Acervo, Rio de Janeiro, v. 37, n. 1, jan./abr. 2024

Memória e história: potências e tensões nos usos de acervos privados | Dossiê Temático

Inês e Norma

Caminhos cruzados em imagens, arquivo e militância

Inês and Norma: crossed paths in images, archives and militancy / Inés y Norma: caminos cruzados en imágenes, archivos y militância

Thais Blank

Doutora em História Cultural e Social da Arte pela Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne, França. Professora adjunta da Escola de Ciências Sociais e do Programa da Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas, Brasil.

thaisblank@gmail.com

Patricia Furtado Mendes Machado

Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Brasil.

patricia.furtado.machado@gmail.com

Resumo

Este artigo relata um projeto de pesquisa que analisa imagens produzidas no âmbito privado durante o período de 1964 a 1985 no Brasil. As pesquisadoras investigam acervos em busca de registros amadores que denunciem abusos cometidos pelos agentes do Estado. Ao examinar um filme do casamento de Inês Etienne Romeu, elas descobrem um registro de sua libertação da prisão, produzido por Norma Bengell. Por meio das imagens e de seus arquivos pessoais, a trajetória e as redes de relação que aproximaram essas duas mulheres são reconstruídas.

Palavras-chave: arquivos privados; mulheres; autoritarismo; visualidade.

Abstract

This article reports on a research project that analyzes images produced privately in Brazil between 1964 and 1985. The researchers explore archives in search of amateur recordings that denounce abuses committed by the officers of State. While examining a film of Inês Etienne Romeu’s wedding, they discover a recording of her release from prison, produced by Norma Bengell. Through the images and their personal archives, the trajectories and networks of relationships that brought these two women together are reconstructed.

Keywords: personal archives; women; authoritarism; visuality.

Resumen

Este artículo presenta un proyecto de investigación que analiza imágenes producidas en la esfera privada durante el periodo comprendido entre 1964 y 1985 en Brasil. Los investigadores indagan en archivos en busca de registros de aficionados que denuncien abusos cometidos por los agentes del Estado. Mientras examinan una película de la boda de Inés Etienne Romeu, descubren un registro de su liberación de la cárcel, producida por Norma Bengell. Através de las imágenes y sus archivos personales, el artículo reconstruye la trayectoria y las redes de relación que unieron a estas dos mujeres son reconstruidas.

Palabras clave: archivos privados; mujeres; autoritarismo; visualidade.

Introdução

No início do ano de 2018, iniciamos um projeto de pesquisa que tinha como objetivo mapear, coletar e analisar imagens em movimento realizadas no contexto privado, no Brasil, no período da ditadura civil-militar (1964-1985). O projeto se desenhou como um desdobramento das pesquisas realizadas no âmbito dos nossos doutoramentos e permitiu consolidar uma parceria iniciada ainda durante a escrita das teses. A pesquisa Entre o político e o íntimo: o cinema doméstico sob a ditadura militar brasileira nos fez mergulhar em acervos públicos e privados em busca de imagens filmográficas amadoras que denunciavam os abusos cometidos pelos agentes do Estado brasileiro. Dentre as imagens coletadas e analisadas, podemos citar o registro em Super-81 – guardado no Arquivo Nacional – que mostra o período em que a militante política Jesse Jane esteve presa na companhia da sua filha, ainda bebê, material que abordamos em artigo publicado em 2020 (Blank; Mendes Machado, 2020).

Foi também no contexto do projeto que conhecemos o filme amador do casamento da militante Inês Etienne Romeu. Única sobrevivente da chamada Casa da Morte de Petrópolis e primeira presa política condenada à prisão perpétua no Brasil, Inês denunciou os algozes, as torturas que sofreu e os assassinatos que presenciou. Em 1975, ela saiu brevemente da prisão para participar da cerimônia, que foi filmada como prova de vida. Um amigo foi convocado pela família para produzir, com uma câmera Super-8, imagens que pudessem provar que Inês (presa e ameaçada de morte) estava viva e sob a responsabilidade do Estado. Ao iniciarmos a análise desse material, empregamos a abordagem metodológica que foi desenvolvida ao longo de nossas pesquisas e que tem como fonte de inspiração o trabalho da historiadora francesa Sylvie Lindeperg. Neste artigo, não teremos espaço para aprofundar a discussão em torno da construção desse método de análise, tema que exploramos no texto mencionado anteriormente nesta introdução. No entanto, para avançarmos nas questões que nos interessam aqui, é preciso apresentar as bases fundamentais desse processo de pesquisa, pois é justamente pelas mãos do método que seremos levadas a diferentes acervos e, a partir dos materiais encontrados, a interrogar as imagens que habitam o centro deste artigo.

O método que incorporamos defende que uma abordagem complexa das imagens se dá no encontro do olhar historiográfico com a análise estética; assim, buscamos compreender as forças que atuaram no contexto de produção das imagens, ao mesmo tempo em que interrogamos os múltiplos sentidos encarnados por elas ao longo de sua migração no tempo e no espaço. Esse duplo movimento de pesquisa (que se volta para a origem e para o presente das imagens) nos leva a percorrer os mais variados acervos e a entrevistar distintos sujeitos envolvidos não só no contexto de produção, mas também nos processos que permitiram a sobrevivência, a conservação, a publicização e a circulação desses documentos audiovisuais.

Tendo como ponto de partida o registro amador do casamento de Inês Etienne, iniciamos (como estabelece o método que adotamos) um extenso mapeamento de outros documentos produzidos na órbita desse acontecimento, trabalhando com o cruzamento de arquivos e fontes variadas. Nesse percurso, não só nos deparamos com múltiplas representações de Inês (filmes amadores, matérias telejornalísticas, fotografias da polícia política, fotografias de família, entre outras fontes visuais) como também fomos surpreendidas pelo encontro com uma personagem cujas imagens e trajetória não estavam contempladas na pesquisa: a atriz Norma Bengell.

Neste artigo propomos explorar o caminho que percorremos até um raro registro audiovisual depositado na Cinemateca Brasileira e produzido por Norma Bengell: trata-se de um filme Super-8, rodado em 1979, que testemunha o exato momento em que Inês Etienne é libertada da prisão. Tentando compreender como se deu o encontro entre Inês e Norma, chegamos então aos arquivos pessoais das duas mulheres, acumulados ao longo de suas vidas, doados para duas instituições do Estado de São Paulo (Cinemateca Brasileira e Arquivo do Estado de São Paulo) e tornados acessíveis recentemente. Nosso intuito é compreender os modos pelos quais os arquivos pessoais dessas duas mulheres foram constituídos, organizados, que materiais contêm, como promovem tensões entre os limites da intimidade e do interesse público e, por fim, de que maneira podem contribuir para a produção de conhecimento sobre o período da ditadura no Brasil. Pensar, a partir da mobilização desses arquivos, sobre a presença das mulheres e do cinema na construção de memórias do período da ditadura é de fundamental importância para o desenvolvimento e a abertura de novos caminhos para a pesquisa já em curso.

Nesse sentido, abordamos esses arquivos a partir de dois pressupostos. O primeiro ressalta a consciência crítica dessas mulheres: perseguidas de diferentes maneiras pelo regime ditatorial, elas acumulam e preservam ao longo de suas vidas cartas, filmes, fotografias e demais registros da intimidade, a fim de contribuir para o debate público em momentos de ameaça democrática. O segundo pressuposto parte do princípio de que, em contextos nos quais as fronteiras entre a intimidade e a política se confundem, o cinema amador e as imagens de arquivo ganham importância testemunhal e nos permitem produzir olhares sobre a história e elaborar narrativas sobre acontecimentos invisibilizados. Assumindo as lacunas e a sua condição de vestígio, a imagem de arquivo não está apenas voltada para o passado, mas comporta, ao contrário, “uma experiência irredutível do futuro” (Derrida, 2001, p. 88).

Investigando a história das imagens e as imagens de histórias de mulheres, propomos conduzir as leitoras e os leitores pela teia da nossa pesquisa, que é tecida entre arquivos, diferentes regimes de visualidade e redes de solidariedade. Como abordaremos adiante, essas redes, compostas quase exclusivamente por mulheres, são parte constitutiva da organização, preservação e existência dos documentos audiovisuais que analisaremos, assim como do processo de pesquisa. O mergulho que propomos realizar no campo e na experiência empírica da investigação nos permitirá problematizar os processos de constituição e preservação de arquivos pessoais de mulheres e identificar os gestos de opressão misógina e de resistência feminista que sobrevivem nas imagens do passado recente do Brasil.

Nos últimos dez anos, temos nos dedicado a explorar os acervos audiovisuais brasileiros e a refletir não só sobre os sentidos das imagens, mas também sobre sua materialidade: o desgaste provocado pelo tempo sobre a película, as marcas deixadas pelo processo de deterioração, as condições de preservação do material e as possibilidades de acesso. Alguns dos textos que publicamos abordam a complexidade do universo dos arquivos audiovisuais, destacando os desafios enfrentados por pesquisadoras, pesquisadores, conservadoras e conservadores do campo. Nessa pesquisa, além dos obstáculos com os quais já estávamos familiarizadas na lida com os arquivos, adentramos em um campo que possui suas próprias especificidades: os arquivos de mulheres. Como coloca a historiadora Michelle Perrot, “para escrever a história, são necessárias fontes, documentos, vestígios. E isso é uma dificuldade quando se trata da história das mulheres. Sua presença nos é frequentemente apagada, seus vestígios, desfeitos, seus arquivos, destruídos. Há um déficit. Uma falta de vestígios” (Perrot, 2007, p. 21). No caminho que apresentamos aqui, buscamos recolher esses vestígios, preencher lacunas, recuperar e relacionar arquivos, para produzir um novo olhar sobre as imagens e o encontro histórico entre Inês e Norma.

Ligações perigosas



Figura 1 – Norma Bengell e Inês Etienne Romeu. Fundo Inês Etienne Romeu. Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo



Figura 2 – Inês Etienne Romeu e Norma Bengell. Fundo Norma Bengell. Fonte: Cinemateca Brasileira

As duas imagens que abrem essa seção retratam o mesmo momento. A Figura 1 faz parte do fundo doado ao Arquivo Público do Estado de São Paulo em 2008, e tem como titular Inês Etienne Romeu. A Figura 2 está na Cinemateca Brasileira e integra o arquivo pessoal da atriz Norma Bengell, comprado pela instituição no contexto do Programa de Preservação e Difusão de Acervos Audiovisuais (2008/2013), que previa a aquisição de arquivos privados de interesse público e social.2 As imagens materializam as redes e as conexões que entrelaçam essas duas personagens e atravessam a nossa pesquisa. A Figura 2 está na origem das nossas indagações. Antes mesmo que pudéssemos visioná-la, o simples fato de sermos informadas de sua existência seria suficiente para levantar perguntas e nos fazer percorrer os caminhos que descreveremos aqui. Trata-se de um fotograma do filme rodado em Super-8 por Norma Bengell.

Na Figura 1, vemos sua imagem gêmea, produzida no exato momento em que Norma passa para a frente da sua câmera Super-8 com o intuito de imortalizar a pose do seu encontro com Inês. A fotografia, que não possui autoria identificada, é como um espelhamento, e sua existência no arquivo de Inês corrobora a hipótese de que o encontro entre essas duas mulheres merece ser mais bem compreendido. Neste artigo, abordaremos o percurso que nos levou a vasculhar por evidências dessa ligação, mas antes propomos apresentar um breve panorama desses dois arquivos pessoais ainda pouco conhecidos pelas pesquisadoras, pesquisadores e público em geral.

A fotografia de Inês e Norma é um dos novecentos itens que compõem o material iconográfico do fundo Inês Etienne, do Arquivo do Estado de São Paulo. O fundo é constituído de três mil documentos textuais, iconográficos, bibliográficos, audiovisuais, sonoros e tridimensionais produzidos entre 1946 e 2015 que retratam a vida pessoal, profissional e política de Inês. Antes de serem doados, em 2008, ao Arquivo Público do Estado de São Paulo,3 estavam sob a guarda de familiares e amigos.

Os documentos passaram por identificação preliminar e novo acondicionamento no Centro de Acervo Permanente do Arquivo Público do Estado de São Paulo. No parecer sobre a doação,4 a professora Ana Maria de Almeida Camargo relata que o arquivo foi colecionado de modo sistemático por Inês ao longo de sua vida. Consciente da importância de contar a própria história, Inês guardava reportagens, relatórios, depoimentos, trabalhos acadêmicos, processos, noticiários, prontuários, documentos que de alguma maneira contextualizam a experiência dramática vivida por ela. Chama atenção a presença de documentos mais íntimos: telegramas, bilhetes, cartões, fotografias, poemas e cartas, o que é também uma marca de distinção dos arquivos pessoais. No fundo Inês Etienne Romeu, encontramos diversas menções a Norma Bengell. Além da fotografia que abre essa seção, estão presentes artigos de jornal e notícias que mencionam a atriz e as conexões entre as duas titulares. Esses documentos dão testemunho das ligações afetivas e políticas cultivadas por essas duas mulheres.

O fundo Norma Bengell, adquirido pela Cinemateca, encontra-se ainda em processamento e não está, até o momento, aberto à consulta pública. Através da arquivista Gabriela de Queiroz, que, como mostraremos adiante, é uma personagem central para o desenvolvimento da pesquisa e uma colaboradora ativa dessa rede de mulheres que conecta pesquisa, arquivos e imagens, foi possível não apenas acessar o arranjo do arquivo como realizar uma primeira abordagem do material.

O fundo da atriz está organizado em três grandes grupos temáticos: Área de Atuação Profissional, que reúne documentos relativos à carreira profissional e artística da titular, abordando as atividades como atriz, diretora, produtora, cantora, modelo e vedete; Vida Pessoal, em que estão presentes ações que abrangem as relações familiares, sociais e culturais, patrimônio pessoal, leituras e registros memorialísticos; e Militância Política, que agrega atividades de mobilização e engajamento político. O maior conjunto documental corresponde à categoria Área de Atuação Profissional; o menor, à Militância Política. Assim como o arquivo de Inês, os documentos coletados por Norma abrangem sua atuação pública e privada; registros de produção e de divulgação de suas obras se unem a recortes de jornal, cartas íntimas, cartões-postais, fotografias familiares e materiais audiovisuais. Na descrição do fundo produzida pela instituição, encontramos apenas uma menção a Inês Etienne, conectada ao filme da saída da prisão. O filme Super-8 foi colocado no grupo Área Profissional, subgrupo Cinema, e não possui metadados sobre seu contexto de produção, informações que esta pesquisa vem se dedicando a resgatar, com expectativa de que possam ser incorporadas pela Cinemateca.

Os dois arquivos foram acumulados por suas titulares ao longo da vida. O material de Inês chegou ao acervo após sua morte, já o fundo Norma Bengell foi adquirido pela Cinemateca quando Norma ainda estava viva.5 O gesto de acumulação desses documentos pode ser compreendido a partir daquilo que o historiador Philipe Artières denomina “arquivamento do eu”: práticas cotidianas que permitem, através de procedimentos de seleção e exclusão, “arquivar a própria vida”. Esse gesto é dotado também, ainda segundo Artières, de uma “forte intenção autobiográfica” e do desejo de inscrever a si mesma na história (1998, p. 11-34) . Ao reunir e conservar documentos que dizem respeito às suas próprias trajetórias, Inês e Norma revelam uma consciência crítica do papel exercido pelas mulheres e das disputas em torno das narrativas históricas. Dando continuidade a um movimento inaugurado por mulheres que as precederam, elas possibilitam, através do acúmulo e da conservação de suas fontes, sua inscrição na história política e na própria história dos arquivos.

Renegadas por séculos à função de organizadoras de arquivos masculinos, onde se inscreviam a vida dos maridos, filhos ou patrões, as mulheres passaram a reivindicar a preservação das suas próprias fontes a partir da década de 1930, na esteira dos movimentos sufragistas. É nesse período que surgem, na Europa e nos Estados Unidos, duas importantes iniciativas dedicadas aos arquivos de mulheres. Em 1931, a prefeitura de Paris recebeu a doação das coleções reunidas pela escritora, atriz e líder sufragista Marguerite Durand e criou a primeira biblioteca oficial de documentação feminista.6 Um ano antes, na América do Norte, a também escritora e sufragista Mary Ritter Beard idealizou o ambicioso projeto intitulado World Center for Women’s Archives (WCWA).7 O principal objetivo do centro era reunir documentos, textos e artigos produzidos por e sobre as mulheres, publicadas e não publicadas, famosas ou não. A proposta era que historiadores, educadores, políticos e estudantes pudessem então estudar esses recursos para obter uma imagem mais precisa das mulheres e preencher as lacunas da história, da qual elas tinham sido deixadas de lado.

Essas duas iniciativas marcam o início de uma consciência das próprias mulheres para a necessidade de preservar suas fontes, incluindo aquelas produzidas no âmbito privado. Como nota Michelle Perrot, nos séculos XVII e XVIII, excluídas da esfera pública e dos debates políticos, dos documentos administrativos e legais, as mulheres se fazem notar sobretudo nos arquivos judiciários: “Ora, as mulheres perturbam a ordem com mais frequência”, ironiza Perrot (2007, p. 28). Elas entram em cena nos autos e depoimentos quando suas vidas são confrontadas com a polícia e a repressão, e se expressam de formas diferentes dos homens, dando detalhes sobre as articulações e ações cotidianas na cidade. Uma leitura atenta aos arquivos mostra como eram importantes para a vida coletiva: “Existem redes de sociabilidade e de vizinhança nas quais as mulheres têm um papel central” (Farge, 2009, p. 40). No século XIX, destaca-se o arquivo iconográfico produzido na Sapêtrière, o hospital geral de mulheres que viviam encarceradas, conhecido como “a cidade das mulheres incuráveis” (Didi-Huberman, 2015, p. 33). A partir de um projeto médico-científico e pedagógico, a fotografia passou a ser usada como forma de estudo de doenças mentais, em especial a chamada histeria, e a fabricação metódica e continuada de registros das internas em imagens resultou nesse grande acervo fotográfico que hoje é uma fonte importante para os estudos da representação feminina nos arquivos.

No entanto, é na esfera privada, assim que passam a ter acesso à escrita, que as mulheres começam a produzir vestígios, “uma escrita privada, e mesmo íntima, ligada à família, praticada à noite, no silêncio do quarto, para responder às cartas recebidas, manter um diário e, mais excepcionalmente, contar sua vida” (Perrot, 2007, p. 28). Os arquivos de mulheres são fundados na intimidade do lar, na privacidade, na acumulação solitária e obstinada, para só depois tornarem-se públicos, compartilhados. As duas iniciativas que marcam o início da publicização dos arquivos de mulheres nos anos 1930 não encontram eco da mesma proporção nas décadas que se seguem. Será preciso esperar quarenta anos e uma segunda onda do feminismo para que elas se multipliquem. Na década de 1970, o feminismo impulsionou o debate em torno do resgate da história e da memória das mulheres dentro do campo acadêmico e arquivístico. Como parte desse movimento, surgem diversas instituições de guarda de acervo feminista.8 Kate Eichhorn, no livro The archival turn in feminism: outrage in order (2013), destaca a presença dos estudos e do ativismo feminista na reformulação da práxis dos arquivos. A autora argumenta que os arquivos se configuram como espaços onde as principais tensões feministas, entre sociedade e academia e entre teoria e prática, podem ser confrontadas e abordadas, e enxerga um movimento de mão dupla. Ao se abrirem para os movimentos sociais e incorporarem essas novas demandas, os arquivos não só modificam seus modos de fazer como contribuem para o avanço dos debates no campo político e social. Em seu livro, Eichhorn propõe investigar de que forma práticas arquivísticas feministas engendram novas narrativas históricas e agentes políticos (2013, p. 2).

Em nossa pesquisa, transitamos entre arquivos assumidamente feministas – como é o caso do Centre Audiovisuel Simone de Beauvoir, onde está depositado o curta-metragem Inês (1974), realizado por Norma Bengell e que abordaremos adiante –; arquivos da polícia política, em especial Departamentos de Ordem Política e Social – Deops e Dops – (nos quais saltam aos olhos a violência da perspectiva misógina de vigilância e punição); coleções privadas que sobrevivem às intempéries do tempo em residências familiares; e arquivos pessoais de mulheres depositados em instituições de guarda. Muitas vezes não encontramos a presença do discurso feminista articulado nesses acervos em nível institucional, mas, ao assumirem a tarefa de preservar, organizar e disponibilizar esses documentos, essas instituições contribuem imensamente para a história das mulheres.

Esse é o caso dos fundos Norma Bengell e Inês Etienne, em que cabe valorizar o gesto de acumulação das titulares, mas também das instituições que os receberam. Garantindo a preservação e o acesso aos arquivos pessoais, essas instituições permitem o trânsito “do arquivo de mulheres para uma história das mulheres” (Perrot, 2007, p. 31). A existência desses documentos em instituições de guarda e a colaboração das profissionais que atuam nesses mesmos espaços impulsionam esta pesquisa. Como demonstramos até aqui, os arquivos de Norma e Inês nos fornecem evidências que confirmam as ligações estabelecidas entre essas duas mulheres. Ligações que desafiam os silêncios da ditadura brasileira, que driblam a censura e a vigilância, e afrontam as condutas morais ao gerar um feminino combativo e agente da sua própria história. A seguir, propomos recuperar os fios dessa ligação tendo como mote as imagens produzidas no interior dessa rede.

Cenas de um casamento

Como mencionamos na introdução, o projeto de pesquisa “Entre o político e o íntimo: o cinema doméstico sob a ditadura militar” foi iniciado em 2018 a partir da prospecção de acervos que pudessem conter imagens amadoras produzidas no período da ditadura militar. Para além das coleções familiares e dos arquivos pessoais depositados em instituições públicas, realizamos também uma busca on-line em diferentes provedores de conteúdo. Foi utilizando ferramentas de pesquisa no ambiente virtual que chegamos ao registro do casamento de Inês Etienne. O filme em Super-8, realizado em 26 de novembro de 1975, teve sua primeira aparição pública quarenta anos após a filmagem. Uma pequena reportagem intitulada “Casamento como ato político na ditadura”, veiculada em outubro de 2015 no jornal O Globo, trazia um link para a visualização do vídeo e um breve resumo sobre a trajetória de Inês. Assinada pela jornalista Letícia Fernandes, a matéria aborda em linhas gerais o contexto de produção das imagens e de sua veiculação:

Quarenta anos depois da cerimônia, O Globo teve acesso a um vídeo do casamento, feito com uma câmera Super-8, editado apenas em 2011 e enviado a Inês no mesmo ano. Jarbas e duas das irmãs de Inês, Lúcia e Geralda Romeu, nunca tinham visto as imagens, mostradas pela reportagem. Não se sabe se a militante, que morreu em abril deste ano, chegou a ver o vídeo. (Fernandes, 2015)

O filme do casamento disponibilizado pelo jornal foi editado pelo próprio cinegrafista, como descobrimos mais tarde através de uma entrevista que realizamos com ele. Bruno Scharfstein, responsável pela produção das imagens, adicionou a música “Cálice”, de Chico Buarque, como trilha sonora do material, e uma cartela inicial redigida em primeira pessoa:

Por volta do final de 1974, Lúcia, minha amiga, perguntou se eu poderia comparecer ao casamento de sua irmã Inês, ex-guerrilheira, presa política, brutalmente torturada ao ser presa alguns anos antes. Ela se casaria com outro preso político. A preocupação de Lúcia era quanto à integridade física de sua irmã, durante a cerimônia. O casamento seria no Fórum do Rio, sob escolta militar. Os noivos presos chegariam, se casariam e voltariam para a prisão. Claro que concordei em estar presente. Resolvi também tentar filmar. O ambiente político na época era muito tenso. O dia chuvoso. Tinha receio de no mínimo me apreenderem o filme. Seguem as curtas imagens. Espero que ainda cheguem aos [olhos] de Inês Etienne Romeu.

As imagens do casamento nos cativaram imediatamente. O material parecia encarnar os princípios fundamentais da pesquisa que acabávamos de iniciar, uma vez que, em sua origem, o projeto tinha como objetivo primordial a coleta e análise de filmes amadores e familiares produzidos no período da ditadura militar. O interesse específico sobre essas imagens pode ser mais bem compreendido a partir da trajetória das pesquisadoras implicadas no projeto, pois uma delas havia se dedicado no doutorado a investigar a história, estética e circulação do cinema amador e familiar produzido no Brasil ao longo das três primeiras décadas do século XX. Essa experiência anterior de pesquisa havia revelado as potencialidades, mas também as fragilidades desses materiais considerados “menores” pela história canônica do cinema.

Considerada “malfeita” ou entendida como subproduto do consumo tecnológico, a produção amadora ficou (e em grande medida ainda está) à margem dos estudos de cinema e também das ações que visam a sua preservação. Foi apenas a partir dos anos 1990 que essas imagens passaram a chamar mais atenção e a suscitar, por parte das instituições de guarda, políticas de conservação. Ao desinteresse institucional, soma-se ainda a dinâmica particular de produção e descarte de imagens que são realizadas no âmbito privado. No universo familiar, a preservação e o descarte seguem uma lógica própria. Rolos de película podem ser facilmente jogados fora em uma faxina geral ou em uma mudança de casa. Guardadas em condições precárias, as películas ficam à mercê das ações do tempo e são acometidas pela ferrugem e a chamada síndrome do vinagre.9 A chegada em um arquivo público, os cuidados de uma preservação adequada e o possível retorno em pesquisas e trabalhos artísticos parecem ser um destino reservado a poucos materiais. Diante desse cenário, nosso projeto visa contribuir para a perenidade de uma produção que está em vias de extinção e é parte essencial da nossa cultura e da constituição de nosso patrimônio. Os filmes amadores e familiares podem revelar novos pontos de vista sobre a história oficial, permitindo a descoberta de outras narrativas e de diferentes olhares.

Os filmes domésticos começaram a ser produzidos no Brasil ainda na década de 1920, quando foram lançados no mercado os primeiros equipamentos cinematográficos voltados especificamente para o público familiar e amador. Nos anos 1960, com a invenção do filme Super-8 e o barateamento dos meios de produção, a prática da filmagem familiar começou a se disseminar entre as classes altas e médias. Esses registros retratam, em grande parte, o cotidiano das famílias e os momentos de lazer. No entanto, em meio ao manto da felicidade familiar, adormecem preciosas imagens que revelam também os conflitos e os dilemas de um país atravessado pela perseguição política. A pesquisa visa, portanto, coletar e revelar para o público alguns desses raros registros: filmes amadores realizados no espaço privado que encarnam uma dimensão pública e política quando conhecemos seus contextos de produção. 

Ao assistirmos ao registro do casamento de Inês Etienne e Jarbas Vasconcelos, imediatamente percebemos tratar-se de um raro filme amador que testemunhava um momento crítico da história. Além do formato Super-8, usado majoritariamente em produções caseiras,10 o filme possuía outras características essenciais que marcam essa produção: planos rápidos e tremidos, enquadramentos fora de foco, filmagem à contraluz são alguns dos atributos que atravessam a produção doméstica, em que na maior parte dos casos a câmera está sendo manipulada por um indivíduo não profissional, que conhece pouco ou nada da técnica cinematográfica.

Além do formato e da estética, outra característica nos chamou atenção no material. A película em pequeno formato foi lançada nos anos 1920 com a proposta de substituir os clássicos álbuns fotográficos de família. Ao analisar as publicidades do período, é possível perceber que o público-alvo da Kodak e da Pathé, empresas precursoras nesse ramo, eram os chefes de família. Desde cedo as publicidades exploram o desejo pela produção e preservação de memórias que possibilitem imortalizar a experiência familiar e o sentimento de pertencimento. Como afirma Marie-Thérèse Journot, os filmes de família são como “paraísos perdidos”, filmamos e olhamos essas imagens para imortalizar um momento ideal, ou para imortalizá-lo como momento ideal, para transformar o passado na “idade de ouro” (Journot, 2011). Primeiros passos do bebê, aniversários, formatura das crianças, sequências que se repetem a cada material familiar sobrevivendo às mudanças tecnológicas: da película 9.5 mm, rodada nos anos 1920, ao videocassete popularizado nos anos 1980, essas imagens inundam a produção doméstica. Mas dentre todos os rituais familiares, o mais celebrado e possivelmente mais representado é o casamento.

O casamento enquanto ritual a ser registrado e imortalizado pelas câmeras goza de status particular. Não é por acaso que, até os dias atuais, essa cerimônia mobiliza uma verdadeira indústria de produção de imagens. Curioso também que um dos registros em movimento mais antigos preservados no Brasil retrata, justamente, um casamento. Rodado entre os anos 1909 e 1920 pelo cinegrafista Aristides Junqueira, o material intitulado Reminiscências encontra-se depositado na Cinemateca Brasileira. Um precioso documento audiovisual da vida da burguesia mineira no início do século XX: “Cenas de um casamento: saída de casa da noiva e convidados, a noiva num automóvel, o interior da igreja, saída da igreja, cortejo de automóveis, chegada dos noivos e convidados à casa, os noivos e convidados no quintal” (Cinemateca Brasileira).11

A filmagem do casamento de Inês Etienne poderia se inserir nessa longa tradição de registros de matrimônios, no entanto rompe com esse regime de visualidade provocando um mal-estar na representação. Mesmo se tratando de um casamento, não vemos no filme de Bruno Scharfstein as figuras de linguagem que são comuns aos registros desse ritual. A descrição aplicada pela Cinemateca ao filme de Aristides Junqueira, e que poderia facilmente ser multiplicada a dezenas de outros registros domésticos, não corresponde à realidade dessas imagens. No filme do matrimônio de Inês Etienne, vemos o camburão de onde a noiva sairá, mas não a sua saída, são planos rápidos, hesitantes, que capturam o camburão e a caminhonete dos militares que o acompanham.

A entrada magistral da noiva na igreja, que estamos tão acostumadas a ver nas cenas de casamento, dá lugar a planos escuros, tremidos e desfocados produzidos dentro do Palácio da Justiça. Bruno Scharfstein filma de longe o “casal prisioneiro” Inês e Jarbas, percorrendo os corredores da instituição escoltados pela Polícia Militar. Quando o grupo se aproxima da objetiva, o cinegrafista abaixa a câmera registrando apenas os pés. O que ficou impresso nessas imagens foi a apreensão e a desconfiança do cinegrafista que filmava uma cerimônia sitiada por policiais: “Eram policiais militares, talvez uns vinte ou trinta”, disse em entrevista para esta pesquisa.12

No momento da cerimônia, que dura apenas um minuto, o cinegrafista, enfim, se aproxima do casal e podemos ver os detalhes das roupas que vestiam, das expressões e dos olhares trocados naquele momento. Bruno usa o recurso do zoom para registrar os rostos, as mãos que assinam o livro, o beijo que sela o compromisso. No extracampo estão os policiais militares e do Dops, o Departamento de Ordem Política e Social. O que não foi enquadrado pela câmera de filmar é, no entanto, registrado na fotografia realizada por um profissional: a presença ostensiva de homens fardados ao lado de Inês e Jarbas. Bruno não foi o único cinegrafista presente na ocasião. Além dele, estava um amigo munido de uma câmera de vídeo, além de fotógrafos e jornalistas convocados pelos familiares da militante.

As razões que mobilizaram o cinegrafista, o modo de circulação do filme (guardado por quatro décadas sem nunca ter sido enviado aos noivos) e aquilo que de fato as imagens nos mostram nos fizeram ter uma nova compreensão do material e da própria pesquisa. Inicialmente imaginávamos que o projeto nos levaria a coletar filmes produzidos na esfera privada que exigiriam de nós um esforço de recontextualização e interpretação, a partir do qual a dimensão política das imagens emergiria.

Para citar um exemplo e tornar esse processo mais claro, podemos mencionar o filme do casamento do cineasta Leon Hirszman com a economista Liana Aureliano. O material, depositado na Cinemateca Brasileira e indexado na base de filmes domésticos da instituição, foi filmado em 1965, no Chile. As imagens revelam uma cerimônia como outras, os jovens noivos felizes celebram a união entre amigos e família com muita dança e clima de descontração. Para que essas imagens se tornem políticas, é preciso compreender seu contexto de produção. Em 1965, Liana Aureliano chegou ao Chile na qualidade de exilada política. Estudante de ciências econômicas na Universidade Federal Fluminense (UFF) e integrante da União Estadual dos Estudantes, Liana foi perseguida pelo Estado logo no princípio da ditadura militar. Ainda em 1964, foi indiciada e teve prisão preventiva decretada pela Auditoria Militar da 7ª Região. No relatório do Inquérito Policial Militar (IPM), consta: “É comunista estruturada no Comitê Estadual de Pernambuco”. Com Liana exilada, Leon Hirszman foi ao seu encontro, e o casamento viabiliza a permanência do companheiro ao seu lado.

O exercício de análise das imagens do casamento de Liana Aureliano consiste em fazer emergir de um material de caráter privado uma “dimensão política das lembranças cotidianas registradas em imagens durante os regimes de exceção na América do Sul” (Mauad, 2017, p. 397-413). Dimensão que não é dada pelas imagens, mas por aquilo que está fora delas, o extracampo, as motivações, o contexto de produção. O material elaborado no casamento de Inês Etienne mobiliza, em nós, pesquisadoras, um outro tipo de olhar. As imagens falam, mesmo que titubeantes, por si só. O medo, a tensão e a dramaticidade da situação estão impressas na película, no modo de filmar (sempre esquivo) e nos signos da representação: militares, camburão, algemas. Não há camadas a serem escavadas, pois o sentido é visível, quase didático; as lacunas foram preenchidas pela montagem operada pelo cinegrafista décadas mais tarde. Música, cartelas, inserções de outros materiais em meio ao Super-8: tudo construído para retirar das imagens qualquer resquício de ambiguidade. Ao contrário dos filmes familiares e amadores que estávamos habituadas a analisar, o material do casamento de Inês Etienne é registrado com um objetivo claro, são imagens dotadas de finalidade em seu tempo presente, imagens com estatuto de prova, garantia de vida. No futuro, elas se tornariam documentos que atestam a violência do Estado exercida sobre essas vidas e os artifícios usados por quem precisava se proteger.

Inês faleceu em 2015, mesmo ano da veiculação do filme de seu casamento na página do jornal O Globo. Segundo o cinegrafista, a noiva não chegou a assistir às imagens. O filme do casamento não cumpriria o destino dos souvenires familiares (dispositivos de rememoração e de afirmação dos laços familiares). Pensadas desde sua origem como evidência documental, após quarenta anos adormecidas nas gavetas do armário do cinegrafista, elas retornam ao movimento no espaço público como testemunhas da história.

Encontros

A partir do filme do casamento, começamos a buscar outros registros visuais de Inês. Cabe destacar que a intenção da pesquisa nunca foi produzir uma biografia de Inês Etienne, mas construir uma espécie de mosaico de imagens dessa personagem que possa nos levar a uma compreensão mais profunda da história da ditadura militar no Brasil, sobretudo do papel que os registros exercem na construção da memória e nas elaborações de narrativas sobre essa história. Para nós, as imagens não são representações passivas, elas possuem um papel ativo dentro dos contextos políticos e sociais, influenciando os destinos do mundo. Em nosso percurso como pesquisadoras, partimos sempre delas para percorrer outros caminhos (documentos textuais, orais), mas com o propósito de retornar ao campo visual.

Foi a partir do filme do casamento que passamos a conhecer melhor a singular trajetória de Inês, que foi guerrilheira da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Entre 1969 e 1970, a organização clandestina se tornou o principal alvo da repressão política, que desejava desmobilizá-la a qualquer preço. Inês foi presa em 1971, aos 29 anos, em São Paulo, e logo entregue ao Centro de Informações do Exército (CIE), que mantinha clandestinamente uma casa em Petrópolis, usada para interrogatórios sob tortura e execução de prisioneiros políticos. Na chamada Casa da Morte, Inês ficou encarcerada durante 96 dias. Tornou-se a única sobrevivente que passou por ali. Ainda em 1971, cinco anos antes do casamento e no período entre o término do seu sequestro e a formalização de sua prisão, Inês esteve internada em uma casa de saúde de Belo Horizonte. Foi quando escreveu um imenso relatório denunciando as torturas e estupros que sofreu, os crimes que presenciou e as tentativas de assassinato a que foi submetida.


Figura 3 – Ficha de controle político e social – Inês Etienne. Fonte: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj)

Em relatório entregue em setembro de 1979 ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Inês fornece um minucioso depoimento escrito em que declara temer ser objeto de queima de arquivo: “Pelos fatos por que passei durante o meu cativeiro, onde fui torturada e vi companheiros sofrendo e morrendo, pelas conversas que mantenho com agentes secretos que me visitam, tenho motivos para acreditar que os meus carcereiros pretendem me eliminar falseando a maneira e as razões da minha morte”.13

Inês denunciou também os detalhes das torturas que sofreu: “Fui levada à sala de torturas, onde me colocaram no pau-de-arara e me espancaram barbaramente. Foram-me aplicados choques elétricos na cabeça, nos pés e nas mãos”.14

Em 29 de agosto de 1979, com a aprovação da Lei da Anistia, Inês é libertada. Ela havia cumprido oito anos de pena. Na saída da prisão, a atriz Norma Bengell a aguarda com uma câmera em punho. No filme, rodado em Super-8, vemos Inês sorridente, aliviada, cercada de amigos. Em determinado momento, vemos também a atriz Norma Bengell, visivelmente emocionada. As duas se abraçam, posam para a câmera. A simples existência dessa imagem inaugura um novo percurso na pesquisa.

O Jornal do Brasil do dia seguinte à libertação de Inês Etienne traz uma pequena nota destacando que Norma Bengell estava presente e filmou o momento da saída da prisão. Essas imagens, contudo, nunca foram exibidas e ficaram guardadas por mais de quarenta anos até serem doadas, junto ao arquivo privado da atriz, para a Cinemateca Brasileira.


Figura 4 – Matéria do Jornal do Brasil, 30 ago. 1979. Fonte: Hemeroteca Digital

Seguindo o caminho da nossa pesquisa, chegamos à Cinemateca e abrimos um novo capítulo em nossas investigações. O primeiro contato com a instituição, em 2018, foi impulsionado pela informação de que estaria depositado no acervo um rolo Super-8 que registrava o dia da libertação de Inês do presídio Talavera Bruce, após oito anos de encarceramento. Gabriela de Queiroz, arquivista da Cinemateca, confirmou a existência do material, mas nos informou que o filme não estava digitalizado e que, portanto, não poderia ser visionado por pesquisadoras externas. Recebemos também a informação de que o registro teria sido realizado pela atriz Norma Bengell e que pertencia ao seu acervo pessoal, depositado recentemente na instituição.

A existência desse Super-8 entre os outros filmes e documentos do arquivo de Norma Bengell provocou um curto-circuito na pesquisa e levantou uma série de novas perguntas. Sequestrada, encarcerada, torturada barbaramente e ameaçada de morte pelo Estado brasileiro, Inês Etienne teve, como vimos anteriormente, um papel fundamental no processo de resistência e de denúncia dos crimes cometidos na ditadura, sendo também uma testemunha-chave dos relatórios produzidos pela Comissão Nacional da Verdade.15 A trajetória de Inês Etienne representa de forma única esse momento traumático do país e goza de reconhecimento no campo político e histórico. Norma Bengell, por sua vez, apesar do engajamento político e da longa carreira de atriz e cineasta, sobrevive no imaginário coletivo como vedete, símbolo sexual, um clichê sobre o qual paira apenas uma vaga lembrança de sua militância política.

Sem acesso até aquele momento às imagens de Inês produzidas por Norma, partimos em busca de pistas que pudessem nos ajudar a entender por que o arquivo de uma famosa vedete brasileira continha um registro inédito de um dos momentos mais dramáticos da história do Brasil. Quais eram as possíveis conexões entre essas duas mulheres que, em nosso imaginário, ocupavam espaços absolutamente distintos? Ao tentar responder a essa pergunta, mergulhamos no universo de Norma Bengell a fim de explorar uma imagem pouco valorizada da atriz, na qual a vedete dá lugar a uma articuladora obstinada, com presença em redes feministas internacionais durante o período da ditadura civil-militar. Cruzando os documentos do seu arquivo, filmes e imagens publicitárias com os relatórios do Serviço Nacional de Informação (SNI) depositados no Arquivo Nacional, recuperamos informações sobre a atuação política da atriz.

Norma Bengell iniciou sua trajetória como figura pública ainda na década de 1950, ganhando fama por atuar em teatros de revista nos palcos do Copacabana Palace. Aos 24 anos, a atriz gravava seu primeiro LP intitulado Ooooooh! Norma, lançado em 1959. Exaltada por sua beleza, chamada de a Bardot brasileira (alusão à atriz francesa), Norma já era destaque também em capas de revista, editoriais de moda e colunas de fofoca. Como vedete, era admirada, olhada e consumida através das lentes da mídia de massa da época.

Nos anos 1960, a atriz passaria a ocupar novos lugares da cena cultural, principalmente a partir da atuação no filme Os cafajestes (1962), de Ruy Guerra, em que representa o primeiro nu frontal do cinema brasileiro. O filme é um ponto de inflexão na trajetória de Norma. A partir dele, a atriz passa a se tornar um dos alvos preferidos dos setores conservadores, dentre os quais a organização TFP (Tradição, Família e Propriedade). É também a partir desse momento que a atriz assume ativamente o corpo como território político. Primeiro, como contestadora dos hábitos e modos conservadores, depois como integrante declarada do movimento feminista. Sua militância teve início em manifestações e sindicatos pelos direitos das mulheres, defendendo o direito feminino de trabalhar, se divorciar, abortar, ao uso da pílula e do preservativo: pautas que levantava abertamente nas mesmas revistas nas quais antes era vendida como bonequinha de luxo.

De vedete, Norma passa a ser antagonista da ditadura e a despertar ardentemente o interesse do Estado. Na pesquisa que realizamos no acervo do Arquivo Nacional, responsável por grande parte dos documentos da polícia política, encontramos 73 menções ao nome de Norma, entre os anos de 1964 e 1985. Seu nome consta em dossiês e documentos produzidos pelo Serviço Nacional de Informações, Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica, Comissão Geral de Inquérito Policial-Militar, Departamento de Censura de Diversões Públicas, Divisão de Inteligência do Departamento de Polícia Federal, Divisão de Segurança e Informações do Ministério das Relações Exteriores e Divisão de Segurança do Ministério da Justiça. Nesses documentos, produzidos por departamentos do Estado, a atriz é caracterizada como subversiva, comunista e, sobretudo, depravada.

Em 1969, enquanto encena em São Paulo Cordélia Brasil, peça que já havia tido problemas com a censura, Norma é sequestrada em frente ao teatro Arena e levada ao Rio de Janeiro por três homens do 1º Batalhão Policial do Exército. Foi interrogada no DOI-Codi (Departamento de Operações de Informação-Centro de Operações de Defesa Interna) por cinco horas sobre a “subversão na classe teatral” e permaneceu detida por dois dias.16 Seria a primeira de várias detenções pela ditadura civil-militar que a levaram a se exilar na França em 1971.


Figura 5 – Planilha de registro Norma Bengell. Fonte: Aperj

É no exílio que os caminhos de Norma e Inês Etienne se cruzam. Norma é uma das protagonistas da realização de Inês, de 1974, curta-metragem militante, fruto dos encontros e afetos produzidos no interior das redes feministas. Analisamos esse filme em artigo publicado em 2021, onde mostramos que Inês foi feito para ser exibido em um congresso feminista em Frankfurt, em 1975, com a intenção de denunciar as torturas vividas pela protagonista na prisão. Revelamos também que, atualmente, o filme encontra-se no acervo do Centre Audiovisuel Simone de Beauvoir,17 em Paris. Na documentação da instituição, consta a informação de que a autoria do filme seria da atriz Delphine Seyrig. Na época, ela participava do coletivo feminista Les insoumuses, criado com o objetivo de usar a tecnologia do vídeo para fazer filmes baratos que pudessem ser usados como modo de expressão e intervenção das mulheres. A questão que os documentos não respondem é: de que maneira Seyrig tomou conhecimento da história da presa política brasileira?

Em sua autobiografia publicada em 2014, um ano após a sua morte, Norma Bengell se refere diversas vezes ao curta-metragem Inês atribuindo a si mesma a idealização da obra e a concepção da cena de tortura e estupro, dispositivo central do filme. Sobre a sequência, escreveu: “Idealizei, paguei e fiz os cenários do filme: cadeiras de choque elétrico, pau-de-arara etc.” (Bengell, 2014, p. 186). É curioso que a atriz brasileira não seja citada na documentação e nas pesquisas referentes ao coletivo feminista, mas faz sentido a narrativa que desenvolve. Norma diz que, quando realizou o curta, ainda não havia conhecido Inês; o contato com sua história teria vindo através de um encontro com a irmã da militante, que na época visitava Sandra,18 a namorada da atriz, em Paris. “Me comovi com essa injustiça e degradação, e tivemos a ideia de pedir ajuda a Simone de Beauvoir [...] Simone nos recebeu e disse que não poderia fazer nada diretamente, mas indicou outra mulher fantástica, a grande atriz Delphine Seyrig”, conta Norma (p. 185).

Levando em consideração o relato memorialístico de Norma Bengell, a encenação de tortura do filme militante marca seu encontro virtual com Inês Etienne pela primeira vez. A cena, que tem performance como seu dispositivo central, retrata uma mulher em uma sala de tortura se despindo para a câmera, ao som da música Amada amante, de Roberto Carlos (música predileta de Inês, usada pelos algozes nas sessões de tortura). Uma voz de um homem fora de campo repete comandos humilhantes, explorando a condição feminina da presa política. São sete longos minutos em que o corpo nu da atriz ocupa o centro da tela e se retorce diante da câmera, submetido ao espancamento e aos choques elétricos.

O cinema como dispositivo de denúncia e resistência reúne a trajetória de duas mulheres, que em suas singularidades e diferenças compartilham a experiência de sobreviver sob uma política misógina de Estado. O encontro presencial entre Inês e Norma se dá de fato em 1979. Sobre ele, há apenas uma menção na biografia de Norma: “Inês Etienne Romeu foi libertada em 1979. Tive a honra de filmar sua saída” (2014, p. 191). O documento, que materializa em imagens esse encontro, foi digitalizado em 2022 e, em outubro desse mesmo ano, a arquivista da Cinemateca, Gabriela, nos concedeu acesso. Ponto de partida desta pesquisa e do desejo de entender as conexões entre essas duas mulheres, o filme em Super-8 se converteu em objeto de interrogação. As perguntas que essas imagens levantam nos despertaram para um novo e complexo conjunto documental, os arquivos privados de cada uma dessas personagens.

Considerações finais

Nos quatro anos de desenvolvimento desta pesquisa, fomos sempre surpreendidas pelo acaso, o que nos leva a constatar que há uma errância nesse processo, que nos obriga a estar atentas aos encontros inesperados. Da ambição inicial de realizar um mapeamento de imagens domésticas da ditadura militar, fomos arremessadas para os arquivos, a história e as imagens das mulheres. Esse movimento da pesquisa está diretamente ligado ao método que incorporamos e estamos desenvolvendo e que tem, em sua centralidade, o trabalho com os arquivos, sejam eles privados, públicos, textuais, audiovisuais. Como coloca Arlete Farge: “Os arquivos são singulares e complexos, na razão direta em que são saboreados. É preciso desvendá-los em sua materialidade como um mar no qual se mergulha e onde o afogamento pode ocorrer”. A definição científica de “fundos de arquivos felizmente não esgota nem seus mistérios nem sua profundeza” (2009, p. 12).

Os próximos passos desta pesquisa envolvem a análise mais aprofundada dos arquivos pessoais de Inês e Norma, explorando as imagens, referências e correspondências trocadas entre elas. Além disso, pretendemos identificar o maior número possível de pessoas presentes no filme da libertação de Inês, buscando realizar entrevistas e cruzar essas imagens com testemunhos e novas fontes. Esses encontros com documentos e testemunhos podem abrir diferentes etapas e perspectivas de pesquisa, como foi o caso do percurso narrado neste artigo. Através da abordagem metodológica adotada, que valoriza a materialidade dos arquivos e a interação com as imagens, nossa pesquisa se mantém em constante movimento, aberta a novas possibilidades e descobertas. Essa abordagem nos permite explorar a biografia das imagens e ampliar nosso conhecimento sobre os arquivos brasileiros, preenchendo lacunas e enriquecendo a compreensão do período da ditadura.

Referências

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ROMEO, Inês Etienne. Relato de tortura e ameaça de morte sofridas durante a ditadura militar. Belo Horizonte [para] Ordem dos Advogados do Brasil. 19 set. 1971.

Recebido em 11/7/2023

Aprovado em 24/10/2023


Notas

1 A Super-8 é uma câmera pequena, que usa uma fita de 8 mm, de baixo custo e fácil utilização. Pela facilidade do manuseio e acessibilidade, foi adotada por amadores para a produção de filmes caseiros e se tornou muito popular nas décadas de 1960 e 1970.

2 Informação concedida por Gabriela Sousa de Queiroz, coordenadora do Centro de Documentação da Cinemateca Brasileira, em entrevista para esta pesquisa. Agosto de 2023.

3 A doação do acervo de Inês Etienne Romeu foi realizada no final de abril de 2018, cerca de três anos após sua morte, por sua irmã Anitta Etienne Romeu.

4 Parecer da professora Ana Maria de Almeida Camargo, de 12 de abril de 2018, sobre a doação do acervo privado de Inês Etienne Romeu ao Arquivo Público do Estado de São Paulo. Expediente SG/336527/2018. Processo de Transferência de Acervos Arquivístico, Bibliográfico, Museológico ou Artístico.

5 Norma faleceu em 2013.

6 Biblioteca Marguerite Durand: https://www.paris.fr/lieux/bibliotheque-marguerite-durand-bmd-1756. Acesso em: 6 jul. 2023.

8 Uma das instituições forjadas no centro dos debates feministas foi o Women’s History Research Center (WHRC), fundado em 1970 por Joan Kelly e outras ativistas feministas em Berkeley, Califórnia. O WHRC tinha como objetivo coletar e preservar materiais relacionados à história das mulheres e disponibilizá-los para pesquisadoras e ativistas feministas. Outra instituição que surge a partir da prática feminista é o Centre Audiovisuel Simone de Beauvoir. O acervo foi criado em 1982 por Carole Roussopoulos, Delphine Seyrig e Ioana Wieder. Nesse acervo está abrigado um dos documentos-chaves desta pesquisa, o curta-metragem Inês, que abordaremos mais adiante.

9 A chamada síndrome do vinagre refere-se ao odor característico que significa um processo irreversível de deterioração do suporte de acetato.

10 A película Super-8 foi também largamente utilizada por cineastas e artistas experimentais que buscavam se expressar através da linguagem audiovisual. Explorando as fronteiras entre cinema e as outras artes, esses artistas ampliaram o uso do pequeno formato para além do espaço doméstico e amador. Pesquisadores como Rubens Machado Jr., Simplício Neto, Lila Foster e, mais recentemente, Mayra Jucá, produziram extensas pesquisas sobre essa temática. Neste artigo, nosso foco deve permanecer na produção amadora, de caráter doméstico, e que é atravessada pela urgência do seu tempo histórico.

11 Base de dados da Filmografia Brasileira da Cinemateca Brasileira: https://bases.cinemateca.org.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/. Acesso em: 17 abr. 2023.

12 Entrevista concedida em 2018.

13 Disponível no site da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo:http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/arquivos/tag/Inês%20Etienne

14 Idem.

15 A Comissão Nacional da Verdade foi instaurada no Brasil em 2012, com o objetivo de investigar e elucidar violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar no país, como torturas, desaparecimentos, execuções e perseguições políticas. Foi criada por meio da lei n. 12.528/2011. A comissão teve acesso a documentos sigilosos, realizou audiências públicas, entrevistas e outras investigações para reunir informações e relatar as violações cometidas. O relatório final da CNV foi apresentado em 2014.

16 Em sua autobiografia, publicada em 2014 pela Versos Editora, Norma narra em detalhes a prisão e o interrogatório no DOI-Codi.

17 O Centre Audiovisuel Simone de Beauvoir se define como uma instituição feminista que possui como objetivos centrais a conservação e criação de documentos audiovisuais que dizem respeito à história das mulheres, seus direitos, suas lutas e criações artísticas. A coleção é constituída por 1.300 títulos de vídeos e filmes. Disponível em: https://www.centre-simone-de-beauvoir.com/. Acesso em: 6 jul. 2023.

18 Apesar de, no livro, Norma referir-se à namorada como Sandra, descobrimos que na verdade seu nome era Sônia Nercessian, que entrou na militância por causa de Inês, tornando-se um forte elo entre Norma e Inês. Foi presa, torturada e recorreu ao Superior Tribunal Militar no mesmo processo que a amiga: Sônia foi considerada inocente e conquistou a liberdade, Inês foi condenada. O processo do STM pode ser localizado no site do projeto Brasil: Nunca Mais. Disponível em: https://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 6 jul. 2023.


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