor da Equipe de Transcrição Paleográfica do Arquivo Nacional, Brasil.

leonardo@an.gov.br

Taiguara Villela Aldabalde

Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de Brasília (UnB). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação e da graduação em Arquivologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Brasil.

taiguara.aldabalde@ufes.br

RESUMO

Aborda a cultura arquivística e sua relação com o papel sociocultural dos arquivos e do arquivista como mediador cultural. Discute-se sobre o arquivo como espaço de mediações, o arquivista-mediador e a mediação cultural como estruturantes para a iniciação na cultura arquivística e a sensibilização dos usuários. Conclui-se que os arquivos e os arquivistas possuem um papel central na mediação dos valores, linguagens, políticas e objetos da cultura arquivística.

Palavras-chave: cultura arquivística; arquivos; responsabilidade social; mediação cultural.

ABSTRACT

Address archival culture and its relationship with the sociocultural role of archives and the archivist as cultural mediator. There is a discussion about the archive as a space for mediations, the archivist-mediator and cultural mediation as structuring elements for the initiation into archival culture and the sensitization of users. It is concluded that archives and archivists play a central role in mediating the values, languages, policies, and objects of archival culture.

Keywords: archival culture; archives; social responsibility; cultural mediation

RESUMEN

Aborda la cultura archivística y su relación con el papel sociocultural de los archivos y el archivero como mediador cultural. Se discute sobre el archivo como espacio de mediaciones, el archivero-mediador y la mediación cultural como estructurantes para la iniciación a la cultura archivística y la sensibilización de los usuarios. Se concluye que los archivos y los archiveros desempeñan un papel central en la mediación de los valores, lenguajes, políticas y objetos de la cultura archivística.

Palabras clave: cultura archivística; archivos; responsabilidad social; mediación cultural; sensibilización de usuarios.

Introdução

Aborda-se o tema da iniciação na cultura arquivística, sendo essa considerada o conjunto de práticas de mediação que iniciam o sujeito nesta cultura. Para Klumpenhouwer (1995), por exemplo, sem essa mediação o autor não teria realizado seu trabalho e os procedimentos arquivísticos que mudaram a realidade concreta. Assim, entende-se que essa cultura arquivística demanda mediação por práticas as quais o autor chama de “iniciação na cultura arquivística”.

De acordo com a abordagem antropológica, “a iniciação é mais do que simplesmente um rito de transição, ela é um rito de formação. Esta formação vai diferenciar os participantes ou o círculo dos neófitos dos ‘de fora’, daqueles exatamente não iniciados” (Zempléni apud Rodolpho, 2004, p. 144).

Essa formação diferencia, mas, ao mesmo tempo, integra iniciados e não iniciados, por meio da autorreferencialidade: a ação transitiva de sua transmissão ritual, em outras palavras, pela reiteração da iniciação que ela engendra. É apenas quando nos tornamos iniciadores que nos tornamos plenamente iniciados” (Zempléni apud Rodolpho, 2004, p. 144). Fazendo uma analogia com a mediação cultural, os mediadores culturais só se tornam mediadores após dominarem as práticas de iniciação à cultura arquivística.

E como se daria essa iniciação reiterada à cultura arquivística? Como será visto ao longo do artigo, principalmente através de práticas de mediação cultural pelos arquivos e dos arquivistas como mediadores culturais. Monteiro (2022) declarou recentemente que: “Estamos sem uma cultura ‘de arquivo’, sem saber direito como os documentos foram feitos e chegaram até os acervos. Pode não parecer, mas estamos perdendo um monte de informação assim”. Dominar a “cultura de arquivo” implica conhecer como os documentos são produzidos e preservados. Essa cultura não tem sido apropriada por grande parte da população, pois não há circulação nos principais meios, tais como os de comunicação (mídias tradicionais e alternativas) e os institucionais (escolas, universidades, centros de pesquisa, órgãos da administração pública, dentre outros).

O problema a ser tratado neste contexto é representado pela seguinte questão: de que formas os arquivos podem assumir seu papel sociocultural e os arquivistas podem realizar a iniciação na cultura arquivística? No caso dos arquivos públicos, isso é mais que uma possibilidade, é um dever.

Uma vez que, até o presente momento, não se acha na literatura nacional uma definição precisa sobre o tema e os seus conceitos, objetiva-se discutir a relação entre a cultura arquivística, o papel sociocultural dos arquivos e o arquivista como mediador cultural.1 Para tanto, adotou-se a reflexão, a priori, sobre o tema, a partir de pesquisa bibliográfica e uma abordagem hermenêutica, em que se buscou analisar material pertinente ao assunto em tela. Ressalta-se aspectos estruturais e operativos do tema abordado.

Cultura arquivística: em busca de identificação e sensibilização social

A iniciação à cultura arquivística se principia com práticas de mediação cultural cujo objetivo é familiarizar os neófitos no universo arquivístico, respeitando a representatividade social em suas mais diferentes expressões culturais. É necessário pensar os arquivos em termos de direitos culturais, e na efetivação desses direitos; nomeadamente, direito às identidades, às línguas maternas, à participação na vida cultural e à livre manifestação e expressão cultural, à proteção ao patrimônio cultural, à livre criação, à fruição dos bens culturais, à produção cultural, à autoria e, enfim, aos direitos humanos.

Os direitos culturais são direitos fundamentais da vida civil, resguardados pela Constituição Federal de 1988:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. § 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais. § 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II produção, promoção e difusão de bens culturais; III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; IV democratização do acesso aos bens de cultura; V valorização da diversidade étnica e regional.

Portanto, preservar a cultura arquivística de forma inclusiva e representativa não é apenas uma possibilidade de atuação dos arquivos, mas um dever constitucional. Esses direitos culturais, assim, deveriam nortear o funcionamento dessas instituições.

A Constituição vai além, determinando em seu artigo seguinte:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (grifo nosso)

No parágrafo ٣º desse artigo, a Constituição reitera: “A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais”. Considerando que documentos arquivísticos de valor permanente, ao menos de acordo com o pensamento schelemberguiano, possuem valores culturais, é possível considerar o patrimônio documental como parte dos bens materiais culturais a partir destes valores descritos em Menezes (2009). Levando isso conta, trata-se de uma previsão legal para incentivar o conhecimento dos bens culturais, inclusive os documentos arquivísticos e seus valores culturais associados. Conforme Aldabalde (2018b, p. 111),

a noção de cultura arquivística é comumente associada aos experts na literatura. É possível encontrar essa associação com os termos archival culture e culture archivistique nas obras produzidas por Richard Klumpenhouwer (1995), International Council on Archives (1999), Rebecca Schneider (2001), Bruno Galland (2004), Christian Hottin (2008), Unesco (2009) e Nadia Roch (2014).

Melis (2010), ao analisar a relação entre cultura arquivística e cultura da memória, diz que2

a cultura arquivística é amplamente definida para incluir tanto a profissão arquivística, sua teoria, princípios e prática, quanto as práticas arquivísticas “culturais” na era digital. A cultura arquivística deu origem ao desejo de registrar e salvar tudo para a posteridade no que foi referido como “recuperação total”.

Essa guarda é para recuperação e uso posterior, ou seja, parte da cultura arquivística corresponde ao desejo de guardar ou preservar tudo para a posteridade. Isso encontra paralelo na definição de arquivar no senso comum e em sua dicionarização no português brasileiro: “arquivar. ar·qui·var. vtd. 1 Depositar ou guardar em arquivo: Arquivaram a escritura no cartório”. Como se vê, não se trata da lógica do acesso e da mediação da informação, mas “arquivar” se vincula ao campo de ação técnico-burocrata, não sociocultural. No Brasil, essa cultura arquivística não tem sido desenvolvida como poderia. Até hoje grandes municípios não têm arquivos municipais e a maior parte da população não é iniciada nessa cultura. Há, assim, um grande desconhecimento social sobre os arquivos e suas funções. Somado a isso, na falta de um censo nacional de arquivos e da periferização das instituições arquivísticas, há demanda por estrutura adequada para os arquivos existentes, tanto o nacional, quanto os estaduais e municipais, assim como por profissionais de arquivo, especialmente arquivistas. Possivelmente essa população não iniciada não será sensibilizada se, por algum motivo injustificado, a instituição arquivística sofrer cortes orçamentários e ingerências políticas.

Levando isso em conta, o Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) fez uma campanha de sensibilização junto aos prefeitos, prefeitas e presidentes de câmaras municipais para a criação de arquivos públicos municipais.3 Também seria pertinente destacar que a mediação cultural poderia ser realizada com a participação do público, cuja captura por meio audiovisual fosse transmitida, ocorrendo a difusão da mediação, de modo que não se trataria mais de especialistas, mas da população iniciada tratando de temas de interesse público – que poderia ser projetada em redes sociais. Resta saber os resultados e impactos dessa campanha. Contudo, isso é tema para outro artigo.

Considerando que os arquivos públicos são lugares das práticas arquivísticas, entende-se que a cultura arquivística nasce com os arquivos, com a iniciativa das administrações e de gestores públicos em registrar suas atividades e funções, mudando de escopo ao longo do tempo para atingir suas metas e colocar os acervos à disposição da sociedade. Hoje, diante de numerosas possibilidades de ocultamentos, confiscos, desvalorizações e ritos de degradação dos arquivos, faz-se necessária uma iniciação à cultura arquivística.

Assim, essa iniciação na cultura arquivística também potencializa a chance de se difundir a importância dos arquivos junto à sociedade, em uma época em que reconstruir culturas e direitos está na ordem do dia, em um cenário pós-pandêmico.

Dado isso, defende-se que os arquivos e arquivistas assumam suas responsabilidades sociais de apresentar as instituições, seus serviços, recursos informacionais, acervos e demais objetos de trabalho aos públicos e/ou usuários por práticas mediadoras, que podem incluir a mediação artística (relacionada às artes e aos artistas), a educação patrimonial e a mediação cultural, sendo essa última aquela possível de sensibilizar a sociedade.

Fontes (2023, p. 12) parece sugerir essa visão, defendendo que “na mediação cultural em arquivos o usuário não é visto como um mero receptor de informações, produtos e serviços, mas também sujeito de suas histórias, documentos e suas reproduções”. O campo da mediação cultural se coaduna com o que Siqueira chama de multiusuário, que deve estar nas políticas arquivísticas, dentre elas “a mediação cultural, prática pouco difundida em instituições arquivísticas e que pressupõe diversos caminhos, formas variadas e aspectos multimídia de interação e integração entre a instituição e a sociedade” (Siqueira, 2018, p. 2).

Em relação aos arquivos, vale considerar estudos que identifiquem seus diversos públicos, públicos potenciais e até mesmo a categoria não público – levando à sua inserção e valorização junto à sociedade. Cabe destacar que os públicos são compostos por indivíduos que já participam do espaço institucional, os públicos potenciais são aqueles que interagem sem efetivar sua participação, denotando interesse, e aqueles classificados como “não público” manifestam desinteresse.

Barcellos (2020) reflete sobre as ações culturais e educativas realizadas nas três primeiras edições (2017-2019) da Semana Nacional de Arquivos por instituições arquivísticas localizadas na cidade do Rio de Janeiro e aquelas realizadas pela Equipe de Educação em Arquivos do Arquivo Nacional. A autora reitera essa perspectiva sobre a relevância e a função social do trabalho com o patrimônio, em especial o documental, concluindo que “políticas de ação cultural que se aproximam da educação patrimonial como metodologia são fundamentais nos programas de difusão cultural no sentido de popularizar os arquivos” (Barcellos, 2020, p. 112). Dessa forma, ação e mediação culturais aproximam-se pela estratégia de democratização da cultura consignada em Jammet (2007) apud Aldabalde (2018b).

Cabe diferenciar ação cultural, que pressupõe uma modificação no sujeito; mediação cultural, que é um paradigma comunicacional, ontológico e dialético, pressupondo reciprocidade na relação entre produtor, mediador e usuário ou público; e prática cultural, que já está estabelecida e sistematizada por programas específicos, conforme Netto (1997).

A iniciação na cultura arquivística ajuda ou facilita a compreensão do papel sociocultural dos arquivos, para além de suas funções administrativas e de preservação documental. Assim, arquivos como espaços de mediação tornam-se instrumentos de promoção da cidadania, da obtenção e fruição de direitos, de partilha identitária, de construção de memórias comunitárias, de inovação e transformação sociocultural, como determinado pela Constituição Federal vigente no Brasil.

Bellotto (2007) apontou que na Rússia, por exemplo, ler e fazer comentários nos meios de comunicação (como televisão e rádio) a partir de documentos de arquivo são práticas comuns e constam em programas de atividades culturais. Isso é um exemplo de mediatização de objetos relacionados ao escopo de uma iniciação à cultura arquivística em larga escala. Ora, considerando a zona de histórica influência geopolítica russa, esse fato parece evidenciar como os arquivos estão ligados ao exercício do poder cultural com objetivos diversos.

Um desses objetivos é o de fortalecer o softpower, termo cunhado por Joseph S. Nye (2004) referente ao poder exercido no campo cultural e ideológico, em oposição ao hardpower, vinculado ao exercício tradicional do poder, nos campos econômico e militar.

Em certa medida, isso acontece também no campo arquivístico, nas missões técnicas do Arquivo Nacional do Brasil junto aos arquivos nacionais lusófonos, como os de Timor Leste, Moçambique e Angola.4 A ideia do Estado brasileiro influenciar esses arquivos lusófonos por meio de seu Arquivo Nacional é estratégica em termos geopolíticos, mas acha-se dissonante em relação aos estudos de White (2017), que reconhecem o dispositivo de memory keeping (preservação da memória) por grupos étnicos não brancos.

Cabe mencionar uma mudança de perspectiva declarada a partir da posse da nova direção-geral do Arquivo Nacional do Brasil, em março de 2023, em que a relação com a sociedade tende a ser vista por uma perspectiva inclusiva, enunciada nos seguintes termos:5

Assumimos o compromisso de trabalhar muito para que a realização da missão institucional do Arquivo Nacional seja compreendida como imprescindível para a preservação de um valiosíssimo patrimônio nacional: a nossa memória singular, mas mobilizada no plural. Estaremos a serviço da promoção da cidadania e dos direitos humanos. (Brasil, 2023)

Retomando a reflexão sobre iniciação como prática mediadora, para Fleury e Fischer (1996), a mediação é o principal campo de interesse quando se trata de entender como as representações e as ações têm significações atribuídas por hábitos, de modo que esses se estabelecem correspondentemente quando os indivíduos significam as atividades que executam. Nessa direção, as autoras destacam que é a produção de signos que determina uma cultura, senso de realidade compartilhado e zonas de significados. A partir disso, é possível inferir que é cabível haver eficácia simbólica de Lévi-Strauss aos arquivos, assim como há aos museus abordados em Castells (2018), tendo em vista os diversos públicos e serviços culturais das instituições arquivísticas. Com isso, essa eficácia pode se tornar um indicador para desempenho institucional, consignando rubricas orçamentárias para cumprimento de sua missão e dessas práticas de mediação cultural.

Essa abordagem se coaduna com a teoria linguística dos signos de Charles Morris, segundo a qual “a representação de possíveis consequências da ação através da produção de signos linguísticos torna-se um fator de liberdade ou de inibição da ação que tem (ou parece ter) tais consequências”. O autor vai além, relacionando as trocas simbólicas entre indivíduos e sociedade, por meio da linguagem compartilhada, na qual “o indivíduo é capaz de ganhar uma identidade e uma mente, e utilizar essas realizações na prossecução dos seus interesses” (Morris, 1976, p. 40). Nesse sentido, os arquivos se vinculam à produção de sentidos e identidades de indivíduos e coletividades a partir de relações socioculturais e de poder e através de iniciação à cultura arquivística por meio de práticas de mediação reiteradas.

A linguagem, assim, é o átomo da mediação cultural ‒ que é uma forma de democratização dos arquivos e do estabelecimento da democracia cultural em relação à sociedade, contribuindo à inovação de serviços culturais. Há diversos tipos de práticas de mediação; uma dessas, a mediação da informação semântica, de forma até pouco discutida, é influenciada por demandas de usuários nas salas de consultas sobre quais itens ou partes dos acervos devem ser digitalizados, evitando seu manuseio excessivo e contribuindo para uma política de preservação (física e virtual).

Ao preservarmos documentos de arquivos e sua linguagem documentária, certos termos e discriminações se perpetuam. Contudo, isso pode ser revertido por meio da reindexação arquivística. Assim, outra demanda está no campo da representação da informação. Instrumentos de pesquisa e vocabulários controlados possuem historicidade e devem se adequar às mudanças sociais. É imprescindível a atualização dos termos diante dessas mudanças. Não cabe mais haver, dessa forma, termos indexados como “sodomia”, “homicídio” e “pederastia” e não “feminicídio”, “homofobia”, “racismo”, “crime de ódio” e “transfobia”, mesmo que isso seja feito por meio de remissivas.

Um vocabulário controlado atualizado e condizente com a sociedade contemporânea é mais que uma necessidade, é um dever social dos arquivos e seus profissionais. Ao analisarem o tesauro da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Frota, Ribeiro e Gomes (2017) evidenciam a necessidade de se repensar os sistemas de vocabulário controlado da área:

Identifica-se também uma necessidade imediata de revisão de termos específicos que já existem dentro do tesauro e que estão em desacordo com a literatura de direitos humanos e com as discussões e relatórios da ONU, como por exemplo o termo “homossexualismo”, que não reflete mais o conceito adotado pelas organizações de direitos humanos. É aconselhável que haja uma revisão periódica do tesauro para identificar se os termos ainda estão de acordo com os conceitos utilizados. É importante que a vigilância da literatura do campo dos direitos humanos seja constante para a atualização de novos termos e até mesmo a alteração de conceitos já existentes. Pois trata-se de um campo social dinâmico, em constante transformação. (Frota et al., 2017, p. 230)

Como se vê, mesmo uma instituição voltada para os direitos humanos muitas vezes demora a se adaptar às mudanças sociais. Assim, os usuários mais impactados por uma indexação desatualizada podem colaborar na aceleração dessas atualizações necessárias e periódicas.

Isso porque o usuário estabelece uma relação com a coisa ou objeto mediado (bem cultural, informação, sistema, espaço institucional, dado, documento ou outro), de modo que tal objeto é significado com um ou mais sentidos atribuídos ao(s) beneficiado(s) (público, usuário, participante, educando ou outro) pela prática mediadora.

Por fim, os públicos estabelecem relações com os objetos mediados, com o mediador e o serviço, produzindo novos significados que contribuirão, em tese, ao componente de novidade no ciclo inovacional. Para tanto, é preciso reiterar que a razão de ser dos serviços de arquivo esteja centrada nos seus beneficiários, de forma que os públicos e os usuários sejam integrados aos processos de mediação e de inovação como principais colaboradores, por meio de práticas de mediação cultural e sensibilização social.

Considera-se a cultura arquivística como algo plural e intercultural por definição, já que é engendrada em um conjunto de interculturalidades que abarca culturas nacionais, culturas de grupos historicamente marginalizados, culturas arquivísticas profissionais locais, culturas arquivísticas acadêmicas ou outras. Assim, a cultura arquivística forma-se, também, dentre outras coisas, de costumes, princípios e pressupostos particulares (Pugh, 2011). Não deveria haver, assim, um monopólio da cultura arquivística pelos arquivistas, pois a cultura é viva, dinâmica e interacional, devendo ser democratizada de acordo com a previsão legal e constitucional.

Pensar a cultura arquivística contribui para a transposição de limitações sobre o reconhecimento de que as práticas arquivísticas são culturalmente incorporadas (Pugh, 2011); logo, cabe sublinhar que, a partir do escopo daquilo que se considera cultura arquivística, caracterizada mais adiante, é possível pluralizar as perspectivas sobre os arquivos, ampliando campos de atuação das instituições, dos arquivistas e dos seus multiusuários, conforme conceituado por Siqueira.

Quanto maior a complexidade do acervo ou dos documentos de uma organização, mais elementos devem constituir a cultura arquivística, de modo que o fazer, o gerenciar e o dirigir são práticas de alta complexidade, demandando mediações e atualizações contínuas dos arquivistas. No caso de manuscritos, por exemplo, o mediador pode ser o arquivista-paleógrafo.

Vale destacar que dentre os documentos produzidos entre os séculos XV e XVIII, que se acham em território nacional, no Arquivo Nacional do Brasil, por exemplo, há manuscritos iluminados, cabendo também a mediação simbólica ou mediação dos signos da linguagem escrita, considerados objetos da paleografia, entendida como uma disciplina que se relaciona com a arquivística.

A falta de mediações arquivísticas acarreta o ocultamento e o confisco dos arquivos caracterizados por Jammet (2007) apud Aldabalde (2018b), como no caso de informações manuscritas inacessíveis por falta de leitura paleográfica ou da inexistência de instrumentos de pesquisa, impossibilitando o acesso à informação.

Uma cultura arquivística está ligada também com a capacidade de resposta de uma organização pública em relação a uma demanda legal de atendimento aos termos da Lei de Acesso à Informação (LAI), lei n. 12.527/2011, ou mesmo como promotora de uma iniciação em uma cultura arquivística construída junto à sociedade, ainda que de maneira básica, por meio de cartilhas, projetos, visitas e campanhas com participação popular, isso desde a sua concepção.

No artigo 41 da LAI, consta que o Poder Executivo federal designará órgão da administração pública federal responsável “I - pela promoção de campanha de abrangência nacional de fomento à cultura da transparência na administração pública e conscientização do direito fundamental de acesso à informação” (Brasil, 2011).

Até hoje esse órgão não foi definido, impactando a iniciação à cultura arquivística nacional, particularmente na sua interculturalidade entre cultura da transparência e cultura do acesso à informação. Por imperativo normativo, caberia aos arquivos públicos essa missão, talvez conduzida pelo Conselho Nacional de Arquivos (Conarq). Além de campanhas de difusão que informem os públicos a respeito de práticas que constituam a cultura da transparência, que não é imediatamente apropriável, demandando também um movimento proativo democratizador, como prevê a referida lei, defendemos aqui que a mediação cultural é adequada para somar ao atendimento desta demanda. Para além de campanhas institucionais, a interculturalidade teorizada por Pugh (2011) encontra-se no cotidiano, porque, em termos práticos, a cultura arquivística também é constituída de objetos (materiais e imateriais), tais como a gestão de documentos, considerada aqui um processo arquivístico que impacta as culturas da transparência e do acesso à informação e aos arquivos como bens culturais de livre fruição.

Logo, a partir de mediações arquivísticas, parece ser possível viabilizar a apropriação das culturas (arquivísticas, no caso do acesso e da transparência) e a gestão de documentos, a fim de fazer cumprir a legislação quando se trata de informações arquivísticas (information from archives). Assim, como dito, parece evidente a interculturalidade da cultura arquivística (Pugh, 2011), principalmente no escopo da LAI, em relação ao campo das culturas da transparência e do acesso, pois delas depreendem práticas, representações e objetos da cultura arquivística, tais como ferramentas arquivísticas, sistemas arquivísticos e processos arquivísticos, além de campanhas de difusão, projetos de mediação cultural e eventos de conscientização.

Os arquivos estão, assim, em tensão entre memória e gestão, sem necessidade de um vencedor declarado, pois se complementam nessa dupla função. Um documento, para ser acessado, difundido e mediado, deve ter uma gestão e organização prévias, que também compõem as culturas sociais e organizacionais, quebrando o paradigma desse falso antagonismo que favorece o poder público descompromissado e não a sociedade.

Além do cumprimento da legislação referente ao acesso à informação da esfera pública, aos arquivos cabe o atendimento das necessidades informacionais e culturais de seus públicos. Defende-se aqui que há objetos que formam uma cultura arquivística, de modo que os arquivos públicos são, em tese, lugares de concentração de uma elite apontada por Jammet (2007), que, supostamente, detém e define esta cultura.

Entende-se que uma cultura arquivística mínima é aquela que, no contexto social das mais diversas culturas organizacionais e suas respectivas instituições, permite, em seu conjunto, ao colaborador, pesquisador ou cidadão a fruição de seus direitos ou interesses associados aos arquivos. De modo geral, a cultura arquivística propicia a fruição de direitos culturais, sociais, civis, políticos e outros em um ambiente institucional público ou privado, sendo necessária e suficiente para que os colaboradores assumam responsabilidades sobre suas atividades, a iniciar pelo ato de produção dos documentos.

Assim, ocorre que mediar objetos da cultura arquivística sensibiliza os produsers6 (produtores e usuários) quanto aos aspectos práticos do arquivamento, que envolvem a materialidade dos documentos, prevenindo desastres informacionais como a produção de documentos legalmente inválidos e lixos digitais ou documentos sem qualidade arquivística.

A mediação cultural, assim, é um processo mais extensivo do que a mediação arquivística apresentada por Duff (2017), ou seja, é mais do que a facilitação ao uso. A mediação cultural obedece a um modelo triádico analisado em Perrotti e Pieruccini (2014), isto é, trabalha com o trinômio de relações recíprocas que somam o total de seis (mediador-objeto, objeto-mediador, mediador-público, público-mediador, objeto-mediador e mediador-objeto), tendo em vista essas três entidades: mediador, objeto mediado e público. No caso em tela, o mediador é entendido como o profissional arquivista, sobre cuja função propõe-se a reflexão a seguir.

Pensar a prática do arquivista como mediador cultural em uma cultura arquivística mínima e ampliada

É preciso levar em conta que arquivos e arquivistas possuem um papel relevante na formação de uma cultura arquivística (ou na sua não formação), porque os arquivos só fazem sentido àqueles que tiveram contato com uma cultura de arquivo organizacional mínima ou que entendam a cultura arquivística em sentido mais familiar, como a produção pessoal de documentos. Dessa forma, há uma iniciação à cultura arquivística formal, ligada à cultura organizacional e informal, por meio das relações pessoais e comunitárias estabelecidas – que não podem ser ignoradas, mas sim, objeto de políticas arquivísticas em perspectiva inclusiva. No caso das políticas arquivísticas culturais, há um cenário lacunar, sendo necessário sistematizar redes e colegiados que colaborem em sua definição para sua execução.

Para essa iniciação, é preciso um ponto de partida, ou seja, requer-se desvelar se há os elementos da cultura arquivística na relação entre mediador e usuário. Entendendo-se como mediador tanto o profissional de arquivo, ou arquivista, quanto a instituição. Essa iniciação passa incontornavelmente pela valoração dos arquivos, considerando que a cultura arquivística também seja uma cultura.

White (2017) adota um modelo sobre a composição das culturas, cujo centro são os valores. Valores arquivísticos são, respeitando a linguagem e terminologia arquivísticas, pontos de partida para uma mediação que também seja uma iniciação na cultura arquivística.

Embora a gestão de documentos seja parte da cultura arquivística, no núcleo de toda cultura estão os valores, como aponta White (2017); portanto, os valores arquivísticos não deixam de ser centrais e definidores aos objetos records gerenciados e archives a serem permanentemente preservados. Assim, a partir dos valores arquivísticos são definidos os objetos records que se tornam archives por atribuição de valores (históricos, culturais e probatórios).

Sundqvist (2021) indica que não se trata apenas do valor probatório aos archives, mas também aos significados atribuídos que não necessariamente coincidem com a razão original de criação do documento. Valores culturais identificados em Schellenberg (2003) são atribuíveis aos documentos, determinando assim se serão eliminados como records, sem valor secundário, ou preservados como o artefato organizacional identificado pelo termo archives, dentre outras coisas.

Considerando a relação entre o valor probatório como ponto de partida para iniciação à cultura arquivística, o aspecto legal é um dentre outros abordados por Sundqvist (2021). Para a autora, há produção de sentidos e significados sobre elementos do documento. A assinatura manuscrita, por exemplo, é persistente mesmo em um mundo marcado pela comunicação digital, mantendo a validade legal tanto pelo aspecto físico quanto pelo simbólico, pelo fato de o signatário registrar o próprio nome com suas mãos.

A materialidade dos documentos não é constituída apenas por coisas físicas, mas também por elementos imateriais. Sundqvist (2021) destaca as representações legalistas e as representações simbólicas nos documentos como coisas de significância legal, histórica e/ou religiosa para comunidades ou indivíduos. Cartas manuscritas, diplomas, anotações, epitáfios e signos textuais são evocados pela autora para ilustrar que na materialidade também há significância cultural, sob determinados sistemas de signos escritos. Eles validam o valor testemunhal de prova dos registros documentais de acordo com o sistema notarial.

Aos usuários que utilizam archives, cabe considerar quais são os valores arquivísticos secundários que permitiram a não eliminação ou a preservação destes objetos para uso a posteriori, como refletido anteriormente em relação ao “total recall”.

Se os valores arquivísticos estão no centro da cultura arquivística, logo, traça-se um itinerário de iniciação em uma cultura arquivística mínima, considerando as outras camadas desta cultura. Esse itinerário considerado “mínimo” dependeria da mediação artefactual e humana em Sundqvist (2017), e de uma cultura arquivística mínima,7 entendida aqui a partir de White (2017), que corresponderia ao seguinte: a) valores arquivísticos, como exposto anteriormente, mediados pela linguagem e terminologia arquivísticas, assim como os demais pontos de passagem; b) os processos arquivísticos entendidos como “ritos” ou coisas a fazer, tendo em vista as demandas da sociedade; c) os agentes entendidos como os “heróis”, tais como as instituições arquivísticas, os empreendimentos arquivísticos ou serviços arquivísticos; d) códigos arquivísticos, normas arquivísticas, entendidos como os “símbolos” da cultura arquivística a serem interpretados e que empurram ao exterior os outros elementos da camada interior; estão nesta última camada as recomendações, as resoluções, as diretrizes, as convenções, as leis, os protocolos, princípios éticos do arquivista, códigos de ética, declarações e outros elementos que são fundamentais para as políticas arquivísticas.

Esse itinerário para uma cultura arquivística mínima pode ser percorrido parcial ou totalmente, a critério dos mediadores, considerando em que medida é necessário que os usuários e os públicos (internos ou externos) tenham contato com essa cultura.

A esses públicos é devida uma iniciação na cultura arquivística, pois serviços educativos, culturais, de acesso, de gestão de documentos, arquivísticos, enfim, devem ser direcionados a constituir espaços de mediações (da informação e/ou cultural). Esses espaços de mediação nas instituições arquivísticas devem ser territórios de inclusão e de aproximação dos públicos por meio de práticas de mediação cultural ofertadas em uma programação cultural, na qual os públicos participem não apenas da prática como receptores, mas também das fases que a precedem, de sua culminância, de sua difusão e, por fim, da resposta e reação.

Isso parece contribuir para o ciclo de inovação de serviços e de transformação sociocultural, uma vez que o público é protagonista e deve ter parte em fases do projeto de mediação cultural como a elaboração ou as tomadas de decisão sobre as práticas mediadoras.

Exemplos concretos que se relacionam às práticas de mediação cultural e de iniciação na cultura arquivística são: participação dos usuários na concepção e avaliação de serviços arquivísticos; interação em redes sociais; rodas de conversa, residências e intervenções artísticas; consultas públicas a diretrizes e normas; uso coletivo dos espaços físicos das instituições; concursos e maratonas de edições de texto na lógica Wiki; produção audiovisual; teatralização de narrativas a partir de documentos arquivísticos; escrita criativa; contação de histórias; reuniões abertas e participação social por meio de fóruns e colegiados; inclusão das comunidades e grupos historicamente marginalizados na tomada de decisões em relação à eliminação e à doação de acervos; oficinas e diversas outras trocas de saberes e técnicas; mostras de artesanato popular; visitas educativas e culturais; elaboração participativa de cartilhas e dossiês pedagógicos com fac-similares de documentos aos públicos escolares; kits instrucionais ao público interno; jogos lúdicos e recreativos; efemérides históricas; elaboração de programas de história oral para movimentos e grupos sociais que demandam políticas de inclusão social, tais como crianças, adolescentes, mulheres, pessoas idosas, LGBTQIA+, pessoas com deficiência, pessoas em situação de rua, povos indígenas, populações negras e quilombolas, ciganos, ribeirinhos e pescadores, entre outros.

Há que se refletir também acerca das escolhas sobre os documentos a serem utilizados na prática de exposições e produção cultural. Ainda falta na área uma tipologia de práticas de mediação cultural. O que se tentou aqui foi exemplificar as múltiplas possibilidades de iniciação à cultura arquivística por meio das práticas citadas. Assim, cabe aos arquivos públicos e seus profissionais mediar a cultura arquivística e efetivarem a participação de todas as pessoas cidadãs na vida cultural da instituição arquivística.

A partir do exposto, entende-se que cabe enunciar os objetos que compõem as diversas culturas arquivísticas no tempo e no espaço englobando, ao menos: valores arquivísticos, terminologia arquivística, normas arquivísticas, políticas arquivísticas, códigos arquivísticos, doutrinas arquivísticas, serviços arquivísticos, instituições arquivísticas, empreendimentos arquivísticos, funções arquivísticas, processos arquivísticos, ferramentas arquivísticas, sistemas arquivísticos, repositórios arquivísticos, tradições arquivísticas, materiais arquivísticos, equipamentos arquivísticos, prédios arquivísticos, práticas arquivísticas, representações arquivísticas, métodos arquivísticos, teorias arquivísticas, princípios arquivísticos, ontologias arquivísticas, epistemologias arquivísticas, paradigmas arquivísticos, propriedades arquivísticas, qualidades arquivísticas, técnicas arquivísticas, tecnologias arquivísticas, categorias arquivísticas, mediações arquivísticas, conceitos arquivísticos, provas arquivísticas, disciplinas arquivísticas e defesa arquivística.8

Se as práticas arquivísticas são culturalmente incorporadas (Pugh, 2011), logo isso implica gerenciar a cultura de uma empresa ou organização. Do contrário, funcionários produsers podem não ter estabelecido qualquer tipo de senso de valores dos documentos de arquivo, destruindo sua integridade ainda em sua gênese.

Uma “incultura arquivística”, na qual os objetos, os conceitos e as práticas não são apropriáveis, influencia, por exemplo, em questões operacionais e de gestão. Um exemplo é a desvalorização de repositórios digitais que, em vez de contarem com proteção econômica desejável, com base na ISO 16363:2012, conforme exige sua certificação, e por falta de previsão orçamentária, acabam sendo instáveis e pouco confiáveis, reduzidos a meros receptáculos digitais a incluir documentos produzidos sem estrutura e validade legal, com impacto na proteção do patrimônio documental.

Isso se dá também pela falta de cultura arquivística por parte dos trabalhadores que usam documentos como instrumentos laborais. Assim, há chance de ocorrerem óbices, como a falta de adesão a sistemas arquivísticos, não por um problema de natureza tecnológica, mas antes de tudo cultural. Em outros termos: os funcionários podem dissociar arquivos de tecnologias arquivísticas.

Ao arquivista cabe mediar a cultura arquivística na direção de fazer com que práticas arquivísticas sejam incorporadas (Pugh, 2011) na cultura organizacional, aproximando o público interno de um processo arquivístico central, como a gestão de documentos. Como se vê, todos os entes envolvidos devem ser iniciados em uma cultura arquivística, não apenas seus produsers.

Por conseguinte, ao assumir o papel de mediador, o arquivista tem êxito em influenciar a cultura organizacional de maneira mais ampla e impactar as tomadas de decisão, conforme indicam Fleury e Fischer (1996) sobre a figura do influenciador cultural. O arquivista teria, assim, papel estratégico na alta gestão das organizações.

Decorrente do exposto acima, é possível destacar, conforme Cardin (2015), que o arquivista como mediador deve favorecer a apropriação e construção de um espaço de significações, que permita estabelecer um diálogo contínuo entre os tomadores de decisão, os autores ou os geradores dos documentos e os destinatários. Com isso, o benefício da mediação para as organizações parece ser o de criar um ambiente de colaboração em que o público está imerso na prática mediadora e diante dos desafios inerentes aos serviços arquivísticos.

Uma vez que o arquivo não é imediatamente apropriável, Cardin (2015) pontua que, aos arquivistas, é necessário desenvolver habilidades para a mediação, porque as normas, os procedimentos e as políticas demandam por valores civilizacionais mediados pelos arquivos. Valores esses que, para a autora, estão ligados ao respeito à privacidade e à transparência, por exemplo (Cardin, 2015), valores entendidos aqui no campo dos direitos humanos.

A mediação deve ser realizada continuamente, obedecendo ao funcionamento das organizações. Para Fleury e Fischer (1996), há ritos organizacionais gerenciados ao bem da gestão, vide os processos de introdução (ritos de iniciação), de treinamento (ritos de passagem), de reforço da identidade empresarial (ritos de confirmação), de práticas de desenvolvimento da organização (ritos de reprodução), de efemérides natalícias (ritos de integração) e o processo de demissão ou de despedir (ritos de degradação).

Assumindo uma perspectiva etnográfica, como consta em Fleury e Fischer (1996), ao arquivista cabe contribuir, por exemplo, com a fase da entrevista dos candidatos em processo de seleção de profissionais que lidam com documentos de arquivo, como um dos ritos de iniciação à cultura arquivística. A partir de Gracy (2017, p. 895-898), caberia indagar: você saberia descrever as responsabilidades em experiências passadas que envolvem práticas com documentos, informações e dados com valor de prova? Qual o seu papel como um profissional que trabalha com essas coisas e qual o valor delas para você? Quais experiências com esses objetos de trabalho tiveram um impacto significativo na sua trajetória profissional ou de trabalho?9 Portanto, ainda antes da contratação ou posse é possível cobrar elementos sobre o que aqui se chama de “cultura arquivística”.

Isso posto, vale, portanto, indagar sobre o exercício do poder nos/dos arquivos: em quais ritos os arquivos estão sendo significados para os trabalhadores envolvidos em uma cadeia produtiva informacional e como os arquivos têm sido valorizados? Estão esses funcionários significando a natureza da realidade arquivística no cotidiano? Estão reconhecendo sentidos e valores dos documentos e do seu papel como mediadores da informação? Estão compreendendo processos cibernéticos da administração como os controles internos ou serviços, tecnologias e/ou setores de arquivos ou gestão de documentos enquanto necessários em seu labor?

As organizações estão formando uma cultura arquivística mínima aos seus colaboradores, sócios, clientes, usuários e/ou públicos? Em que medida os gestores mobilizam uma cultura arquivística para solucionar problemas? De modo mais amplo, no âmbito da gestão das instituições arquivísticas nacionais, cabe perguntar ainda: os brasileiros possuem uma cultura arquivística mínima que permita a apropriação dos arquivos como provas de ações para acompanhar os atos administrativos de seus governantes?

Essas questões são postas a fim de provocar um pensamento sobre o poder dos arquivos, seus gestores e trabalhadores enquanto mediadores e seu papel sociocultural, por formar uma cultura arquivística. Fleury e Fischer (1996) pontuam que esses ritos, somados aos valores e artefatos culturais visíveis, são formadores da cultura.

Estão se formando culturas de arquivo, da transparência e de acesso no país? No Brasil, no atendimento da legislação de acesso à informação, parece ser necessário deter um mínimo de cultura sobre information from records ou information from archives, para proceder a classificação quanto ao sigilo, notadamente: ostensivo, em que todos os cidadãos possuem acesso; reservado, com acesso restrito apenas para alguns funcionários; secreto, quando há possibilidade de acessar mediante credenciamento e registro de acesso para uns poucos designados para tanto; e, finalmente, ultrassecreto, restrito à alta patente das Forças Armadas e à cúpula do sistema de governo que possui as credenciais necessárias para verificar os segredos de Estado.

Recentemente, tem sido bastante discutido o sigilo dos documentos públicos produzidos pela presidência da República do Brasil durante o governo de Jair Messias Bolsonaro (2019-2022), em especial a restrição de cem anos usada de forma indiscriminada, em um país cuja LAI determina transparência e acesso. Portanto, a lógica de Cardin (2015) se aplica ao Brasil de modo que, ao arquivista, cabe mediar não apenas o documento ou a informação proveniente do documento, mas esses valores institucionais ligados à transparência. Somou-se a essa discussão o ocultamento de registros e a apropriação privada de forma indevida de bens doados em caráter público, que deveriam compor o acervo da Presidência da República. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) se posicionou diante dos presentes recebidos por Jair Messias Bolsonaro e a primeira-dama Michelle Bolsonaro, por meio do ministro Alexandre de Moraes:

Os elementos de prova colhidos demonstraram que, na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, foi criada uma estrutura para desviar os bens de alto valor presenteados por autoridades estrangeiras ao ex-presidente da República, para serem posteriormente evadidos do Brasil, por meio de aeronaves da Força Aérea brasileira e vendidos nos Estados Unidos, fatos que, além de ilícitos criminais, demonstram total desprezo pelo patrimônio histórico brasileiro. Na administração do ex-presidente da República, o Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH) atribuiu presentes de altíssimo valor, dados por autoridades estrangeiras, ao acervo privado do presidente da República, adotando uma interpretação que contraria os princípios que regem a administração pública e a teleologia do acórdão proferido pelo TCU, que teve a finalidade, atendendo ao interesse público, de esclarecer e ratificar o entendimento de que a regra é a incorporação ao acervo público da União. (Agência Brasil, 2023, grifos nossos)

De acordo com o ministro, os presentes de governo estrangeiros deveriam ser incorporados ao GADH, setor da Presidência da República responsável pela sua guarda, e não poderiam ficar no acervo pessoal de Bolsonaro. Como visto, a discussão sobre patrimônio documental e poder do Estado está na ordem do dia, urgindo aos arquivistas reavaliarem seu papel não só cultural, mas político diante da sociedade.

Tendo como núcleo da cultura arquivística seus valores, o profissional de arquivo pode começar essa iniciação por documentos com o chamado “valor primário”, pois esse é inerente ao campo da pragmática dos arquivos. Isso é relevante para culturas organizacionais, porque os documentos arquivísticos (records) nascem com valor administrativo e/ou operacional por registrarem as atividades que fazem as instituições funcionarem.

Sendo assim, são os registros gerados para auxiliar as rotinas administrativas em uma dada gestão, seja de atividades finalísticas ou não. Presentes recebidos por um presidente no exercício de suas funções devem, assim, compor seu acervo público, não privado, por seu valor primário. Portanto, ao menos a princípio, funcionários devem identificar esse valor administrativo.

Porém, os neófitos na cultura arquivística necessitam de uma mediação e cabe ao arquivista iniciar duplamente esse não iniciado, tanto na cultura arquivística quanto na cultura organizacional.

Sundqvist (2017) aponta que é o arquivista o principal mediador que interpreta aquilo que anseiam os usuários para encaminhar as demandas aos pontos de acesso por meio de artefatos (mediação artefatual) derivados da classificação arquivística, tais como instrumentos de pesquisa e sistemas de informação.

No interior das organizações, o arquivista assume seu papel sociocultural de mediador e influenciador, junto aos setores de pessoal ou recursos humanos, ou ainda outros que atuem no campo da cultura organizacional, destacando-se as responsabilidades do novo funcionário produser (produtor-usuário).

Em uma roda de conversa mediada pelo arquivista-mediador, durante uma visita, é possível recorrer ao exemplarismo, como está sendo feito aqui. Nesse encaminhamento, os ditos “processos de solicitação de compras” podem ser utilizados para representar o valor administrativo. O mediador precisa salientar que não é possível realizar a aquisição daquilo considerado relevante para que se desempenhe alguma atividade institucional sem os documentos requeridos para tanto, em um checklist documental.

Ainda ao pensar a visita ao arquivo como prática de iniciação na cultura arquivística, cabe uma reflexão sobre as implicações de reconhecer e atribuir valores aos arquivos: estes processos precisam ser guardados por até cinco anos e podem ser eliminados? O que é uma tabela de temporalidade? Por que isso é importante? O que é uma Comissão Permanente de Avaliação de Documentos (Cpad)? Qual a sua atribuição, composição e propósito? Poderia o arquivista sensibilizar esse colaborador na visita a tal ponto que ele queira fazer parte da Cpad?

Traduzir a linguagem arquivística para não iniciados é uma das principais práticas de iniciação à cultura arquivística. Muitas vezes, o arquivista se deixa enredar em sua linguagem técnica, por diversos interesses, até corporativos, sem mediação e aderência sociais, quando, de forma espúria, isso se contrapõe à lógica da transparência e do acesso, que deveria nortear suas ações. Além disso, como propugnado por Irishkanova (2004), a empatia é elemento constitutivo da mediação, pois, do contrário, corre-se o risco de não se obter êxito na prática mediadora, porque sem práticas empáticas o público pode ficar alheio aos objetos e desenvolver rejeição ou não aderir à cultura arquivística; ou ainda ser indiferente a ela, do mesmo modo que o mediador pode ser indiferente no trato com os públicos. A empatia está, assim, vinculada a estratégias de iniciação diretamente relacionadas aos direitos humanos. Para efeito de exemplo, basta considerar que, ao tratar de uma prática de mediação com documentos de pessoas escravizadas, o mediador não deva ser racista de modo velado ou alheio às emoções, pensamentos, palavras e atitudes do público face a questões sensíveis que envolvam estes documentos mediados, tais como o racismo estrutural.

Ainda em referência a uma roda de conversa e uma visita de boas-vindas a colaboradores em um arquivo, para desenvolver uma cultura arquivística “mínima”, o arquivista-mediador pode recorrer a documentos pessoais tais como certidões de nascimento, diários, agendas, bilhetes, cédulas de identidade, cadernetas, cartas de amor, currículos, recibos, diplomas, faturas, boletos de cobrança, declarações, históricos escolares, fotografias, vídeos e outros.

Entre as ideias que podem circular nessa prática de roda de conversa sobre os arquivos há um argumento potente, em Escóssia (2019), que merece ser considerado por seu potencial de sensibilização e exemplaridade: um indivíduo adulto sem certidão de nascimento, sem identidade e sem cadastro de pessoa física é fadado a ser excluído dos sistemas ‒ de saúde, educação, moradia, trabalho e tantos outros. Assim, não desfruta dos direitos quem não consegue comprovar fazer jus a eles por meio de documentos arquivísticos.

Após essa primeira apresentação, pode ser levantada a seguinte questão ao debate: “afinal: o que prova a identidade?”. Neste momento, o arquivista, como mediador da cultura arquivística, oportuniza a construção de um diálogo sobre como o arquivo constitui-se prova da identidade subjetiva; esse documento é prova de atividades e reflexo do controle do indivíduo pelo Estado e, ao mesmo tempo, fonte de direitos fundamentais do sujeito controlado, conforme Bruno Latour (2001).

O arquivista como mediador extrapola a relação entre documentos de arquivo e direitos humanos. Assim, discutir se a cédula de identidade é prova da existência de uma pessoa ou não é também uma prática de iniciação à cultura arquivística. Ainda nesse sentido, compartilha-se a ideia de que membros das atividades de inteligência de contraespionagem podem ter documentos de identidade expedidos com autenticidade pelo órgão emissor oficial.

Portanto, ainda no âmbito da roda de conversa e da mediação cultural pelo arquivista, a dialética possibilita que os participantes reflitam sobre a carteira de identidade como prova das atividades estatais, inclusive aquelas não transparentes aos cidadãos, no caso da espionagem e contraespionagem. Assim, as cédulas de identidade são provas da existência de determinadas funcionalidades do Estado, tendo em vista diversos interesses ostensivos ou secretos. Essas funcionalidades revelam-se não apenas na esfera civil, mas também na militar e de inteligência, pois operações militares que abarcam a segurança do Estado fazem uso de identidades e cadastros de pessoas físicas de modo secreto.

Além disso, no fluxo dessa prática de mediação cultural, uma das constatações passíveis de serem alcançadas é de que os documentos podem ter múltiplos originais autênticos e que não coincidem com a verdade, como no caso da identidade civil e da identidade militar. Vale incluir nessa reflexão que é preciso inscrever os homens através da identidade militar para que sejam conscritos, ou seja, convocados para servir o Estado por trabalho involuntário ou compulsório, de acordo com Lubar (1999), a partir de reflexões de Bruno Latour. Por isso, a conscrição só é possível mediante a inscrição nos arquivos e, nesse sentido, o valor probatório é também exercício de poder de uns sobre outros.

Com isso, uma prática de mediação, como a roda de conversa, apresenta o valor probatório como algo elementar da cultura arquivística e incontornável para que exista senso de dever ou responsabilidade do Estado sobre os documentos de arquivo. Nessa prática, também pode-se acrescentar as qualidades arquivísticas ligadas ao valor probatório tais como autenticidade, integridade e confiabilidade, demonstrando que é obrigação do arquivista preservá-las para que o valor probatório se mantenha, tarefa essa que demanda colaboração.

Nessa prática de mediação cultural, é possível indagar: há documentos que não podem ser eliminados? Caso essa prática ocorra em arquivos públicos, será necessário o esgotamento dos valores primários, sendo peremptório introduzir o grupo de valores alocados no chamado “valor secundário”. Não é imediato que as pessoas saibam que, caso seja identificado o valor secundário em um conjunto de documentos, ele não poderá ser eliminado, sob penalidade administrativa e legal.

Ora, é justamente por isso que os agentes envolvidos na mediação dos valores arquivísticos devem associar as implicações práticas desses valores às funções arquivísticas, tais como a avaliação de documentos. O processo mais relevante para essa avaliação é o de tomada de decisão sobre quais documentos serão valorados com valor secundário, definidos legalmente pela Cpad da instituição.

No Brasil, infelizmente as regras ao setor privado não obrigam a custódia permanente, mas para os órgãos públicos é preciso certificar-se de que os documentos a serem eliminados não possuam nenhum outro valor para além dos valores primários. Portanto, por exclusão do valor secundário, já é possível conduzir a eliminação dos documentos. Como fazer o cidadão ou funcionário se apropriar dos valores arquivísticos a fim de que possa colocar isso em prática? Antes de tudo, inteirar-se da importância dessa valoração, que impacta diretamente a representatividade social do patrimônio documental. Cabe reiterar que isso ocorre por práticas de iniciação à cultura arquivística.

Sem saber os valores primário ou secundário dos documentos, a sociedade não verá sentido em proteger, sensibilizar, tratar, acessar, difundir e usufruir os arquivos e seus documentos. Não é sem motivo que a mediação cultural é uma categoria fundada no âmbito institucional de arquivos, museus e bibliotecas para a formação de públicos. Sem pensar em seus públicos, essas instituições não mediam e não se comunicam com seus principais interessados, ocasionando desprestígio social, baixos indicadores e provisão orçamentária. Isso fragiliza sua missão e seu potencial de alcance junto à sociedade.

Ainda em relação às possibilidades dos valores arquivísticos como objetos da mediação cultural, vale considerar em termos práticos que, somado aos valores probatório, legal, administrativo e operacional, ainda é preciso levar em conta o esvaziamento de mais valores: os chamados “valor contábil” e “valor fiscal”. Eles são apresentados em arquivos que foram expedidos para registrar/provar transações financeiras e/ou prestar contas a alguém ou alguma instituição hierarquicamente superior e ao próprio povo, com seu papel fiscalizador, como organizações não governamentais.

Cabe destacar que há outros valores arquivísticos além do probatório, como Schellenberg (2003) menciona, os valores culturais e histórico. Somado a eles estão os valores informativo e científico.

Nos valores culturais há também os formais ou estéticos (Meneses, 2009). São valores que podem ser facilmente identificados em documentos atuais. Quando se trata de arquivos mais antigos, cabe observar as iluminuras e outros elementos intrínsecos. Há, portanto, uma hierarquia em que as normas e políticas arquivísticas direcionam não apenas as práticas, mas também os valores. Considera-se que essas normas e políticas são símbolos de expressão da cultura arquivística.

Cabe notar que o arquivista também pode ser mediador da cultura arquivística acadêmica. A cultura arquivística, portanto, acha-se não apenas na academia, mas também em arquivos como espaços de produção cultural, de modo a haver troca não apenas com arquivistas como também com outros profissionais e comunidades. Não é por menos que Schneider (2001) dedica um estudo à cultura arquivística e seu impacto nas artes performáticas. Nesse sentido pode-se pluralizar o arquivo, conforme indica Pugh (2011). Com isso, o arquivista enriquece os valores atribuídos aos arquivos como objetos, contribuindo para a valorização e a exploração dos arquivos.

No campo da exploração ou uso comercial, Aldabalde (2018a) aponta produtos que foram elaborados a partir dos arquivos ‒ infoprodutos. A utilização a posteriori desses documentos tem resultado em produtos fonográficos (CDs), audiovisuais (DVDs), objetos de decoração, material para escritório, material escolar, acessórios, roupas, utensílios, artesanato e outros produtos elaborados a partir das representações dos documentos de arquivo. Para as empresas privadas, o valor econômico dos documentos seria relevante, e aos arquivistas que atuam no setor privado isso parece ser estratégico.

Quanto vale ou qual é a avaliação em termos pecuniários de um conjunto de documentos? Essa é uma questão que uma empresa de seguros faz ao detentor do acervo. O arquivista não tem nada a dizer sobre isso? Não cria um espaço de mediação e diálogo sobre o assunto? Não poderia o arquivista fazer a ponte entre a cultura arquivística organizacional laboral de seu local de trabalho e a cultura arquivística acadêmica e empresarial? Aos arquivistas que atuam no setor privado, isso seria relevante, inclusive para determinar o valor e precificar os serviços arquivísticos, ou ainda apontar indicadores de desempenho aos arquivos.

Considerando tudo que foi exposto, outra prática de iniciação à cultura arquivística é a produção e circulação do “kit RM”, 10 em Debled e Claverie (2018), que é um exemplo de apropriação ao uso eficaz de artefatos da cultura arquivística.

O kit records management (kit RM) é uma elaboração coletiva em busca de aproximar e sinalizar/significar aos funcionários produsers seus papéis como coparticipantes da gestão documental. Com isso, introduziram-se representações da cultura arquivística sob a forma do kit, considerando o impacto para as práticas do cotidiano na instituição.

Isso é relevante em realidades nas quais o produser (produtor-usuário) não possui uma cultura arquivística mínima e, com isso, a produção perde de vista qualidades e valores dos documentos gerados, impactando a eliminação e a preservação. Desse modo, parece cabível que arquivistas façam algo no campo da mediação, como nesse kit.

A categoria que define o campo dialógico dessa atuação do arquivista parece ser a mediação, pois oportuniza aos funcionários produsers apropriarem-se da cultura arquivística, participando ativamente da formação do patrimônio documental desde a criação de documentos nos sistemas digitais. Aliás, Debled e Claverie (2018) desenvolveram artefatos culturais, como um origami, para representar as práticas que dependem da participação ativa dos produtores-usuários na gestão documental.

No contexto do chamado kit RM, foi utilizado um artefato, um origami, com cores chamativas para representar atores, ferramentas e condições. Essas últimas formam o círculo mais amplo marcado por expressões como: boas práticas de gestão de documentos digitais; racionalização da classificação por sistemas informáticos (topologia em árvore); nomeação dos participantes presentes na gestão de documentos; organização dos arquivos em papel; formação e sensibilização ao arquivamento; principalmente para os aspectos da materialidade dos documentos digitais desde a produção até a preservação.

O papel sociocultural dos arquivos e a mediação cultural na sensibilização dos usuários

As práticas e as representações criadas por Debled e Claverie (2018) são relevantes como referenciais ao arquivista e aos arquivos em seu papel sociocultural e na sensibilização sobre aspectos pragmáticos da materialidade dos documentos, como registrar, classificar e organizar com produsers ou aqueles cuja participação é facultada. Assim, parece ser necessário que se abram espaços à criatividade e ao diálogo nos arquivos para que essa sensibilização ocorra. Aliás, é na comunicação que os autores se reconhecem, pois, valendo-se de práticas pertencentes ao terreno da cultura arquivística, fazem as representações circularem de modo apropriável para desenvolver sensibilidades nos produtores-usuários.

Posto isso, ao arquivista como mediador cabe assumir seu papel na mediação artefactual junto aos usuários, conforme aponta Sundqvist (2017), e o poder de sensibilizar os produsers acerca da materialidade, significância, valoração e identificação do lugar social dos documentos, dos arquivos e seus usuários.

Em termos práticos, isso significa iniciar os sujeitos na cultura arquivística, como também sensibilizá-los à participação na concepção desses artefatos ou infoprodutos. A partir da reflexão sobre a automação da mediação proposta por McClausland (2011), reconhece-se que a organização carece de um sistema inteligente para mediar dados. O arquivista deve controlar os requisitos e também, após a implantação deste sistema, enriquecê-lo com ontologias digitais que melhorem o desempenho da inteligência artificial, calibrando instrumentos semiautomáticos para a recuperação de informação, tendo em vista garantir que esse processo de mediação semiautomática preserve a fonte confiável, íntegra e autêntica, ou seja, preserve as qualidades arquivísticas.

Ao arquivista que atua no setor público é possível mediar a cultura arquivística e a cultura acadêmica, no sentido de provocar mais diálogos sobre o valor secundário dos documentos de arquivo. Nesse sentido, os arquivos com valores culturais são debatidos com a sociedade, de modo a permitir a fruição dos documentos arquivísticos como bens culturais.

Um exemplo de sensibilização dos usuários seria o uso de manuscritos iluminados no Arquivo Nacional na atividade de colorir fac-similares, voltada ao público escolar, reproduzindo as cores e formas identificadas nesses documentos. O resultado dessa prática pode ser compartilhado com familiares, comunidade escolar e outros entes, como internautas,11 potencializando seu uso por meio da circulação.

Ainda no campo da sensibilização dos usuários, especialmente do público escolar, a mediação cultural faz parte de uma ação estratégica de aproximação do público escolar com o universo dos arquivos” (Tebyriçá, 2018, p. 30). Tebyriçá destaca que as ações educativas pretendem “ativar uma memória afetiva e despertar a curiosidade do visitante, fazendo-o sentir-se parte dessa cultura e reconhecendo como seu o patrimônio documental.

Cabe lembrar que os valores culturais estão na cultura arquivística acadêmica em Schellenberg (2003) e a partir de Meneses (2009), sendo possível definir quais são esses valores tendo em vista os seguintes: valores estéticos ou formais, éticos, emotivos, pragmáticos e cognitivos. Tais valores parecem ainda não terem sido incorporados à cultura arquivística nacional.

Se, por um lado, o público acadêmico parece mais predisposto à sensibilização, por outro, é necessário pensar as práticas de mediação cultural para além dos iniciados. Assim, os documentos arquivísticos como objeto de atribuições de valores não devem ser apenas objeto de pesquisadores, arquivistas e de uma elite que domina a cultura arquivística, mas de interesse público, pois o valor secundário implica, em termos práticos, o archive ou arquivo permanente, que na maioria das vezes possui um uso não restrito, ao passo que, de arquivos correntes, apenas usuários autorizados fazem uso. Portanto, entre o record e o archive há tempo transcorrido, somado aos valores ou à valoração, e isso impacta a acessibilidade desses documentos.

Portanto, o arquivo como objeto é plural, não é apenas fonte para a historiografia ou para a administração, porque está no rol de produtos e instrumentos da cultura social. Aliás, o que define o archive como objeto dos métodos históricos ou o record da gestão de documentos são os valores arquivísticos atribuídos a eles.

Parece ser emergente, na sociedade do conhecimento (Nesmith, 2010), que os arquivistas assumam o papel de mediar objetos da cultura arquivística organizacional e incorporem práticas arquivísticas para atender aos desafios cotidianos, como a gestão de riscos informacionais, entre outros.

O exercício de poder de mediar (informações e culturas) das instituições arquivísticas não é apenas restrito aos públicos internos, ampliando-se aos públicos externos, com impacto na realidade social por sua ausência ou presença. A não apropriação de uma cultura arquivística mínima resulta no desequilíbrio democrático entre os governantes e os governados.

O Estado já controla os cidadãos por meio dos documentos de arquivo e outros dispositivos, de modo que cabe, idealmente, em contraparte, em uma democracia participativa, que os civis atuem ativamente na vida político-administrativa, por meio do uso dos arquivos para cobrar, observar, fiscalizar, controlar, auditar e colaborar com os órgãos competentes. E, para além de todo esse arcabouço sociopolítico, apropriar-se de seus valores culturais, usufruindo espaços e documentos arquivísticos como parte da vida comunitária. Isso só se torna possível a partir de uma mediação cultural orientada pelos eixos da democracia cultural e da democratização, conforme Jammet (2007), da qual decorrem a sensibilização dos usuários e sua iniciação à cultura arquivística.

Olhando um ambiente antidemocrático, como uma ditadura, o trabalho de Weld (2014) evidencia, assim como no passado, que existe hoje o desenvolvimento de uma cultura arquivística na administração pública. O autor destaca, contudo, que a instituição arquivística pode ser intimidadora, guardar segredos do Estado como crimes hediondos contra as pessoas, e, por isso, necessita de compromissos com os direitos humanos. Ou mesmo manter práticas discriminatórias, por meio de linguagem documentária desatualizada e descontextualizada, como anteriormente citado.

No contexto atual, Monteiro (2022), pesquisador e usuário de arquivos, reforça que há carência da dita “cultura de arquivo” entre usuários e isso parece impactar negativamente os resultados com perda informacional para as pesquisas e, por extensão, para a sociedade. O autor não aponta caminhos para uma definição do que seria a dita “cultura de arquivo”, mas evidencia sua necessidade.

O que os arquivos públicos têm com isso? Em primeiro lugar, a Carta Magna de 1988 consigna direitos culturais e o direito à cultura, obrigando o poder público a garanti-los: os direitos culturais12 estão contidos nos direitos humanos, sendo que para Touraine (2006) a sua consolidação é, historicamente, localizada em uma fase posterior à conquista dos direitos políticos e sociais.

Portanto, cabe aos arquivos públicos atender aos direitos culturais, assim como aos informacionais, dos cidadãos. Isso deve ocorrer não apenas por dever constitucional, mas também por anseio da sociedade, pois, desde a redemocratização, os brasileiros reivindicam direitos culturais coletivos. Para atender aos direitos culturais associados aos arquivos, as instituições arquivísticas deveriam implantar o serviço educativo identificado em Camargo e Bellotto (2012).

O serviço de apoio cultural também foi contemplado por essas autoras. Esses serviços (o educativo e o cultural) são, ao menos potencialmente, espaços de mediação cultural ou de mediação da cultura arquivística a serem consolidados em relação aos seus respectivos públicos e usuários. Como exemplo a ser seguido e referência para a área, o Arquivo Nacional do Brasil criou, em 2017, equipes de mediação cultural e educativa, cujas ações aconteciam anteriormente de forma dispersa e sem sistematização.

A Equipe de Educação em Arquivos do Arquivo Nacional tinha a missão de “apresentar ao público suas atividades e seus acervos, mostrando como os documentos de arquivo são parte integrante do patrimônio e memória do país” (Educação em arquivos, 2017 apud Fontes; Saeta, 2018, p. 112).

À Equipe de Produção Cultural competia “propor, organizar e promover ações relacionadas à produção cultural no Arquivo Nacional, ressaltando a importância da instituição como equipamento cultural multiuso, em articulação a práticas de difusão e mediação cultural em arquivos” (Fontes; Saeta, 2018, p. 112). Essa normativa evidencia os arquivistas e profissionais de arquivo como mediadores culturais com a responsabilidade social de mediar os arquivos, seus espaços, acervos e seus produtos em relação aos usuários.

A designação “produção cultural” oportuniza a relação do arquivo com agentes da economia criativa e estava imbuída da lógica propugnada pelo Plano Nacional de Cultura, previsto na Constituição Federal de 1988, conforme declarado à época pelo então diretor-geral do Arquivo Nacional, Diego Barbosa da Silva, quando da formalização dessa equipe,

criada a partir do antigo setor de Promoção Institucional e atende a uma demanda da sociedade civil, apresentada no Plano Nacional de Cultura, aprovado pelo Conselho Nacional de Política Cultural e pelo Congresso Nacional (lei n. 12.343/2010), que reconhece arquivos, museus e bibliotecas como equipamentos culturais [...]. A Produção Cultural vai pensar a gestão da programação cultural da instituição, trazendo o teatro, a música, o cinema e a dança para o AN, além de lançar editais de ocupação artística para democratizar a utilização do espaço público ocioso aqui na instituição” (Entrevista..., 2017).

Essas iniciativas do Arquivo Nacional mostram que a sensibilização dos gestores e do público é imprescindível, até para que haja aderência às práticas de mediação cultural.

Essa mediação é definida em Serain et al. (2016) como essencialmente participativa e orientada à democracia cultural, como pode ser visto em outro arquivo público. Um exemplo da adoção de estratégia de democracia cultural na mediação pode ser visto no caso dos calons, no Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Nesse sentido, Aldabalde (2018b) aponta que há práticas de mediação cultural que aproximaram o arquivo da população de calons (povo rom no seu ramo íbero, chamados popularmente de ciganos latinos), proporcionando a oportunidade de sua participação na instituição arquivística. Esse contato mediado pode ser entendido como o primeiro passo em um itinerário de iniciação na cultura arquivística, a ser ofertado por arquivos públicos, contando com a mobilização dos arquivistas na posição de mediadores.

Grard e Zamant (2018) documentam a pesquisa anual sobre os serviços arquivísticos, consignando que a mediação aos diferentes públicos implica, para as autoras, valorizar os documentos e reconhecer os arquivistas como mediadores. Assim, a mediação também é um serviço arquivístico que abrange os outros dois (o educativo e o cultural), por isso parece relevante destacar as práticas mediadoras como possibilidades pedagógicas para os diversos ensinos ou educações (formal e informal). O próprio arquivista, em seu papel de mediador sociocultural, é o mais apto à sensibilização dos usuários, sendo relevante seu reconhecimento nesse lugar de mediação.

Tais serviços são parte da história dos arquivos públicos, vide Eckhart (1986) apud Aldabalde (2012), que aponta que, desde 1881, há instruções ministeriais na Bélgica requisitando às chefias das instituições de ensino que organizassem visitas às exposições nos arquivos centrais e provinciais. Apesar de terem perdido seu reconhecimento formal, os serviços educativos estão atuantes no Arquivo Nacional do Brasil e promovem um programa de visitas que ampliou significativamente a formação de seu público, sensibilizando diferentes usuários.

Também nessa instituição, o projeto Cartas de Arquivo foi o primeiro criado como uma iniciativa audiovisual de mediação cultural em um arquivo público, potencializando seu papel sociocultural. O projeto representou um marco para a instituição e uma indicação de possível mudança de padrões culturais na entidade custodiadora, para uma abertura à sociedade civil, a começar pela classe artística ainda economicamente marginalizada no país – representada pelos grupos de teatro independentes.

Entre as populações excluídas a serem amparadas pela estratégia da democracia cultural da mediação cultural apontada por Jammet (2007), somam-se às já citadas populações negras favelizadas em situação de risco pessoas com deficiência, ribeirinhos, vazanteiros, travestis, transexuais, população sem-terra, pessoas em situação de rua, extrativistas, pescadores artesanais, pomeranos, LGBTQIA+, refugiados, pessoas idosas ou outras populações marginalizadas.

Além disso, há povos que têm dificuldades no acesso e/ou na iniciação à cultura arquivística, vide quilombolas, guaranis, guajajaras, terenas, tupiniquins, xavantes, yanomamis, pataxós, calons, sintis, manushes, lovaras, kalderashes, xoraxanes, romanisaels e romnichals.

Em qual espaço os trabalhadores e os brasileiros podem ter a oportunidade de iniciarem-se na cultura arquivística em todas as suas diversidades? Se, por um lado, para Klumpenhouwer (1995) a educação foi o caminho para iniciação na cultura arquivística, por outro, não é apenas pela educação formal que pessoas serão iniciadas nessa cultura. A educação formal parece não ser suficiente para atender às partes diversas das populações, que vivem no território nacional e não possuem um sentido ou significado definido para os arquivos por, entre outros motivos, falta de sensibilização dos gestores públicos.

Em termos práticos, no caso dos chamados “ciganos” calons, eles só tiveram contato, puderam dar sentido e participar da vida cultural de uma instituição arquivística, porque práticas de mediação cultural foram realizadas voltadas a esse público. Assim, os arquivos possuem um papel sociocultural e o assumem quando exercem seu poder como instituições mediadoras da cultura.

No campo dos arquivos, ainda não há resoluções do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) sobre sua função cultural e educativa, ou seja, não se acha um documento sequer norteando “o porquê” desses serviços (educativos e culturais) serem oferecidos pelos arquivos, “o que pode” ser promovido em uma instituição arquivística, dadas suas especificidades, e “como” deve ser realizado. Acha-se, assim, vago o espaço para a criação de uma câmara técnica sobre esse tema no âmbito do Conarq, para tratar de educação patrimonial, mediação cultural e difusão da informação como parte das funções arquivísticas contemporâneas ainda sem regulação ou diretrizes definidas.

Esse seria o lastro para um novo ciclo de inovação nos serviços públicos arquivísticos e em sua relação com a sociedade, ainda mais porque tanto o Arquivo Nacional quanto o Conarq passaram a integrar formalmente o recém-criado Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos a partir de 2023.

Sobre “o porquê”,13 defende-se que é papel sociocultural dos arquivos ofertar serviços culturais e educativos para a sociedade. Também vale lembrar que é insuficiente que um arquivo público conte com o sistema de informação e de gestão mais avançado que há no mercado, com o melhor repositório, os equipamentos, os materiais e as ferramentas voltadas ao tratamento dos documentos em si, quando não foram postos nessa equação os seus beneficiários, ou seja, a maioria da população. A razão de ser dos arquivos públicos não é apenas tecno-burocrática, mas também, e acima de tudo, sociocultural.

Assim, parece não ser suficiente disponibilizar todos os documentos da administração pública, quando a maioria das pessoas sequer foi sensibilizada para saber como usufruir dessa documentação por falta de iniciação a uma cultura arquivística. Como tem sido aqui defendido, essa iniciação deveria ocorrer desde os primeiros anos em que as pessoas são introduzidas no universo das coisas humanas, na linguagem e no ensino, pela família e pelo Estado. Campanhas e materiais didáticos e paradidáticos com distribuição massiva via Ministério da Educação seriam infoprodutos a serem adotados como um dos meios para essa iniciação.

Apesar da relevância dessas atividades educativas e culturais e de sensibilização de públicos, reitera-se que ainda não há diretrizes ou recomendações aos órgãos da administração pública sobre esses serviços. Essa lacuna parece ficar ainda maior quando há o fechamento do Ministério da Cultura em 2019, que interrompe o Colegiado Setorial de Arquivos no Conselho Nacional de Políticas Culturais, de maneira que a reconstrução da agenda e reabertura desse colegiado fazem-se necessárias para que arquivos cumpram seu papel sociocultural, tendo em vista o Plano Setorial de Arquivos (2017-2027), que orientou a criação da Semana Nacional de Arquivos.

Nesse plano consta, em sua meta 19, que “até 2022, 100% das instituições arquivísticas estaduais e distrital e 100% das instituições arquivísticas municipais das capitais deverão contar com, pelo menos, duas atividades anuais de difusão de seus acervos e mediação cultural”. (Colegiado..., 2018, p. 18, grifo nosso)

Essa meta, assim como o plano, visava atender às obrigações constitucionais do Estado democrático de direito para com seus cidadãos. Portanto, o sentido da mediação cultural coincide com uma iniciação na cultura arquivística e com a democracia cultural, pois essa se efetiva na sensibilização dos multiusuários junto aos arquivos públicos e à fruição dos bens culturais arquivísticos.

Por isso, defende-se aqui que é devido ao cidadão, por parte do Estado, por meio dos arquivos públicos, o acesso a uma cultura arquivística mínima por essa iniciação. Nesse escopo de atuação, cabe aos arquivistas, enquanto mediadores culturais, ao menos deontologicamente, fazer algo para democratizar essa cultura.

Considerações finais

Buscou-se, assim, subsidiar uma perspectiva sobre a função sociocultural dos arquivos e o entendimento sobre as instituições arquivísticas como lugares de democratização da cultura arquivística e os arquivistas como mediadores. Sob a forma de práticas de mediação cultural, o arquivista realiza seu papel como mediador da cultura arquivística nas organizações. Nesse sentido, uma iniciação na cultura arquivística corresponde a um conjunto dessas práticas, a começar por valores arquivísticos e linguísticos (terminologia arquivística) atribuídos aos documentos como elementos fundamentais. E essa iniciação deve acontecer de forma reiterada desde os primeiros anos de vida, tanto no ambiente domiciliar privado quanto no comunitário, público e social, pois dada a avalanche de informações e documentos aos quais temos que nos relacionar cotidianamente, torna-se difícil dominar os conceitos, ideias e noções do universo arquivístico. Quanto maior é essa avalanche informacional, mais necessárias serão as mediações.

Com isso, pode-se considerar que o papel sociocultural dos arquivos concerne ao atendimento dos direitos culturais e humanos das populações em todas as suas diversidades. Assim, cabe aos arquivos públicos realizar atividades de mediação cultural no cumprimento de seu dever, iniciando os públicos internos e/ou externos na cultura arquivística.

O arquivo como espaço de mediação cultural e o arquivista como mediador assumem, assim, o papel de influenciar dispositivos culturais, sensibilizar as pessoas sobre a materialidade e valoração dos documentos e demais elementos da cultura arquivística, a começar pela produção documental, e impactar as decisões sobre o destino dos documentos e/ou serviços arquivísticos. A cultura arquivística é composta por instrumentos, normas, códigos, sistemas, repositórios, equipamentos, materiais, práticas, representações, tecnologias e outros artefatos identificados nos resultados.

Conforme Sundqvist (2021), pouco se tem produzido a respeito da mediação cultural em arquivos, e pesquisar sobre isso é relevante, pois os arquivos e documentos arquivísticos têm a capacidade de impactar atividades, emoções, estética, memória e aquilo que é percebido, decorrente da atribuição de mediar ou agenciar práticas (socio)culturais.

As culturas arquivísticas não estão isoladas e, como os espaços e os lugares, desenvolvem-se com histórias particulares, acompanhando expansões, retrocessos, crises e/ou subdesenvolvimentos onde são produzidas.

Conhecer as culturas arquivísticas é fundamental para produzir saberes-fazeres a fim de atender os serviços nos arquivos e fora deles, ou em instituições de proteção de documentos (centros de memória, museus, centros de documentação e outras), que contribuem para que a cidadania seja plena. Isso pois a cultura arquivística é aquilo que rege o funcionamento dos dispositivos sociais e culturais dos documentos de arquivo, de suas apropriações simbólicas e dos materiais que norteiam a vida social. O arquivista se insere, nesse contexto, empoderado diante de suas atribuições como mediador dessas relações e do papel sociocultural que as instituições devem ter, não somente para a garantia de direitos, mas para a promoção de valores, identidades e compartilhamento de vivências.

Os arquivos são múltiplos e precisam estar na centralidade das políticas públicas e culturais dos governos e da sociedade civil, como já apontava o Colegiado Setorial de Arquivos. Este colegiado deveria ser recriado e colaborar, junto ao Ministério da Cultura e outros entes ministeriais, na reconstrução do país, sensibilizando gestores e usuários em iniciações à cultura arquivística e atualizando e efetivando o Plano Setorial de Arquivos.

A cultura arquivística dever ser preservada e perpetuada, devendo se imbuir de práticas de mediação, posto que tautologicamente não é benéfica em si mesma. São seus agentes, usuários e produsers que lhe dão sentido. Portanto, os arquivos devem também preservar e difundir suas respectivas culturas organizacionais arquivísticas, não mais em uma lógica excludente, mas incluindo múltiplas culturas historicamente marginalizadas e com pouca representatividade nessas instituições. A primeira tarefa para que isso se efetive é identificar as culturas excluídas ou presentes nas instituições arquivísticas enquanto organizações multiculturais.

Por fim, os resultados almejados em uma iniciação arquivística por meio de práticas de mediação cultural em que os arquivistas possuem um papel sociocultural são no sentido de sensibilizar usuários e gestores em uma troca dialógica necessária para o funcionamento e a modernização desses espaços e práticas, transcendendo a imagem social dos arquivos em seus aspectos cartoriais e como lugares do sigilo, ou das funções de gestão e preservação, abrindo suas portas para a transparência, o acesso, a fruição e a participação popular. Assim, os arquivos seriam apropriados por seus usuários, públicos e suas comunidades, que deveriam ser por eles atendidas, garantindo os direitos culturais previstos na Constituição.

Em resumo, e em termos práticos, os arquivos públicos deveriam ter uma agenda em relação aos usuários, públicos e populações a fim de iniciá-los nos artefatos de sua respectiva cultura arquivística, dentre os quais podem figurar, além daqueles já expostos nesta seção, os seguintes: sistemas informatizados de gestão arquivística de documentos (Sigads), repositórios digitais arquivísticos confiáveis (RDC-Arqs), materiais arquivísticos, equipamentos arquivísticos, prédios arquivísticos, práticas arquivísticas, representações arquivísticas, métodos arquivísticos, teorias arquivísticas, princípios arquivísticos, ontologias arquivísticas, epistemologias arquivísticas, paradigmas arquivísticos, propriedades arquivísticas, qualidades arquivísticas, técnicas arquivísticas, tecnologias arquivísticas.

Tal tarefa é indispensável, pois de pouco ou nada vale aos arquivos públicos possuir os melhores Sigads e RDC-Arqs sem que as pessoas saibam usufrui-los. Aliás, sem uma cultura arquivística ampliada, mesmo com um Sigad que cumpra todos os requisitos, é possível que os usuários gerem lixo eletrônico. Mesmo com sistemas que deem acesso aos documentos arquivísticos, talvez os usuários não saibam encontrá-los ou fazer uso deles. Daí a importância de se fazer a difusão e a mediação cultural de artefatos da cultura arquivística, tais como Sigads e RDC-Arqs ou outros, de conhecimentos, instituições e acervos arquivísticos, por meio de iniciação à cultura arquivística, sendo o arquivista um dos principais agentes a assumir a posição de mediador cultural.

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Recebido em 31/3/2023

Aprovado em 8/8/2023


Notas

1 No dia 18 de agosto de 2023, ao realizar pesquisa dos termos “cultura arquivística”, somente 451 resultados foram recuperados na maior plataforma de busca da internet, o Google, enquanto “archival culture” recuperou 5.820 ocorrências.

2 Tradução livre dos autores de “Archival culture is broadly defined to include both the archival profession, its theory, principles and practice, as well as ‘cultural’ archival practices in the digital age. Archival culture has given rise to the desire to record and save everything for posterity in what has been referred to as ‘total recall’” (Melis, 2010, p. 2).

6 Neologismo que mescla producer e user, ou seja, produtor e usuário. Cunhado em 2005 por Axel Bruns, servindo “para identificar o agente que se responsabiliza por estabelecer diálogos com outras pessoas além de tecer comentários, análises e sugestões. Trata-se de um indivíduo participante do processo de produção, onde depende de agrupamentos para agir numa criação coletiva” (Bório, 2014, p. 21).

7 Os autores defendem a relevância de destacar os elementos que compõem uma cultura arquivística mínima.

8 Archival advocacy é um termo de múltiplos sentidos, isto é, significa defender os arquivos no sentido de realizar uma militância voluntária pelas suas causas, em contraposição ao seu abandono ou destruição deliberada. Possui, assim, um sentido de vivificar e impulsionar tanto os arquivos quanto os conteúdos sobre eles. Esse elemento da cultura arquivística vincula-se com a autopreservação e perpetuação, sendo comum aos países anglófonos junto ao outreach, ou práticas aos públicos externos.

9 Essas questões foram formuladas a partir de uma abordagem etnográfica presente na investigação de Gracy (2017), inicialmente elaborada aos arquivistas participantes de instituições não comerciais e outras.

11 Vide que atualmente é uma prática comum realizar difusão da mediação em “tempo real”, por meio da WebSemântica ou 2.0 em mídias sociais dinâmicas e interativas, sensibilizando a audiência e permitindo que os usuários participem ativamente por meio de comentários e perguntas que retroalimentam e enriquecem o debate, por exemplo. Isso é uma das práticas de iniciação à cultura arquivística.

12 A partir de Meyer-Bisch e Bidault (2014) é possível elencar os seguintes direitos culturais: direito à identidade, direito à participação na vida cultural, direito à língua mãe, direito à livre manifestação/expressão cultural, direito ao acesso aos bens culturais, direito de proteção ao patrimônio cultural, direito à livre criação, direito à fruição dos bens culturais, direito à produção cultural e direito à autoria.

13 Em “o que pode” ser realizado nos arquivos públicos nesses serviços educativos e culturais, é possível incluir as práticas de mediação cultural. Contudo, é preciso ter em vista o alto grau de controle sobre o acesso aos arquivos, as proteções para elevar ao máximo a durabilidade da estrutura da instituição arquivística, o processamento técnico e a preservação de materiais únicos. Esse caráter único da documentação demanda alta segurança aos arquivos públicos, impactando sobre o que é devido ou não fazer em um ambiente institucional com o acesso altamente controlado em termos de práticas de mediação cultural. Portanto, há limites e carência de formulações técnicas para delimitar o que não pode e o que deve ser feito para se fazer cumprir o papel sociocultural dos arquivos.


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