Acervo, Rio de Janeiro, v. 37, n. 1, jan./abr. 2024

Memória e história: potências e tensões nos usos de acervos privados | Resenha

Resistência e preservação de saberes ancestrais

Redes educativas em terreiro de candomblé na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro

Resistance and preservation of ancestral knowledge: educational networks in a Candomblé terreiro in the Baixada Fluminense of Rio de Janeiro / Resistencia y preservación de conocimientos ancestrales: redes educativas en un terreiro de candomblé en la Baixada Fluminense de Río de Janeiro

Alessandra Tavares

Doutora em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Professora da rede de educação básica do Rio de Janeiro e do Curso de Pós-Graduação em História e Cultura Africana(s) e Afro-brasileira(s) do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN) em parceria com o Centro Universitário de Tecnologia de Curitiba (Unifatec), Brasil.

alletavares@msn.com

FERREIRA, Marta. Redes educativas e os cadernos/diários: crianças e jovens na educação de terreiros. Duque de Caxias: Esteio, 2021.


Em meio aos debates sobre epistemologias do Sul, ou seja, análises que contemplem temas, teorias e metodologias partindo de questões desse lugar irradiado por culturas que foram subalternizadas pelas perspectivas ocidentais brancas, cabe destacar a obra de Marta Ferreira com seu texto Redes educativas e os cadernos/diários: crianças e jovens na educação de terreiros. Com a proposta de “sulear” os olhares a respeito dos terreiros de candomblé, a intelectual negra com formação em pedagogia e história e que possui trajetória como professora da educação básica do Rio de Janeiro se encontra com a yakekerê Marta de Oxum na gira identitária que ela mesma nomeia: “candomblecista-professora-pedagoga-historiadora-candomblecista”. É nos encontros de ser que Marta lança seu olhar, para nos apresentar as tecituras que sustentam as redes educativas do seu axé.

Por meio de capítulos iniciados com cantos e aduras (rezas), a poética sensível de quem escreve de um lugar de vivências do axé nos conduz pelos caminhos de sua pesquisa. Na introdução, aberta com um canto para o orixá Exu, senhor dos caminhos, Marta Ferreira pede passagem e apresenta as questões que a motivaram a analisar as redes educativas. Nos situa sobre onde e como elas se desenvolvem e quais pessoas fazem parte da família do axé. Assim como a autora, seguirei pelos caminhos de resenhar seu livro pedindo passagem para Exu: Laroyê!

A obra em questão é fruto da dissertação de mestrado de Marta Ferreira no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Proped/Uerj). Redes educativas e os cadernos/diários: crianças e jovens na educação de terreiros inaugura metodologias de análises de fontes, que dialogam com a relação individual e coletiva das crianças do axé e suas ancestralidades.

A apresentação de Nielson Rosa Bezerra, coordenador do grupo de pesquisa A Cor da Baixada, do qual a autora é membra, insere a pesquisa no espaço físico, político e social de valorização das agências negras que se fixaram, (re)significaram e (re)existiram no território da Baixada Fluminense, no estado do Rio de Janeiro. O Ìle Asé Omi Larè Íyá Sagbá é um terreiro de candomblé da nação Ketu, localizado no bairro de Santa Cruz da Serra, cidade de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense (RJ). O líder espiritual da casa, babalorixá Daniel de Iemanjá, é filho de santo da ialorixá Maria Helena de Iansã, que fez dele herdeiro de seus cadernos/diários. Baba Daniel, em respeito à tradição inaugurada por sua mãe de santo, incentiva o uso de cadernos/diários por seus iniciados em seu terreiro.

Os cadernos/diários, como Marta Ferreira conceituou, são formas particulares de construção de redes educativas que circulam nos cotidianos do Ìle Asé Omi Larè Íyá Sagbá. Ela chama a atenção sobre a existência de várias formas de escritas presentes nos terreiros, como listas de compras, anotações sobre rituais, murais, fachadas etc. No entanto, as redes educativas se configuram de maneira singular, uma vez que são cadernos/diários nos quais são anotadas variadas formas de saberes apreendidos nos cotidianos do axé. A tradição oral de transmissão de saberes e as formas de compreensão são transpostas na forma de códigos escritos nos cadernos/diários.

Sua análise tem como base dez cadernos/diários dos primeiros sete anos de existência do terreiro, produzidos por crianças e jovens filhos de santo, que os atualizam com frequência. A autora se depara com o desafio de lidar com um tipo de fonte dinâmica que está, ainda hoje, em construção, assim como os processos de aprendizagem irradiados pelas redes educativas. Por isso, a proposta de Marta Ferreira é a de identificar e levantar questões que nos conduzam à ampliação das perspectivas sobre a educação, considerando o dinamismo e a diversidade das formas de aprendizagem em terreiros de candomblé e não construindo conclusões fechadas a seurespeito.

Além das questões que envolvem as formas pelas quais os saberes são apreendidos e como eles respondem ao tempo, sua pesquisa está perpassada pela pergunta: “A escrita protege ou fragiliza o segredo?”. É nesse ponto sensível de entender os impactos da escrita entre as formas de consolidar saberes e a preservação do segredo, fundamento da relação com o sagrado dentro do candomblé, que se configura o desafio das redes educativas do Ìle Asé Omi Larè Íyá Sagbá com a contemporaneidade.

Os itãs são analisados pela autora como os fundamentos dos saberes das redes educativas, uma vez que eles são, enquanto “história de orixás”, transmitidos aos iniciados de geração em geração, pela oralidade. São eles que estabelecem as características dos orixás, que determinam ritos dentro do terreiro. Com base nos itãs, os três capítulos do livro apresentam a fundamentação teórica e os debates que a autora identifica na consolidação das redes educativas do axé.

A autora aponta as especificidades e a fluidez das tradições presentes no Ìle Asé Omi Larè Íyá Sagbá, nos oferecendo uma perspectiva mais ampliada sobre os debates a respeito das tradições. Para Marta Ferreira, as tradições não podem ser vistas como engessadas, uma vez que se fazem manifestas na contemporaneidade, em diálogo com o presente. Refletindo sobre a preservação dos saberes que se fundamentam por meio da oralidade, considera a importância de se preservar as práticas, os segredos de axé, e a garantia de que a transmissão desses saberes não seja interrompida pela morte do corpo físico de quem os guarda. Os cadernos/diários podem ser compreendidos como caminhos que apontam para a inauguração de tradições na transmissão de conhecimentos, que se apresentam sempre em movimento e com a função de preservar os saberes ancestrais que fundamentam a cultura do terreiro.

As formas pelas quais os saberes são transmitidos por meio da oralidade são preservadas na produção dos cadernos/diários como fontes históricas que possuem íntima relação afetiva com quem as produz. Embora o enfoque da autora sejam os cadernos/diários de jovens e crianças do terreiro, ela assinala que a prática de escrever o que é ensinado também é feita pelos adultos nos cotidianos do axé. Segundo Marta Ferreira, as redes educativas perpassam gerações de iniciados, inaugurando formas de aprendizagens que promovem a compreensão ativa de quem aprende.

A partir da tradição de produzir anotações sobre as vivências do axé, a relação entre a oralidade e a escrita se consolida na forma das redes educativas da comunidade. As crianças anotam rituais, cânticos, desenham, colam folhas, escrevem sobre os itãs, enfeitam seus cadernos com as cores de seus orixás, trocam experiências, aprendem de maneira dinâmica. Os cadernos não são a reprodução da oralidade, pois são expressões das experiências, do aprendizado coletivo que se individualiza em vivências, em escrevivências que contam a relação das crianças com seus ancestrais. As escrevivências, no sentido cunhado por Conceição Evaristo, são formas de escritas que se baseiam nas experiências de ser negro, como uma construção de aportes que fundamentam a consciência de si. É uma chave que nos ajuda a entender o processo dinâmico de construção e decodificação particular de saberes de matriz africana, na compreensão do mundo no espaçotempo do encontro do ser com sua ancestralidade.

O espaço e o tempo ou espaçotempo, é como Marta Ferreira entende as relações com os saberes tecidos pelas redes educativas do Ìle Asé Omi Larè Íyá Sagbá. Rompendo com a perspectiva engessada que compreende o espaço e o tempo de forma separada e fixa, para considerá-los em movimentos dinâmicos e tudo junto, como defende a autora. O diálogo entre o particular, o singular, é construído nesse espaçotempo de quem é atravessado pelas relações entre o passado, o presente e o futuro, uma vez que a vivência de quem produz os cadernos/diários em seu espaçotempo atual é tecida pela gira de saberes que conduz o diálogo com o passado. Arrisco a dizer que passado, presente e futuro estão conectados pela linha ancestral que fundamenta as identidades individuais e coletivas da comunidade do axé.

Redes educativas e os cadernos/diários: crianças e jovens na educação de terreiros nos ensina que a oralidade não é mera oposição à escrita no que diz respeito ao modelo ocidental de registro de saberes. A oralidade é a expressão primeira da comunicação dos seres humanos com o mundo. É o saber que deu sentido à vida em comunidade. Embora a oralidade seja fundamental à comunicação, foi relegada a um papel secundário diante da valorização da escrita. A perspectiva ocidental branca promoveu a ampla desqualificação das culturas orais com a crença de que a escrita seria uma espécie de evolução que substituiria a oralidade. No entanto, a palavra oral não perdeu sua força, sobretudo para as comunidades de matriz africana. Marta Ferreira nos mostra então que a oralidade e a escrita não são antagônicas – e ambas são formas de organização de saberes que dialogam em cotidianos atravessados pelos espaçostempo, que acolhem, apreendem e ensinam os segredos do axé e as posturas diante da vida.

A palavra que é oralizada em forma de saberes que atravessam séculos, compõe redes de significados construídas pelos jovens e crianças. As redes educativas “tecem” aprendizagem, aproximam os iniciados de sua ancestralidade e fundamentam identidades. O segredo que é transmitido oralmente pelo babalorixá a seu iniciado é preservado em forma de signos particulares anotados nos cadernos/diários. Segundo a autora, seria como a astúcia que engana a morte. Assim como o itã dos Ibejis, a oralidade e a escrita trocam de lugar, como em uma dança que garante a manutenção da vida, de modo que as tradições do candomblé não sejam arrastadas pela morte, junto com os mais velhos que partem para o Orum.

É no quarto capítulo do livro que Marta Ferreira nos brinda com os cadernos/diários em si. Com fotografias dos cotidianos do axé, as imagens dos cadernos e das crianças se materializam sob a forma da “metodologia do caçador”. Inspirada no itã de Oxossi, o caçador de uma flecha só, que mata o pássaro da morte com astúcia, paciência e perspicácia, a autora se propõe a considerar os cadernos/diários como textos dinâmicos, sempre em construção na forma de xirê. O xirê com o significado de dança para os orixás, em roda, obedece à hierarquia entre o mais velho e o mais novo. Assim, com a perspicácia do caçador de uma flecha só, Marta Ferreira organiza os cadernos/diários pela dança dos orixás, na ordem do xirê: Exu, Ogum, Oxossi, Ossain, Omolu, Oxumarê, Nanã, Oxum, Iansã, Logum Edé, Obá, Ewá, Xangô, Iemanjá e Oxalá, do mais velho ao mais novo, compondo seu xirê metodológico. Chama a atenção que alguns orixás se repetem no seu xirê metodológico, uma vez que os donos dos cadernos podem ser consagrados a um mesmo orixá.

Nomeia as sessões de análise dos cadernos com a saudação ao orixá ao qual cada criança ou jovem foi consagrado. Primeiro, seguindo o itã do orixá Exu, que vem na frente de todo ritual feito no candomblé, fazendo a análise sobre as semelhanças encontradas nos cadernos. Quais são as informações e formas recorrentes apresentadas em cada caderno? Dentre as semelhanças, destaca glossários de palavras da língua yorubá e suas traduções, as origens da família de santo de cada um, rituais de limpeza, ebós, rezas. As particularidades em formas de organização e experiências identitárias aparecem na maneira que desenham suas letras, nos símbolos, usos de cores, de sublinhados, itãs e aduras com os quais mais se identificam, codificando as vivências afetivas entre sensações e emoções que as experiências no axé trazem para cada um deles.

Outra questão que indica, em sua análise dos cadernos, é como as redes educativas são circulares, fluindo nos cotidianos do terreiro. Por meio de anotações feitas pelos donos dos cadernos há a recorrência de textos em comum ou semelhantes. Indício que aponta para as dinâmicas dos saberes no processo de aprendizagem, para a construção coletiva do que é aprendido. Como a comunidade do terreiro escuta e anota os ensinamentos do babalorixá, os mais experientes, ou os que possuem mais facilidade em codificar o que ouviram em signos escritos, ajudam os irmãos na compreensão do que foi dito. A cópia de algum trecho de um irmão que estava anotando no seu caderno na hora que a reza ou itã foi ensinado, a busca posterior por mais explicações sobre pronúncia, escrita ou formas detalhadas de como algo funciona são indícios de como a circularidade faz as redes educativas girarem de forma ativa na construção de saberes, na qual quem aprende busca codificar e aprofundar seu próprio aprendizado.

Dentre as particularidades na construção dos saberes, pode haver ainda a questão da função ou cargo que cada um exerce no terreiro, que pode influenciar no que é anotado. Um exemplo que fica latente é o caderno/diário de Patrick de Ogum, que é ogã. A autora percebe que as aduras (rezas) não são anotadas de forma recorrente em seu caderno como no das demais crianças e jovens. Ao ser entrevistado, afirma que talvez seja porque canta junto com os outros ogãs. Para os ogãs, existe maior constância em ouvir as rezas e os cânticos por meio dos ogãs mais antigos, em função da lida cotidiana de seu cargo, que tem como prerrogativa o uso das rezas e cânticos na evocação das divindades do axé, dentre outras funções.

O caderno/diário do ogã Enzo de Xangô apresenta essa mesma particularidade. Em entrevista à autora, afirmou que as rezas e rituais já estavam na cabeça, porque prefere aprender de forma prática. Seu caderno chama a atenção pela possibilidade de identificação com os traços de sua personalidade e as formas pelas quais lida com a aprendizagem. Segundo Marta Ferreira, Enzo de Xangô se mostra bastante calado nas relações em geral, ficando mais acessível após um maior contato. Arrisco dizer que este traço de sua personalidade pode estar presente na forma mais sucinta que codifica os saberes em seu caderno. Uma relação de aprendizado que ele mesmo prefere desenvolver de maneira prática.

Outra questão que perpassa os cadernos é o interesse particular. Marta Ferreira percebe a constância presente no caderno/diário de Antônio Marcos de Oxóssi por estudos sobre as folhas, ervas e seus usos. Neste caderno/diário, a autora encontra descrições, desenhos e colagens de folhas com mais frequência do que nos demais, apresentando um verdadeiro glossário pessoal de folhas e seus usos. Quando terminam os rituais que envolvem folhas que ele não conhece, segundo o próprio, procura os mais velhos para que lhe expliquem a função de cada uma e seus nomes em yorubá.

O compromisso com o segredo, fundamento básico do candomblé, está presente na relação de cada um com seus cadernos/diários, destacando de maneira sutil alguma palavra ou itã, com letras diferentes, cores, tracejados diversos, na tradução de partes das rezas, ou tendo mais de um caderno/diário. Um exemplo que depõe a respeito do processo de construção de saberes e das formas que a comunidade lida com o segredo é o uso de mais de um caderno/diário de Eduarda de Iansã, que os passa a limpo, de tempos em tempos, possivelmente ressignificando o que aprendeu. Segundo a autora, quando recebeu emprestados seus cadernos/diários, deparou-se com uma etiqueta em cima de um dos segredos. Mesmo emprestando seus cadernos/diários à sua yakekerê, portanto, mãe-pequena do terreiro, ela entendeu que o segredo da sua relação com seus orixás deveria ser resguardado, ainda que tenha a consciência de que era muito possível que o olhar de sua yakekerê entendesse muito mais sobre os segredos ali presentes. Já Yasmine de Iemanjá possui dois cadernos/diários, um para uso cotidiano com informações “mais gerais”, que empresta aos irmãos de santo para copiarem aduras, genealogias, dentre outras coisas, e outro caderno/diário com informações somente dela, ou seja, com seus segredos de axé.

Não tenho a pretensão de esgotar os debates do livro de Marta Ferreira neste espaço de resenha, mas de elencar alguns aspectos de sua contribuição para o campo dos estudos sobre as construções de saberes em cotidianos de terreiros de candomblé. Sua pesquisa considera a educação para além da perspectiva formal ocidental adquirida em escolas, ressaltando o dinamismo das redes educativas do axé, no qual o “sujeito” que aprende é também aquele que ensina. São redes formadas pela coletividade, que, na gira, fazem os conhecimentos circularem em forma de experiências vividas que “hibridizam emoções, saberes e proporcionam liberdade na organização dos registros”.

A contribuição de Redes educativas e os cadernos/diários: crianças e jovens na educação de terreiros se estende à relação com as fontes, com o acervo dinâmico que é produzido cotidianamente. É um tipo de acervo/arquivo composto por fontes históricas que são construídas afetivamente e na conexão entre quem as produz e sua relação pessoal com o sagrado. A codificação em forma de signos escritos e formas não escritas de representar o que lhe foi ensinado pela oralidade e a manutenção do segredo do axé são os desafios para a comunidade e para quem a estuda. É um acervo que possui particularidades e sutilezas. Somente um olhar particular e delicado de quem vive o axé pode criar metodologias sensíveis que valorizem as construções dos saberes presentes nas redes educativas do terreiro.

Este livro enfrenta o racismo religioso e o epistemicídio na medida em que rompe com as perspectivas hierarquizantes dos saberes que valoram a escrita como signo civilizador de um povo, amplamente utilizadas para justificar o colonialismo e o extermínio cultural. Propõe metodologias abalizadas pelos saberes do axé para entender o dinamismo das redes educativas de terreiro, tendo como perspectiva que os saberes transmitidos à comunidade de terreiro através da oralidade estão fundamentados no poder da palavra. A palavra dita tem poder e guarda saberes ancestrais, contudo, a oralidade e a escrita se atravessam em experiências e saberes que fluem, fundam tradições e enganam a morte na medida em que salvaguardam tradições no espaçotempo do axé, fazendo a gira de saberes girar.

Recebido em 28/6/2023

Aprovado em 22/2/2024


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