Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 2, maio/ago. 2023

Marc Ferrez: a fotografia como experiência | Apresentação

Marc Ferrez: a fotografia como experiência

Apresentação do dossiê


Interessado pelo universo da fotografia em sentido amplo e preocupado em dominar as técnicas, as fórmulas, os equipamentos, Marc Ferrez (1843-1923) foi um dos mais profícuos fotógrafos brasileiros do século XIX: não se limitando à produção das imagens, estava envolvido com todas as etapas do processo fotográfico, do registro à impressão. Ferrez atuou em trabalhos comissionados de que são exemplares as fotografias de grandes obras de engenharia urbana, dos novos reservatórios de abastecimento de água da capital do Império, da construção da avenida Central, no Rio de Janeiro. Ele documentou, também, expedições científicas como a promovida pela Comissão Geológica do Império entre 1875-1877.

A atuação de Ferrez possibilitou o registro fotográfico de um dos ícones do imaginário do século XIX: as ferrovias. Foi um dos fotógrafos que mais produziu imagens e álbuns para as empresas férreas, como a Estrada de Ferro Minas e Rio (1881-1884), Estrada de Ferro Príncipe Grão Pará (١٨٨٢), Estrada de Ferro do Paraná (1880-1884), Estrada de Ferro do Corcovado (1884), Estrada de Ferro D. Thereza Christina (1884) e a Great Southern Railway (1889) (Monteiro, s.d.). Ferrez também realizou serviço fotográfico para a Estrada de Ferro Central do Brasil, uma relação que se estendeu de 1880, durante a gestão do engenheiro Pereira Passos, até 1908, ano em que o fotógrafo fez registros para a comemoração dos cinquenta anos da ferrovia (Turazzi, s.d.).

Fotógrafo da Marinha Imperial, título que ostentava desde 1870, retratista, cronista visual do Rio de Janeiro; com suas vistas e paisagens, Ferrez ajudou a conformar a imagem da cidade: do rés do chão aos grandes panoramas. Uma de suas experiências inovadoras se refere à produção de imagens panorâmicas do Rio, com chapas de vidro de 40 x 110 cm, para as quais adaptou uma máquina adquirida na França em 1878. Entretanto, a prática fotográfica de Marc Ferrez ainda aproximou o observador oitocentista tanto da cidade quanto do trabalho nas fazendas de café, sensibilizando o olhar contemporâneo para a condição de vida da população urbana e rural, sobretudo a significativa presença da população negra na sociedade brasileira.

Além de fotógrafo, Marc Ferrez foi um empresário bem-sucedido: operou na importação e comercialização de equipamentos e materiais fotográficos e cinematográficos; editou álbuns e cartões-postais fotográficos; representou as empresas de filmes Pathé, Gaumont e Lumiére no Brasil e foi proprietário do cinema Pathé, na avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro. Conforme observa Vasquez, a obra de Ferrez teve ampla circulação em sua época, não se limitando às fotografias impressas, álbuns temáticos e exposições: A presença, no arquivo do fotógrafo, de diversos conjuntos produzidos para exibição por lanterna mágica evidencia que a projeção foi um meio corrente de difusão de suas imagens” (Vasquez, s.d.).

Em 1905, a Casa Marc Ferrez publica o catálogo Máquinas e acessórios para a fotografia. Mais do que um extenso guia de artigos comercializados pela empresa, a obra traz informações sobre o uso de câmeras e obturadores, indicação dos tipos de chapas adequados aos diferentes trabalhos, dicas sobre lâmpadas de projeção e os aparelhos necessários à montagem de uma sala de cinema, evidenciando uma percepção do crescimento do mercado da fotografia e das estratégias de vendas dos produtos. Essas estratégias estavam apoiadas nas credenciais de Ferrez, apresentado na folha de rosto como fotógrafo da Marinha brasileira e detentor de prêmios em exposições nacionais e internacionais. A chancela do fotógrafo também está patente nos produtos que receberam o seu nome, caso dos reveladores e do sensibilizador para cartões-postais.

A relevância de Marc Ferrez não se limita à qualidade e à quantidade de imagens produzidas ao longo de quase seis décadas. Seu trabalho é uma espécie de inventário dos diferentes processos, técnicas e formatos que a fotografia experimentou entre meados do oitocentos e as primeiras décadas do século XX. Mesmo em seus últimos anos de vida, na França, ele manteve o interesse pelas inovações técnicas, como demonstram as suas experiências com as fotografias coloridas, os autocromos (Lissovsky, 2020; Heynemann, s.d.). Considerando o circuito social de produção, circulação, consumo e agenciamento das suas imagens, pode-se afirmar que Ferrez revolucionou a experiência visual no século XIX, atuando como um mediador cultural ao traduzir em imagens técnicas sua experiência subjetiva frente ao mundo social” (Mauad, 2013).

Em 2023, ano que marca o centenário da morte de Marc Ferrez e 180 anos do seu nascimento, o Arquivo Nacional dedica um número da revista Acervo ao fotógrafo. Seu trabalho longevo ‒ ao qual temos acesso graças à extensa e variada documentação cuidadosamente conservada pelo fotógrafo, seus filhos, Júlio e Luciano, e o neto, Gilberto ‒ que hoje se encontra, entre outras instituições, no Arquivo Nacional e no Instituto Moreira Salles, oferece múltiplas possibilidades aos pesquisadores.

Nesse sentido, o dossiê buscou publicar artigos que iluminam a obra de Marc Ferrez, explorando diferentes fontes e abordagens, não se limitando às análises na chave da história da fotografia ou à biografia do fotógrafo. Em diálogo com os estudos de cultura visual e visualidade, alguns textos examinam os circuitos sociais de produção de suas obras; outros se dedicam à difusão de suas imagens, incluindo os usos em exposições. Merecem atenção, ainda, os artigos que exploram o processo de “arquivamento de si”, que evidencia a percepção de Ferrez e de sua família do lugar social que ocupavam, e os textos que dão a ver como suas imagens podem operar como recurso de investigação nos estudos históricos.

Abre este número da Acervo uma entrevista com Boris Kossoy, fotógrafo e pesquisador que fundamentou uma abordagem para os estudos da história da fotografia no Brasil com seu trabalho sobre Hercule Florence. Na entrevista, ele comenta os desdobramentos das pesquisas no campo, examina o florescimento da fotografia no Brasil no século XIX e contextualiza como os debates sobre memória e patrimônio ganharam espaço como políticas públicas nos anos ١٩٨٠. Kossoy também nos apresenta um pouco das muitas atividades nas quais está envolvido como fotógrafo e pesquisador.

O artigo de Maria Inez Turazzi, pesquisadora que há décadas se dedica à obra de Marc Ferrez, parte da categoria paisagens em trânsito” para analisar as visões da natureza e do Rio de Janeiro reelaboradas pela obra do fotógrafo e a conversão desse legado em patrimônio cultural, entendendo a produção e a difusão das imagens de Ferrez como componentes ativos da apropriação estética da paisagem da cidade. Turazzi nos lembra que, por outro lado, essas fotografias e sua ampla circulação convivem hoje com outras experiências urbanas e imagens distintivas do Rio de Janeiro, que não apenas subvertem o imaginário edênico associado ao lugar, como redimensionam as formas de apropriação da paisagem carioca como patrimônio cultural.

A historiadora Maria Isabel Lenzi convoca um expressivo conjunto de fontes, nomeadamente uma entrevista concedida por Gilberto Ferrez, nos anos 1980, para discutir o papel do neto de Ferrez na história da fotografia no Brasil. No artigo, ela analisa as publicações e exposições produzidas por Gilberto, que visavam à valorização do legado da sua família e da sua própria coleção, operando com uma dupla mediação.

Os circuitos sociais da produção, circulação e agenciamento das fotografias estereoscópicas de Marc Ferrez estão presentes em dois artigos do dossiê. Camila Mangueira Soares e Simone Wicca analisam a crescente difusão dessas imagens para discutir os diferentes processos de remediação, ou seja, os modos pelos quais as novas mídias reconfiguram as mídias tradicionais e as maneiras pelas quais estas se reconformam para fazer frente aos desafios daquelas. O artigo centra-se nos autocromos de Ferrez apresentados na exposição e no catálogo Marc Ferrez: Território e Imagem, bem como no acervo disponibilizado on-line pelo Instituto Moreira Salles. Examinando esses projetos envolvidos na propagação dos autocromos de Ferrez, as autoras avaliam os variados processos contemporâneos desencadeados para o tratamento e a publicação de fotografias estereoscópicas de séculos anteriores. O artigo de Maria Isabela Mendonça dos Santos aborda as diferentes fases da trajetória profissional de Marc Ferrez, tomando como ponto de partida a sua produção de vistas estereoscópicas. Na trilha de Jonathan Crary e relacionando a estereoscopia com os variados processos fotomecânicos, procedimentos e fórmulas químicas utilizados pelo fotógrafo, bem como as diversas técnicas de difusão de imagens do século XIX, Maria Isabela busca compreender a formação de Ferrez como um típico observador da modernidade, alguém que, mais do que espectar passivamente o espetáculo do século XIX, viu e conformou suas próprias ações a partir do que viu.

Solange Ferraz de Lima problematiza a preservação da cultura material em um museu de história. Operando com conjuntos documentais do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP) – como a coleção do fotógrafo Militão Augusto de Azevedo, profissional atuante em São Paulo no século XIX, e o arquivo Nery Resende, uma mulher negra e guardiã da memória familiar que se confundia com a da cidade de São Paulo – a autora busca evidenciar a importância de preservar conjuntos orgânicos de documentos que possibilitem abordagens múltiplas, capazes de responder ao complexo agenciamento da fotografia na sociedade contemporânea.

O artigo de Iara Schiavinatto, Figurações do passado em ação: acervamentos fotográficos na família Ferrez, tem por base a aula ministrada pela autora nas provas de titularidade junto ao Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação da Universidade de Campinas (Unicamp), realizada em fevereiro de 2023. Iara traça uma micro-história das relações, reordenações, fissuras e silenciamentos entre a coleção de Gilberto Ferrez e a produção visual de seu avô, o fotógrafo Marc Ferrez. A produção fotográfica de Marc, a coleção de Gilberto e o acervamento de Marc Ferrez no Instituto Moreira Salles concorrem para a elaboração visual de como passados habitam presentes. O fio condutor do texto atenta a um processo de transarquivação, entendido como acontecimento constituído por práticas culturais. Conforme Schiavinatto, ele pode ajudar a explorar buracos, fraturas, silêncios, apagamentos, desaparecimentos, esquecimentos entre arquivos/coleções, no caráter prospectivo do arquivo, nas formas de temporalização, na matéria da imaginação histórica e na sua produção poética.

Marcos de Brum Lopes integra este número da Acervo com uma resenha do livro À sombra do colonialismo: fotografia, circulação e projeto colonial português (1930-1951), de autoria de Marcus Vinicius de Oliveira. Conforme Lopes observa, a obra parte de uma pergunta que o autor se fez após folhear o álbum fotográfico da I Exposição Colonial Portuguesa, de 1934: por que manter viva a lembrança de um evento daquele tipo”? Questão aparentemente simples, que se desdobra em várias outras, levando Oliveira a problematizar uma constelação de imagens, algumas diretamente relacionadas ao seu tema – o que a imagem técnica oferece ao Estado colonial português – outras, aparentemente desconexas, mas que acabam indicando as pistas para as respostas que Marcus Vinicius busca obter.

Na seção Documento, Mariana Muaze explora os cadernos de anotações de Marc Ferrez recentemente disponibilizados on-line pelo Arquivo Nacional e o Instituto Moreira Salles. Produzidos nas primeiras décadas do século XX, os cadernos são analisados pela historiadora como uma escrita autobiográfica e um esforço de construção de memória. Conforme Muaze, eles evidenciam um empenho de inventariar a própria obra, de registrar os conhecimentos tecnológicos e científicos que marcaram a fotografia no limiar da prática fotográfica moderna e produzir uma escrita de si” que valorizasse o autor como artista, fotógrafo, homem moderno e profundo conhecedor dos processos e técnicas relacionados às imagens fotográficas.

O conjunto de artigos selecionados para este número da revista Acervo oportunizam não somente valorizar a trajetória de um dos mais importantes fotógrafos da história da fotografia mundial, Marc Ferrez, mas, sobretudo, refletir sobre a experiência fotográfica e seus desdobramentos para a prática historiadora. Compreendida como uma forma de colocar-se diante do mundo social, a experiência fotográfica redefiniu a nossa relação com o tempo. Como nos adverte Lissovsky, o futuro habita as imagens do passado como um ovo” em seu ninho. Está encoberto por uma casca e seu conteúdo, portanto, só pode ser adivinhado (por fotógrafos e historiadores, entre outros sucessores dos adivinhos) (Lissovsky, 2011, p. 9). Assim, em cada fotografia aninha-se um futuro para passados possíveis.


Ana Maria Mauad (Labhoi/UFF)

Maria do Carmo Rainho (Arquivo Nacional)

Editoras do dossiê

Referências

HEYNEMANN, Claudia Beatriz. As paisagens europeias de Marc Ferrez. Cadernos de Marc Ferrez. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/contabilidade-vistas-e-colecoes/. Acesso em: 14 jul. 2023.

LISSOVSKY, Mauricio. Ócio e cinema na fotografia de Marc Ferrez. Galáxia, São Paulo, n. 45, p. 79, set./dez. 2020. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1982-25532020347859. Acesso em: 14 jul. 2023.

LISSOVSKY, Mauricio. Dez proposições acerca do futuro da fotografia e dos fotógrafos do futuro. Facom: revista da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP, n. 23, p. 4-16, 1. semestre 2011.

MAUAD, Ana Maria. Fotografia pública e cultura visual em perspectiva histórica. Revista Brasileira da História da Mídia, v. 2, n. 2, 2013. Disponível em: https://ojs.ufpi.br/index.php/rbhm/article/view/4056/2379. Acesso em: 14 jul. 2023.

MONTEIRO, Maria Elizabeth Brêa. Conhecer Marc Ferrez por seu inventário de negativos. Cadernos de Marc Ferrez. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/inventario-manuscrito-de-negativos/. Acesso em: 14 jul. 2023.

TURAZZI, Maria Inez. O ‘caderno-caleidoscópio’ do fotógrafo Marc Ferrez. Cadernos de Marc Ferrez. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/catalogo-das-vistas-e-de-ferro-marinha/. Acesso em: 14 jul. 2023.

VASQUEZ, Pedro Karp. Je suis le cahier de monsieur Marc Ferrez. Cadernos de Marc Ferrez. Disponível em: https://ims.com.br/cadernos-de-marc-ferrez/processos-e-materiais/#texto. Acesso em: 14 jul. 2023.



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